A Virgem conceberá e dará à luz um
filho. Esta profecia realizou-se em Maria. A Igreja sempre professou a
Virgindade real e perpétua de Maria. O nascimento de Cristo não diminuiu, antes
consagrou a Virgindade da sua Mãe (LG 57).
Primeira leitura - Isaías 7,10-14
O
contexto histórico deste oráculo isaiano é o da conjura dos reis de Israel e de
Damasco para destronarem Acaz, o rei de Judá.
10-12
- Como prova de que o rei Acaz não virá a ser destronado e substituído pelo
filho de Tabel, estranho à linhagem davídica, o profeta Isaías propõe ao rei
que peça um sinal divino, o mais extraordinário que seja (cf. v. 11). O rei,
com hipócrita religiosidade, nega-se a pedir esse sinal, porque não acredita em
sinais, em coisas sobrenaturais. Foi por esta ocasião – o que não quer dizer
exatamente no mesmo momento – que o profeta, dirigindo-se à linhagem (casa) de
David, anunciou que o Senhor dará um sinal verdadeiramente extraordinário e que
o trono de David se consolidará eternamente (cf. 1Sam. 7,16).
14
- Esse «sinal» é «a virgem que concebe». Muito se tem discutido e escrito sobre
este sinal. Uma coisa é certa, é que o crente não pode prescindir de algum
sentido messiânico (direto ou indireto) desta célebre passagem isaiana. De
fato, a própria exegese bíblica mostra que estamos no chamado «livro do
Imanuel» (Is. 7–12), uma secção de carácter vincadamente messiânico por apontar
para um descendente de David em quem se concentram as promessas da salvação de
Deus, o Imanuel (o Deus conosco); embora, em primeiro plano, possa ser
visado o próprio filho do rei Acaz, Ezequias, ele é considerado uma figura ou
tipo do Messias. A tradução grega dos LXX (inspirada por Deus?) utilizou um
termo específico para designar a virgindade desta mãe, chamando-a parthénos,
quando o termo hebraico original não designa mais que a sua idade juvenil:
‘almáh. A célebre tradução grega em que se apoiavam os primeiros apologistas
cristãos para demonstrarem aos judeus que Jesus é o Messias prometido, veio a
ser rejeitada pelos judeus, que a substituíram por outras versões (ou antes
adaptações gregas: Áquila, Símaco e Teodocião) e o dia festivo para
comemorar a tradução dos LXX passou a ser um dia de luto. A interpretação mais
tradicional defende o sentido literal (não se contentando com o sentido chamado
típico ou pleno, suficientes para se garantir o sentido messiânico da passagem)
e faz finca-pé em que Deus tinha oferecido pelo Profeta um sinal prodigioso, e
eis que o dá; ora esse sinal só é prodigioso se a concepção e o nascimento do
Menino acontece sem destruir a virgindade da Mãe; aliás é ela a pôr o nome ao
filho, coisa que pertence sempre ao pai (que aqui não aparece). O próprio nome
do filho insinua a sua divindade, «Deus conosco»: é a mesma personagem
extraordinária anunciado em Is. 9,5-6: «Deus forte, príncipe da paz…». Mt. 1,23
(o Evangelho de hoje) e toda a tradição cristã e o próprio magistério da Igreja
levam a ver nesta passagem uma referência «ao parto virginal da Mãe de Deus e
ao verdadeiro Emanuel, Cristo Senhor» (Pio VI). Não é, porém, agora aqui o
lugar para entrar em mais discussões exegéticas de pormenor.
São
Paulo, ao apresentar Jesus Cristo e a sua obra, sintetiza o plano salvador de
Deus. Afirma que Jesus, Filho de Deus, tinha sido «prometido pelos profetas nas
sagradas Escrituras».
Segunda leitura - Romanos 1,1-7
A
leitura corresponde à saudação inicial da Carta aos Romanos, em que Paulo se
apresenta aos cristãos residentes em Roma a quem pretende visitar (cf. vv.
10-15). Apresenta-se na sua qualidade de «Apóstolo por chamamento divino,
escolhido» por Deus para pregar aos gentios o Evangelho de Jesus Cristo,
deixando claro desde o início (v. 4) a natureza humana do Filho de Deus, «da
descendência de David segundo a carne» e a sua natureza divina, «constituído
Filho de Deus em todo o seu poder pela sua ressurreição». Convém ter presente
que não foi a ressurreição que O tornou Filho de Deus, mas foi esta que
lhe garantiu o pleno exercício de «todo o seu poder» que lhe compete como
Filho de Deus e que manifestou o que Ele é, Filho de Deus «segundo o
Espírito de santificação», isto é, «quanto ao seu ser animado pelo Espírito da
santidade divina», uma forma de aludir à sua condição divina (e não ao Espírito
Santo, a Terceira Pessoa Trinitária), como fica claro pela contraposição:
«segundo a carne» – «segundo o Espírito». Ainda que se possa ver nestas
formulações da fé o reflexo de uma cristologia primitiva, dita «baixa», e ainda
não suficientemente desenvolvida, mais existencial do que essencial, a verdade
é que os títulos com que Jesus Cristo é aqui designado – «Filho» e «Senhor» –
são suficientemente expressivos da fé na natureza divina de Jesus possuída
antes da ressurreição (cf. Rom 8,3; Gal 4,4-5; Filp 2,6; Col 1,15).
Evangelho - Mateus 1,18-24
Mateus
centra o seu relato do nascimento de Jesus na figura de são José (são Lucas na
de Maria), com uma clara intencionalidade teológica de apresentar Jesus como o
Messias, anunciado como descendente de David. Isto é posto em evidência logo de
início: «Genealogia de Jesus Cristo (= Messias), Filho de David» (v. 1). Como a
linha genealógica passava pelo marido, é a de José que é apresentada. Os elos
são selecionados para que apareçam três séries de 14 nomes, obedecendo a uma
técnica rabínica, chamada gematriáh, ou recurso ao valor alfabético dos
números; assim o número 14, reforçado pela sua tripla repetição – «catorze
gerações» – (no v. 17),sugere o nome de David, que em hebraico se escreve com
três consoantes (em hebraico não se escrevem as vogais) que dão o número
catorze (D=4)+(V=6)+(D=4) = 14. A concepção virginal antes de ser explicada e
justificada pelo cumprimento das Escrituras (vv. 18-25), é logo anunciada na
genealogia, que precede imediatamente a leitura de hoje, pois para todos os seus
elos se diz «gerou», quando para o último elo não se diz que «gerou», mas:
«José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus» (v. 16, à letra «da qual foi
gerado – entenda-se, por Deus – Jesus»).
18
- «Antes de terem vivido em comum»: Maria e José já tinham celebrado os
esponsais, que tinham valor jurídico de um matrimônio, mas ainda não tinham
feito as bodas solenes, em que o noivo trazia festivamente a noiva para sua
casa, o que costumava ser cerca de um ano depois.
«Encontrava-se
grávida por virtude do Espírito Santo»: isto conta-se em pormenor no Evangelho
de Lucas (1,26-38), lido na festa da Imaculada Conceição. Ao dizer-se «por
virtude do Espírito Santo», não se quer dizer que o Espírito Santo desempenhou
o papel de pai, pois Ele é puro espírito. Também isto nada tem que ver com os
relatos mitológicos dos semideuses, filhos dum deus e duma mulher. Além do
mais, é evidente o caráter semítico e o substrato judaico e
vétero-testamentário das narrativas da infância de Jesus em Mateus e Lucas;
ora, nas línguas semíticas a palavra «espírito» não é masculina, mas sim
feminina. Isto chegava para fazer afastar toda a suspeita de dependência do
relato relativamente aos mitos pagãos. Por outro lado, na Sagrada Escritura,
Deus nunca intervém na geração à maneira humana, pois é espiritual e
transcendente: Deus não gera criaturas, Deus cria-as. As narrativas de Mateus e
Lucas têm tal originalidade que excluem qualquer dependência dos mitos.
19
- «Mas José, seu esposo…». Partindo do fato real e indiscutível da concepção
virginal de Jesus, aqui apresentamos uma das muitas explicações dadas para o
que se passou. A verdade é que não dispomos da crônica dos fatos, pois a
intenção do Evangelista era primordialmente teológica, embora sem inventar
histórias, pois em face dos dados das suas fontes nem sequer disso precisava.
Do texto parece depreender-se que Maria nada tinha revelado a José do mistério
que nela se passava. José vem a saber da gravidez de Maria por si mesmo ou
pelas felicitações do paraninfo (o «amigo do esposo»), e o que devia ser para
José uma grande alegria tornou-se o mais cruel tormento. Em circunstâncias
idênticas, qualquer outro homem teria atuado drasticamente, denunciando a noiva
ao tribunal como adúltera. Mas José era um santo, «justo», por isso, não
condenava ninguém sem ter as provas evidentes da culpa. E aqui não as tinha e,
conhecendo a santidade singular de Maria, não admite a mais leve suspeita, mas
pressente que está perante o sobrenatural, já sentido por Isabel… (ou não teria
tido alguma iluminação divina acerca da profecia de Isaías 7,14). Então só lhe
restava deixar Maria, para não se intrometer num mistério em que julga não lhe
competir ter parte alguma. É assim que «resolveu repudiá-la em segredo»,
evitando, assim, «difamá-la» (colocá-la numa situação infamante) ou
simplesmente «tornar público» o mistério messiânico. Mas podemos perguntar:
porque não interrogava antes Maria para ser ela esclarecer o assunto? É que pedir
uma explicação já seria mostrar dúvida, ofendendo Maria; a sua delicadeza
extrema levá-lo-ia a não a humilhar ou deixar embaraçada. E porque razão é que
Maria não falou, se José tinha direito de saber do sucedido? Mas como é que
Maria podia falar de coisas tão colossalmente extraordinárias e inauditas?!
Como podia provar a José a Anunciação do Anjo? Maria calava, sofria e punha nas
mãos de Deus a sua honra e as angústias por que José iria passar por sua causa;
e Deus, que tinha revelado já a Isabel o mistério da sua concepção, podia
igualmente vir a revelá-lo a José. De tudo isto fica para nós o exemplo de
Maria e de José: não admitir suspeitas temerárias e confiar sempre em Deus.
20
- «Não temas receber Maria, tua esposa». O Anjo não diz: «não desconfies», mas:
«não temas». Segundo a explicação anterior, José deveria andar amedrontado com
algo de divino e misterioso que pressentia: julga-se indigno de Maria e decide
não se imiscuir num mistério que o transcende. Como explica são Bernardo, são
José «foi tomado dum assombro sagrado perante a novidade de tão grande milagre,
perante a proximidade de tão grande mistério, que a quis deixar ocultamente…
José tinha-se, por indigno…». Segundo alguns exegetas modernos (Zerwick), o
texto sagrado poderia mesmo traduzir-se: «embora o que nela foi gerado seja do
Espírito Santo, Ela dar(-te-)á à luz um filho ao qual porás o nome de Jesus,
exercendo assim para Ele a missão de pai». Assim, o Anjo não só elucida José,
como também lhe diz que ele tem uma missão a cumprir no mistério da Encarnação,
a missão e a dignidade de pai do Salvador. Comenta santo Agostinho: «A José não
só se lhe deve o nome de pai, mas este é-lhe devido mais do que a qualquer
outro. Como era pai? Tanto mais profundamente pai, quanto mais casta foi a sua paternidade…
O Senhor não nasceu do germe de José. Mas à piedade e amor de José nasceu um
filho da Virgem Maria, que era Filho de Deus».
23
- «Será chamado Emanuel». No original hebraico de Isaías 7,14, temos o verbo no
singular (forma aramaica para a 3ª pessoa do singular feminino: weqara’t
referido a virgem, que é a que põe o nome = «e ela chamará»). Mateus, porém,
usa o plural, que não aparece na tradução litúrgica, (kai kalésousin: «e
chamarão»), um plural de generalização, a fim de que o texto possa ser aplicado
a José, para pôr em evidência a missão de José, como pai «legal» de Jesus
(notar que a célebre profecia isaiana, ao dizer que seria a virgem a pôr o nome
ao seu filho até parece prestar-se a significar que este não nasceria de germe
paterno). Mateus, em face do papel providencial desempenhado por são José, não
receia adaptar o texto à realidade maravilhosa muito mais rica do que a letra
do anúncio profético. Contudo, esta técnica do Evangelista para «atualizar» um
texto antigo (chamada deraxe) não é arbitrária, pois baseia-se na regra
hermenêutica rabínica chamada al-tiqrey («não leias»), a qual consiste em
não ler um texto consonântico com umas vogais, mas com outras (o hebraico
escrevia-se sem vogais). Neste caso, trata-se de «não ler» as consoantes do
verbo com as vogais que correspondem à forma feminina (tanto da 3ª pessoa do
singular na forma aramaica, como da 2ª pessoa do singular da tradução dos LXX:
weqara’t «e tu chamarás»), mas de ler com as vogais que correspondem à 2ª
pessoa do singular masculino (weqara’ta «e tu chamarás» – em hebraico há
diferentes formas masculina e feminina para as 2ª e 3ª pessoas dos verbos).
Como pensa Alexandre Díez Macho, «com este deraxe oculto, mas real, Mateus
confirma as palavras do anjo do Senhor no v. 21: «e (tu, José) o chamarás».
Eis,
a propósito, o maravilhoso comentário de são João Crisóstomo, apresentando Deus
a falar a José: «Não penses que, por ser a concepção de Cristo obra do Espírito
Santo, tu és alheio ao serviço desta divina economia; porque, se é certo que
não tens nenhuma parte na geração e a Virgem permanece intacta, não obstante,
tudo o que pertence ao ofício de pai, sem atentar contra a dignidade da
virgindade, tudo to entrego a ti, o pôr o nome ao filho. (…) Tu lhe farás as
vezes de pai, por isso, começando pela imposição do nome, Eu te uno intimamente
com Aquele que vai nascer» (Homil. in Mt, 4).
25
- «E não a tinha conhecido…». Mateus pretende realçar que Jesus nasceu sem
prévias relações conjugais, mas por um milagre de Deus. Quanto à posterior
virgindade o Evangelista não só não a nega, como até a parece insinuar no
original grego, ao usar o imperfeito de duração («não a conhecia») em vez do
chamado aoristo complexivo como seria de esperar, caso quisesse abranger
apenas o tempo até ao parto (Zerwick). Uma tradução mais à letra seria «até que
Ela deu à luz», em vez de: «quando Ela deu à luz». De qualquer modo, esta
afirmação não significa que depois já não se verificasse o que até este momento
acontecera, como é o caso de Jo 9, 18.
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