Nota introdutória.
Ao coincidir a Solenidade da
Imaculada Conceição com o 2.º Domingo do Advento, a liturgia da Palavra vai
buscar a segunda leitura deste domingo de Advento, sendo a primeira e o
Evangelho da Solenidade da Imaculada Conceição (cf. Diretório Litúrgico).
Somos convidados a equacionar o
tipo de resposta que damos aos desafios de Deus. Ao propor-nos o exemplo de
Maria de Nazaré, a liturgia convida-nos a acolher, com um coração aberto e
disponível, os planos de Deus para nós e para o mundo.
A primeira leitura mostra
(recorrendo à história mítica de Adão e Eva) o que acontece quando rejeitamos
as propostas de Deus e preferimos caminhos de egoísmo, de orgulho e de
autossuficiência… Viver à margem de Deus leva, inevitavelmente, a trilhar
caminhos de sofrimento, de destruição, de infelicidade e de morte.
O Evangelho apresenta a resposta
de Maria ao plano de Deus. Ao contrário de Adão e Eva, Maria rejeitou o
orgulho, o egoísmo e a autossuficiência e preferiu conformar a sua vida, de
forma total e radical, com os planos de Deus. Do seu “sim” total, resultou
salvação e vida plena para ela e para o mundo.
A segunda leitura, tirada da
liturgia do 2.º Domingo do Advento, dirige-se àqueles que receberam de Jesus a
proposta do “Reino”: sendo o rosto visível de Cristo no meio dos homens, eles
devem dar testemunho de união, de amor, de partilha, de harmonia entre si,
acolhendo e ajudando os irmãos mais débeis, a exemplo de Jesus.
LEITURA I – Gen 3, 9-15.20
O relato jahwista de Gn 2,4b-3,24
sobre as origens da vida e do pecado (ao qual pertence o texto que hoje nos é
proposto como primeira leitura) é, de acordo com a maioria dos comentadores, um
texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão.
Apresenta-se num estilo exuberante e vivo e parece ser obra de um catequista
popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes.
Não podemos, de forma nenhuma,
ver neste texto uma reportagem jornalística de acontecimentos passados na
aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas
teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer
dizer-nos que na origem da vida e do homem está Jahwéh e que na origem do mal e
do pecado estão as opções erradas do homem. Trata-se, portanto, de uma página
de catequese.
Esta longa reflexão sobre as
origens da vida e do mal que desfeia o mundo está estruturada num esquema
tripartido, com duas situações claramente opostas e uma realidade central que
aparece como charneira e ao redor da qual giram a primeira e a terceira parte…
Na primeira parte (cf. Gn
2,4b-25), o autor descreve a criação do paraíso e do homem; apresenta a criação
de Deus como um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive em
comunhão total com o criador e com as outras criaturas.
Na segunda parte (cf. Gn 3,1-7),
o autor descreve o pecado do homem e da mulher; mostra como as opções erradas
do homem introduziram na comunhão do homem com Deus e com o resto da criação
fatores de desequilíbrio e de morte.
Na terceira parte (cf. Gn
3,8-24), o autor apresenta o homem e a mulher confrontados com o resultado das
suas opções erradas e as consequências que daí advieram, quer para o homem,
quer para o resto da criação.
Na perspectiva do catequista
jahwista, Deus criou o homem para a felicidade… Então, pergunta ele, como é que
hoje conhecemos o egoísmo, a injustiça, a violência que desfeiam o mundo? A
resposta é: algures na história humana, o homem que Deus criou livre e feliz
fez escolhas erradas e introduziu na criação boa de Deus dinamismos de
sofrimento e de morte.
O nosso texto pertence à terceira
parte do tríptico. Os personagens intervenientes são Deus (que “passeia no
jardim à brisa do dia” – vers. 8a), Adão e Eva (que se esconderam de Deus por
entre o arvoredo do jardim – vers. 8b).
A nossa leitura começa com a
“investigação” de Deus… Antes de proferir a sua acusação, Deus – o acusador e
juiz – investiga, descobre e estabelece os fatos.
Primeira pergunta feita por Deus
ao homem: “onde estás?” A resposta do homem é já uma confissão da sua
culpabilidade: “ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu,
tive medo e escondi-me” (vers. 9-10). A vergonha e o medo são sinal de uma
perturbação interior, de uma rutura com a anterior situação de inocência, de
harmonia, de serenidade e de paz. Como é que o homem chegou a esta situação?
Evidentemente, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos contrários àqueles
que Deus lhe havia proposto. A resposta do homem trai, portanto, o seu segredo
e a sua culpa.
Depois desta constatação, a
segunda pergunta feita por Deus ao homem é meramente retórica: “terias tu
comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?” (vers. 11). A árvore em
causa – a “árvore do conhecimento do bem e do mal” – significa o orgulho, a
autossuficiência, o prescindir de Deus e das suas propostas, o querer decidir
por si só o que é bem e o que é mal, o pôr-se a si próprio em lugar de Deus, o reivindicar
autonomia total em relação ao criador. A situação do homem, perturbado e em
rutura, é já uma resposta clara à pergunta de Deus… É evidente que o homem
“comeu da árvore proibida” – isto é, escolheu um caminho de orgulho e de
autossuficiência em relação a Deus. Daí a vergonha e o medo.
Ao defender-se, o homem acusa a
mulher e, ao mesmo tempo, acusa veladamente o próprio Deus pela situação em que
está (“a mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu
comi” – vers. 12). Adão representa essa humanidade que, mergulhada no egoísmo e
na autossuficiência, esqueceu os dons de Deus e vê em Deus um adversário; por
outro lado, a resposta de Adão mostra, igualmente, uma humanidade que quebrou a
sua unidade e se instalou na cobardia, na falta de solidariedade, no ódio.
Escolher caminhos contrários aos de Deus não pode senão conduzir a uma vida de
rutura com Deus e com os outros irmãos.
Vem, depois, a “defesa” da
mulher: “a serpente enganou-me e eu comi” (vers. 13). Entre os povos cananeus,
a serpente estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os
israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e, com frequência, abandonavam
Jahwéh para seguir os rituais religiosos dos cananeus e assegurar, assim, a
fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o autor jahwista escreve
a serpente era, pois, o “fruto proibido”, que seduzia os crentes e os levava a
abandonar a Lei de Deus. A “serpente” é, neste contexto, um símbolo literário
de tudo aquilo que afastava os israelitas de Jahwéh. A resposta da “mulher”
confirma tudo aquilo que até agora estava sugerido: é verdade, a humanidade que
Deus criou prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e enveredou por outros
caminhos. Achou, no seu egoísmo e autossuficiência, que podia encontrar a
verdadeira vida à margem de Deus, prescindindo das propostas de Deus.
Diante disto, não são precisas
mais perguntas. Está claramente definida a culpa de uma humanidade que pensou
poder ser feliz em caminhos de egoísmo e de autossuficiência, totalmente à
margem dos caminhos que foram propostos por Deus.
Que tem Deus a acrescentar? Pouco
mais, a não ser condenar como falsos e enganosos esses cultos e essas tentações
que seduziam os israelitas e os colocavam fora da dinâmica da Aliança e dos
mandamentos (vers. 14-15). O nosso catequista jahwista sabe que a serpente é um
animal miserável, que passa toda a sua existência mordendo o pó da terra. O
autor vai servir-se deste dado para pintar, plasticamente, a condenação radical
de tudo aquilo que leva os homens a afastar-se dos caminhos de Deus e a
enveredar por caminhos de egoísmo e de autossuficiência.
O que é que significa a inimizade
e a luta entre a “descendência” da mulher e a “descendência” da serpente?
Provavelmente, o autor jahwista está, apenas, a dar uma explicação etiológica
(uma “etiologia” é uma tentativa de explicar o porquê de uma determinada
realidade que o autor conhece no seu tempo, a partir de um pretenso
acontecimento primordial, que seria o responsável pela situação atual) para o
fato de a serpente inspirar horror aos humanos e de toda a gente lhe procurar
“esmagar a cabeça”; mas a interpretação judaica e cristã viu nestas palavras
uma profecia messiânica: Deus anuncia que um “filho da mulher” (o Messias)
acabará com as consequências do pecado e inserirá a humanidade numa dinâmica de
graça.
Atenção: o autor sagrado não está
a falar de um pecado cometido nos primórdios da humanidade pelo primeiro homem
e pela primeira mulher; mas está a falar do pecado cometido por todos os homens
e mulheres de todos os tempos… Ele está apenas a ensinar que a raiz de todos os
males está no fato de o homem prescindir de Deus e construir o mundo a partir
de critérios de egoísmo e de autossuficiência. Não conhecemos bem este quadro?
ATUALIZAÇÃO
Um dos mistérios que mais
questiona os nossos contemporâneos é o mistério do mal… Esse mal que vemos,
todos os dias, tornar sombria e deprimente essa “casa” que é o mundo, vem de
Deus, ou vem do homem? A Palavra de Deus responde: o mal nunca vem de Deus…
Deus criou-nos para a vida e para a felicidade e deu-nos todas as condições
para imprimirmos à nossa existência uma dinâmica de vida, de felicidade, de
realização plena.
O mal resulta das nossas escolhas
erradas, do nosso orgulho, do nosso egoísmo e autossuficiência. Quando o homem
escolhe viver orgulhosamente só, ignorando as propostas de Deus e prescindindo
do amor, constrói cidades de egoísmo, de injustiça, de prepotência, de
sofrimento, de pecado… Quais os caminhos que eu escolho? As propostas de Deus
fazem sentido e são, para mim, indicações seguras para a felicidade, ou prefiro
ser eu próprio a fazer as minhas escolhas, à margem das propostas de Deus?
O nosso texto deixa também claro
que prescindir de Deus e caminhar longe dele leva o homem ao confronto e à
hostilidade com os outros homens e mulheres. Nasce, então, a injustiça, a
exploração, a violência. Os outros homens e mulheres deixam de ser irmãos para
passarem a ser ameaças ao próprio bem-estar, à própria segurança, aos próprios
interesses. Como é que eu me situo face aos meus irmãos? Como é que eu me
relaciono com aqueles que são diferentes, que invadem o meu espaço e
interesses, que me questionam e interpelam?
O nosso texto ensina, ainda, que
prescindir de Deus e dos seus caminhos significa construir uma história de
inimizade com o resto da criação. A natureza deixa de ser, então, a casa comum
que Deus ofereceu a todos os homens como espaço de vida e de felicidade, para
se tornar algo que eu uso e exploro em meu proveito próprio, sem considerar a
sua dignidade, beleza e grandeza. O que é que a criação de Deus significa para
mim: algo que eu posso explorar de forma egoísta, ou algo que Deus ofereceu a
todos os homens e mulheres e que eu devo respeitar e guardar com amor?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 97
Refrão: Cantai ao Senhor um
cântico novo:
o Senhor fez maravilhas.
Cantai ao Senhor um cântico novo,
pelas maravilhas que Ele operou.
A sua mão e o seu santo braço
Lhe deram a vitória.
O Senhor deu a conhecer a
salvação,
revelou aos olhos das nações a
sua justiça.
Recordou-Se da sua bondade e
fidelidade
em favor da casa de Israel.
Os confins da terra puderam ver
a salvação do nosso Deus.
Aclamai o Senhor, terra inteira,
exultai de alegria e cantai.
LEITURA II – Rom 15, 4-9
A Carta aos Romanos – já o dissemos
no passado domingo – é uma carta de reconciliação, endereçada aos romanos, mas
dirigida a toda a Igreja fundada por Jesus. Pretende – numa altura em que
fundos culturais diversos e sensibilidades diferentes dividiam os cristãos
vindos do judaísmo e os cristãos vindos do paganismo – afastar o perigo da
divisão da Igreja e levar todos os crentes (judeo-cristãos e pagano-cristãos) a
redescobrir a unidade da fé e a igualdade fundamental de todos diante de Deus.
Desde que optaram por Cristo e receberam o batismo, todos receberam o dom de
Deus, tiveram acesso à salvação e tornaram-se irmãos, chamados a viver no amor.
O texto que nos é proposto
pertence à segunda parte da carta. Nessa parte (que vai de Rm 12,1 a 15,13), Paulo exorta
os cristãos a viver no amor; em concreto, dá aos cristãos algumas indicações de
caráter prático acerca do comportamento que devem assumir para com os irmãos.
O texto que nos é apresentado
como segundo leitura tem de ser entendido no contexto mais amplo de uma
perícope que vai de 15,1 a
15,13. Literariamente, esta perícope está construída na base de dois parágrafos
simétricos (cf. Rm 15,1-6 e 15,7-13) que apresentam uma mesma sequência e uma
mesma organização: a) exortação; b) motivação cristológica; c) iluminação a
partir da Escritura; d) súplica final.
Na primeira parte da perícope
(cf. Rm 15,1-6), Paulo exorta os cristãos a vencer qualquer tipo de egoísmo e
de autossuficiência e a dar as mãos aos mais débeis e necessitados (a); como
motivo para este comportamento, Paulo apresenta o exemplo de Cristo, que não
procurou seguir um caminho de facilidade, mas escolheu o amor e o dom da vida
(b); este comportamento que Paulo pede aos cristãos (e é aqui que começa o
nosso texto de hoje) é aquele que a Escritura – que foi escrita para nossa
instrução – nos sugere (c); e, finalmente, Paulo pede ao “Deus da perseverança
e da consolação” que dê aos cristãos de Roma a harmonia, a fim de que louvem a
Deus com um só coração e uma só alma (d).
Na segunda parte da perícope (cf.
Rm 15,7-13), Paulo começa por exortar os crentes a não fazerem discriminações,
mas a acolherem todos (a); como motivo para este comportamento, Paulo aponta o
exemplo de Cristo, que acolheu a todos os homens (b); e Paulo justifica o que
disse atrás com o exemplo da Escritura (e é neste ponto que termina o trecho
que a liturgia nos propõe como segunda leitura), citando explicitamente vários
textos do Antigo Testamento (c); finalmente, Paulo pede ao “Deus da esperança”
que cumule os crentes “de alegria e de paz, na fé” (d).
O mais importante de tudo isto é
a mensagem fundamental que sobressai nesta dupla estrutura: a comunidade deve
viver em harmonia, acolhendo e ajudando os mais fracos, sem discriminar nem
excluir ninguém, no amor e na partilha. Cristo é o exemplo que os membros da
comunidade devem ter sempre diante dos olhos… Convém também não esquecer que o
ser capaz de viver deste jeito é um dom de Deus – dom que os crentes devem
pedir em todos os momentos ao Pai.
ATUALIZAÇÃO
A comunidade cristã – como rosto
visível de Cristo no mundo – tem de ser o lugar do amor, da partilha fraterna,
da harmonia, do acolhimento. No entanto, com bastante frequência encontramos
comunidades onde os irmãos estão divididos: criticam os outros de forma avulsa,
tomam atitudes agressivas que afastam os mais débeis, discriminam aqueles que
não entram na sua “panelinha”, estão aferrados ao poder e fazem tudo para
dominar os outros e para afirmar a sua superioridade… Isto acontece na minha
comunidade? Eu tenho algumas responsabilidades nessa situação? O que posso
fazer para mudar as coisas?
Convém não esquecer que a
conversão à harmonia, à partilha com os mais pobres, ao amor fraterno, ao dom
da vida, é algo exigente, que não pode ser feito contando apenas com a boa
vontade do homem; mas é algo que só pode ser feito com a força e com a ajuda de
Deus… Lembro-me de pedir a Deus a sua ajuda para vencer o meu egoísmo e a minha
autossuficiência e para amar verdadeiramente os meus irmãos? Estou disposto a
ir ao seu encontro e a deixar que Ele converta o meu coração e a minha vida?
ALELUIA – cf. Lc 1,28
Aleluia. Aleluia.
Ave, Maria, cheia de graça, o
Senhor é convosco,
bendita sois Vós entre as
mulheres.
EVANGELHO – Lc 1, 26-38
O texto que nos é hoje proposto
pertence ao “Evangelho da Infância” na versão de Lucas. De acordo com os
biblistas atuais, os textos do “Evangelho da Infância” pertencem a um gênero
literário especial, chamado homologese. Este gênero não pretende ser um relato
jornalístico e histórico de acontecimentos; mas é, sobretudo, uma catequese
destinada a proclamar certas realidades salvíficas (que Jesus é o Messias, que
Ele vem de Deus, que Ele é o “Deus conosco”). Desenvolve-se em forma de
narração e recorre às técnicas do midrash haggádico (uma técnica de leitura e
de interpretação do texto sagrado usada pelos rabis judeus da época de Jesus).
A homologese utiliza e mistura tipologias (fatos e pessoas do Antigo
Testamento, encontram a sua correspondência em fatos e pessoas do Novo
Testamento) e aparições apocalípticas (anjos, aparições, sonhos) para fazer
avançar a narração e para explicitar determinada catequese sobre Jesus. O
Evangelho que nos é hoje proposto deve ser entendido a esta luz: não interessa,
pois, estar aqui à procura de fatos históricos; interessa, sobretudo, perceber o
que é que a catequese cristã primitiva nos ensina, através destas narrações,
sobre Jesus.
A cena situa-nos numa aldeia da
Galileia, chamada Nazaré. A Galileia, região a norte da Palestina, à volta do
Lago de Tiberíades, era considerada pelos judeus uma terra longínqua e
estranha, em permanente contacto com as populações pagãs e onde se praticava
uma religião heterodoxa, influenciada pelos costumes e pelas tradições pagãs.
Daí a convicção dos mestres judeus de Jerusalém de que “da Galileia não pode
vir nada de bom”. Quanto a Nazaré, era uma aldeia pobre e ignorada, nunca
nomeada na história religiosa judaica e, portanto (de acordo com a mentalidade
judaica), completamente à margem dos caminhos de Deus e da salvação.
Maria, a jovem de Nazaré que está
no centro deste episódio, era “uma virgem desposada com um homem chamado José”.
O casamento hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas etapas:
havia uma primeira fase, na qual os noivos se prometiam um ao outro (os
“esponsais”); só numa segunda fase surgia o compromisso definitivo (as
cerimônias do matrimônio propriamente dito)… Entre os “esponsais” e o rito do
matrimônio, passava um tempo mais ou menos longo, durante o qual qualquer uma
das partes podia voltar atrás, ainda que sofrendo uma penalidade. Durante os
“esponsais”, os noivos não viviam em comum; mas o compromisso que os dois
assumiam tinha já um caráter estável, de tal forma que, se surgia um filho,
este era considerado filho legítimo de ambos. A Lei de Moisés considerava a
infidelidade da “prometida” como uma ofensa semelhante à infidelidade da esposa
(cf. Dt 22,23-27)… E a união entre os dois “prometidos” só podia dissolver-se
com a fórmula jurídica do divórcio. José e Maria estavam, portanto, na situação
de “prometidos”: ainda não tinham celebrado o matrimônio, mas já tinham
celebrado os “esponsais”.
Depois da apresentação do
“ambiente” do quadro, Lucas apresenta o diálogo entre Maria e o anjo.
A conversa começa com a saudação
do anjo. Na boca deste, são colocados termos e expressões com ressonância
vétero-testamentária, ligados a contextos de eleição, de vocação e de missão.
Assim, o termo “ave” (em grego, “kaire”) com que o anjo se dirige a Maria, é
mais do que uma saudação: é o eco dos anúncios de salvação à “filha de Sião” –
uma figura fraca e delicada que personifica o Povo de Israel, em cuja fraqueza
se apresenta e representa essa salvação oferecida por Deus e que Israel deve
testemunhar diante dos outros povos (cf. 2 Re 19,21-28; Is 1,8;12,6; Jer 4,31;
Sof 3,14-17). A expressão “cheia de graça” significa que Maria é objeto da
predileção e do amor de Deus. A outra expressão “o Senhor está contigo” é uma
expressão que aparece com frequência ligada aos relatos de vocação no Antigo
Testamento (cf. Ex 3,12 - vocação de Moisés; Jz 6,12 - vocação de Gedeão; Jer
1,8.19 - vocação de Jeremias) e que serve para assegurar ao “chamado” a
assistência de Deus na missão que lhe é pedida. Estamos, portanto, diante do
“relato de vocação” de Maria: a visita do anjo destina-se a apresentar à jovem
de Nazaré uma proposta de Deus. Essa proposta vai exigir uma resposta clara de
Maria.
Qual é, então, o papel proposto a
Maria no projeto de Deus?
A Maria, Deus propõe que aceite
ser a mãe de um “filho” especial… Desse “filho” diz-se, em primeiro lugar, que
ele se chamará “Jesus”. O nome significa “Deus salva”. Além disso, esse “filho”
é apresentado pelo anjo como o “Filho do Altíssimo”, que herdará “o trono de
seu pai David” e cujo reinado “não terá fim”. As palavras do anjo levam-nos a 2
Sm 7 e à promessa feita por Deus ao rei David através das palavras do profeta
Nathan. Esse “filho” é descrito nos mesmos termos em que a teologia de Israel
descrevia o “messias” libertador. O que é proposto a Maria é, pois, que ela
aceite ser a mãe desse “messias” que Israel esperava, o libertador enviado por
Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação definitivas.
Como é que Maria responde ao
projeto de Deus?
A resposta de Maria começa com
uma objeção… A objeção faz sempre parte dos relatos de vocação do Antigo
Testamento (cf. Ex 3,11; 6,30; Is 6,5; Jer 1,6). É uma reação natural de um
“chamado”, assustado com a perspetiva do compromisso com algo que o ultrapassa;
mas é, sobretudo, uma forma de mostrar a grandeza e o poder de Deus que, apesar
da fragilidade e das limitações dos “chamados”, faz deles instrumentos da sua
salvação no meio dos homens e do mundo.
Diante da “objeção”, o anjo
garante a Maria que o Espírito Santo virá sobre ela e a cobrirá com a sua
sombra. Este Espírito é o mesmo que foi derramado sobre os juízes (Oteniel –
cf. Jz 3,10; Gedeão – cf. Jz 6,34; Jefté – cf. Jz 11,29; Sansão – cf. Jz 14,6),
sobre os reis (Saul – cf. 1 Sm 11,6; David – cf. 1 Sm 16,13), sobre os profetas
(cf. Maria, a profetisa irmã de Aarão – cf. Ex 15,20; os anciãos de Israel –
cf. Nm 11,25-26; Ezequiel – cf. Ez 2,1; 3,12; o Trito-Isaías – cf. Is 61,1), a
fim de que eles pudessem ser uma presença eficaz da salvação de Deus no meio do
mundo. A “sombra” ou “nuvem” leva-nos, também, à “coluna de nuvem” (cf. Ex
13,21) que acompanhava a caminhada do Povo de Deus em marcha pelo deserto,
indicando o caminho para a Terra Prometida da liberdade e da vida nova. A
questão é a seguinte: apesar da fragilidade de Maria, Deus vai, através dela,
fazer-se presente no mundo para oferecer a salvação a todos os homens.
O relato termina com a resposta
final de Maria: “eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Afirmar-se como “serva” significa, mais do que humildade, reconhecer que se é
um eleito de Deus e aceitar essa eleição, com tudo o que ela implica – pois, no
Antigo Testamento, ser “servo do Senhor” é um título de glória, reservado
àqueles que Deus escolheu, que ele reservou para o seu serviço e que ele enviou
ao mundo com uma missão (essa designação aparece, por exemplo, no Deutero-Isaías
– cf. Is 42,1; 49,3; 50,10; 52,13; 53,2.11 – em referência à figura enigmática
do “servo de Jahwéh”). Desta forma, Maria reconhece que Deus a escolheu, aceita
com disponibilidade essa escolha e manifesta a sua disposição de cumprir, com
fidelidade, o projeto de Deus.
ATUALIZAÇÃO
A liturgia deste dia afirma, de
forma clara e insofismável, que Deus ama os homens e tem um projeto de vida
plena para lhes oferecer. Como é que esse Deus cheio de amor pelos seus filhos
intervém na história humana e concretiza, dia a dia, essa oferta de salvação? A
história de Maria de Nazaré (bem como a de tantos outros “chamados”) responde,
de forma clara, a esta questão: é através de homens e mulheres atentos aos
projetos de Deus e de coração disponível para o serviço dos irmãos que Deus
atua no mundo, que Ele manifesta aos homens o seu amor, que Ele convida cada
pessoa a percorrer os caminhos da felicidade e da realização plena. Já pensamos
que é através dos nossos gestos de amor, de partilha e de serviço que Deus se torna
presente no mundo e transforma o mundo?
Outra questão é a dos
instrumentos de que Deus se serve para realizar os seus planos… Maria era uma
jovem mulher de uma aldeia obscura dessa “Galileia dos pagãos” de onde não
podia “vir nada de bom”. Não consta que tivesse uma significativa preparação
intelectual, extraordinários conhecimentos teológicos, ou amigos poderosos nos
círculos de poder e de influência da Palestina de então… Apesar disso, foi
escolhida por Deus para desempenhar um papel primordial na etapa mais
significativa na história da salvação. A história vocacional de Maria deixa
claro que, na perspectiva de Deus, não são o poder, a riqueza, a importância ou
a visibilidade social que determinam a capacidade para levar a cabo uma missão.
Deus age através de homens e mulheres, independentemente das suas qualidades
humanas. O que é decisivo é a disponibilidade e o amor com que se acolhem e
testemunham as propostas de Deus.
Diante dos apelos de Deus ao
compromisso, qual deve ser a resposta do homem? É aí que somos colocados diante
do exemplo de Maria… Confrontada com os planos de Deus, Maria responde com um
“sim” total e incondicional. Naturalmente, ela tinha o seu programa de vida e
os seus projetos pessoais; mas, diante do apelo de Deus, esses projetos
pessoais passaram naturalmente e sem dramas a um plano secundário. Na atitude
de Maria não há qualquer sinal de egoísmo, de comodismo, de orgulho, mas há uma
entrega total nas mãos de Deus e um acolhimento radical dos caminhos de Deus. O
testemunho de Maria é um testemunho questionante, que nos interpela fortemente…
Que atitude assumimos diante dos projetos de Deus: acolhemo-los sem reservas,
com amor e disponibilidade, numa atitude de entrega total a Deus, ou assumimos
uma atitude egoísta de defesa intransigente dos nossos projetos pessoais e dos
nossos interesses egoístas?
É possível alguém entregar-se tão
cegamente a Deus, sem reservas, sem medir os prós e os contras? Como é que se
chega a esta confiança incondicional em Deus e nos seus projetos? Naturalmente,
não se chega a esta confiança cega em Deus e nos seus planos sem uma vida de
diálogo, de comunhão, de intimidade com Deus. Maria de Nazaré foi, certamente,
uma mulher para quem Deus ocupava o primeiro lugar e era a prioridade
fundamental. Maria de Nazaré foi, certamente, uma pessoa de oração e de fé, que
fez a experiência do encontro com Deus e aprendeu a confiar totalmente n’Ele.
No meio da agitação de todos os dias, encontro tempo e disponibilidade para
ouvir Deus, para viver em comunhão com Ele, para tentar perceber os seus sinais
nas indicações que Ele me dá dia a dia?
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