sábado, 7 de dezembro de 2013

2º DOMINGO DO ADVENTO - SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO DA VIRGEM MARIA.



Nota introdutória.
Ao coincidir a Solenidade da Imaculada Conceição com o 2.º Domingo do Advento, a liturgia da Palavra vai buscar a segunda leitura deste domingo de Advento, sendo a primeira e o Evangelho da Solenidade da Imaculada Conceição (cf. Diretório Litúrgico).


Somos convidados a equacionar o tipo de resposta que damos aos desafios de Deus. Ao propor-nos o exemplo de Maria de Nazaré, a liturgia convida-nos a acolher, com um coração aberto e disponível, os planos de Deus para nós e para o mundo.
A primeira leitura mostra (recorrendo à história mítica de Adão e Eva) o que acontece quando rejeitamos as propostas de Deus e preferimos caminhos de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência… Viver à margem de Deus leva, inevitavelmente, a trilhar caminhos de sofrimento, de destruição, de infelicidade e de morte.
O Evangelho apresenta a resposta de Maria ao plano de Deus. Ao contrário de Adão e Eva, Maria rejeitou o orgulho, o egoísmo e a autossuficiência e preferiu conformar a sua vida, de forma total e radical, com os planos de Deus. Do seu “sim” total, resultou salvação e vida plena para ela e para o mundo.
A segunda leitura, tirada da liturgia do 2.º Domingo do Advento, dirige-se àqueles que receberam de Jesus a proposta do “Reino”: sendo o rosto visível de Cristo no meio dos homens, eles devem dar testemunho de união, de amor, de partilha, de harmonia entre si, acolhendo e ajudando os irmãos mais débeis, a exemplo de Jesus.

LEITURA I – Gen 3, 9-15.20

O relato jahwista de Gn 2,4b-3,24 sobre as origens da vida e do pecado (ao qual pertence o texto que hoje nos é proposto como primeira leitura) é, de acordo com a maioria dos comentadores, um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante e vivo e parece ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes.
Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma reportagem jornalística de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da vida e do homem está Jahwéh e que na origem do mal e do pecado estão as opções erradas do homem. Trata-se, portanto, de uma página de catequese.
Esta longa reflexão sobre as origens da vida e do mal que desfeia o mundo está estruturada num esquema tripartido, com duas situações claramente opostas e uma realidade central que aparece como charneira e ao redor da qual giram a primeira e a terceira parte…
Na primeira parte (cf. Gn 2,4b-25), o autor descreve a criação do paraíso e do homem; apresenta a criação de Deus como um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive em comunhão total com o criador e com as outras criaturas.
Na segunda parte (cf. Gn 3,1-7), o autor descreve o pecado do homem e da mulher; mostra como as opções erradas do homem introduziram na comunhão do homem com Deus e com o resto da criação fatores de desequilíbrio e de morte.
Na terceira parte (cf. Gn 3,8-24), o autor apresenta o homem e a mulher confrontados com o resultado das suas opções erradas e as consequências que daí advieram, quer para o homem, quer para o resto da criação.
Na perspectiva do catequista jahwista, Deus criou o homem para a felicidade… Então, pergunta ele, como é que hoje conhecemos o egoísmo, a injustiça, a violência que desfeiam o mundo? A resposta é: algures na história humana, o homem que Deus criou livre e feliz fez escolhas erradas e introduziu na criação boa de Deus dinamismos de sofrimento e de morte.
O nosso texto pertence à terceira parte do tríptico. Os personagens intervenientes são Deus (que “passeia no jardim à brisa do dia” – vers. 8a), Adão e Eva (que se esconderam de Deus por entre o arvoredo do jardim – vers. 8b).

A nossa leitura começa com a “investigação” de Deus… Antes de proferir a sua acusação, Deus – o acusador e juiz – investiga, descobre e estabelece os fatos.
Primeira pergunta feita por Deus ao homem: “onde estás?” A resposta do homem é já uma confissão da sua culpabilidade: “ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me” (vers. 9-10). A vergonha e o medo são sinal de uma perturbação interior, de uma rutura com a anterior situação de inocência, de harmonia, de serenidade e de paz. Como é que o homem chegou a esta situação? Evidentemente, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos contrários àqueles que Deus lhe havia proposto. A resposta do homem trai, portanto, o seu segredo e a sua culpa.
Depois desta constatação, a segunda pergunta feita por Deus ao homem é meramente retórica: “terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?” (vers. 11). A árvore em causa – a “árvore do conhecimento do bem e do mal” – significa o orgulho, a autossuficiência, o prescindir de Deus e das suas propostas, o querer decidir por si só o que é bem e o que é mal, o pôr-se a si próprio em lugar de Deus, o reivindicar autonomia total em relação ao criador. A situação do homem, perturbado e em rutura, é já uma resposta clara à pergunta de Deus… É evidente que o homem “comeu da árvore proibida” – isto é, escolheu um caminho de orgulho e de autossuficiência em relação a Deus. Daí a vergonha e o medo.
Ao defender-se, o homem acusa a mulher e, ao mesmo tempo, acusa veladamente o próprio Deus pela situação em que está (“a mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi” – vers. 12). Adão representa essa humanidade que, mergulhada no egoísmo e na autossuficiência, esqueceu os dons de Deus e vê em Deus um adversário; por outro lado, a resposta de Adão mostra, igualmente, uma humanidade que quebrou a sua unidade e se instalou na cobardia, na falta de solidariedade, no ódio. Escolher caminhos contrários aos de Deus não pode senão conduzir a uma vida de rutura com Deus e com os outros irmãos.
Vem, depois, a “defesa” da mulher: “a serpente enganou-me e eu comi” (vers. 13). Entre os povos cananeus, a serpente estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e, com frequência, abandonavam Jahwéh para seguir os rituais religiosos dos cananeus e assegurar, assim, a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o autor jahwista escreve a serpente era, pois, o “fruto proibido”, que seduzia os crentes e os levava a abandonar a Lei de Deus. A “serpente” é, neste contexto, um símbolo literário de tudo aquilo que afastava os israelitas de Jahwéh. A resposta da “mulher” confirma tudo aquilo que até agora estava sugerido: é verdade, a humanidade que Deus criou prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e enveredou por outros caminhos. Achou, no seu egoísmo e autossuficiência, que podia encontrar a verdadeira vida à margem de Deus, prescindindo das propostas de Deus.
Diante disto, não são precisas mais perguntas. Está claramente definida a culpa de uma humanidade que pensou poder ser feliz em caminhos de egoísmo e de autossuficiência, totalmente à margem dos caminhos que foram propostos por Deus.
Que tem Deus a acrescentar? Pouco mais, a não ser condenar como falsos e enganosos esses cultos e essas tentações que seduziam os israelitas e os colocavam fora da dinâmica da Aliança e dos mandamentos (vers. 14-15). O nosso catequista jahwista sabe que a serpente é um animal miserável, que passa toda a sua existência mordendo o pó da terra. O autor vai servir-se deste dado para pintar, plasticamente, a condenação radical de tudo aquilo que leva os homens a afastar-se dos caminhos de Deus e a enveredar por caminhos de egoísmo e de autossuficiência.
O que é que significa a inimizade e a luta entre a “descendência” da mulher e a “descendência” da serpente? Provavelmente, o autor jahwista está, apenas, a dar uma explicação etiológica (uma “etiologia” é uma tentativa de explicar o porquê de uma determinada realidade que o autor conhece no seu tempo, a partir de um pretenso acontecimento primordial, que seria o responsável pela situação atual) para o fato de a serpente inspirar horror aos humanos e de toda a gente lhe procurar “esmagar a cabeça”; mas a interpretação judaica e cristã viu nestas palavras uma profecia messiânica: Deus anuncia que um “filho da mulher” (o Messias) acabará com as consequências do pecado e inserirá a humanidade numa dinâmica de graça.
Atenção: o autor sagrado não está a falar de um pecado cometido nos primórdios da humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher; mas está a falar do pecado cometido por todos os homens e mulheres de todos os tempos… Ele está apenas a ensinar que a raiz de todos os males está no fato de o homem prescindir de Deus e construir o mundo a partir de critérios de egoísmo e de autossuficiência. Não conhecemos bem este quadro?

ATUALIZAÇÃO

Um dos mistérios que mais questiona os nossos contemporâneos é o mistério do mal… Esse mal que vemos, todos os dias, tornar sombria e deprimente essa “casa” que é o mundo, vem de Deus, ou vem do homem? A Palavra de Deus responde: o mal nunca vem de Deus… Deus criou-nos para a vida e para a felicidade e deu-nos todas as condições para imprimirmos à nossa existência uma dinâmica de vida, de felicidade, de realização plena.

O mal resulta das nossas escolhas erradas, do nosso orgulho, do nosso egoísmo e autossuficiência. Quando o homem escolhe viver orgulhosamente só, ignorando as propostas de Deus e prescindindo do amor, constrói cidades de egoísmo, de injustiça, de prepotência, de sofrimento, de pecado… Quais os caminhos que eu escolho? As propostas de Deus fazem sentido e são, para mim, indicações seguras para a felicidade, ou prefiro ser eu próprio a fazer as minhas escolhas, à margem das propostas de Deus?

O nosso texto deixa também claro que prescindir de Deus e caminhar longe dele leva o homem ao confronto e à hostilidade com os outros homens e mulheres. Nasce, então, a injustiça, a exploração, a violência. Os outros homens e mulheres deixam de ser irmãos para passarem a ser ameaças ao próprio bem-estar, à própria segurança, aos próprios interesses. Como é que eu me situo face aos meus irmãos? Como é que eu me relaciono com aqueles que são diferentes, que invadem o meu espaço e interesses, que me questionam e interpelam?

O nosso texto ensina, ainda, que prescindir de Deus e dos seus caminhos significa construir uma história de inimizade com o resto da criação. A natureza deixa de ser, então, a casa comum que Deus ofereceu a todos os homens como espaço de vida e de felicidade, para se tornar algo que eu uso e exploro em meu proveito próprio, sem considerar a sua dignidade, beleza e grandeza. O que é que a criação de Deus significa para mim: algo que eu posso explorar de forma egoísta, ou algo que Deus ofereceu a todos os homens e mulheres e que eu devo respeitar e guardar com amor?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 97

Refrão: Cantai ao Senhor um cântico novo:
 o Senhor fez maravilhas.

Cantai ao Senhor um cântico novo,
pelas maravilhas que Ele operou.
A sua mão e o seu santo braço
Lhe deram a vitória.

O Senhor deu a conhecer a salvação,
revelou aos olhos das nações a sua justiça.
Recordou-Se da sua bondade e fidelidade
em favor da casa de Israel.

Os confins da terra puderam ver
a salvação do nosso Deus.
Aclamai o Senhor, terra inteira,
exultai de alegria e cantai.

LEITURA II – Rom 15, 4-9

A Carta aos Romanos – já o dissemos no passado domingo – é uma carta de reconciliação, endereçada aos romanos, mas dirigida a toda a Igreja fundada por Jesus. Pretende – numa altura em que fundos culturais diversos e sensibilidades diferentes dividiam os cristãos vindos do judaísmo e os cristãos vindos do paganismo – afastar o perigo da divisão da Igreja e levar todos os crentes (judeo-cristãos e pagano-cristãos) a redescobrir a unidade da fé e a igualdade fundamental de todos diante de Deus. Desde que optaram por Cristo e receberam o batismo, todos receberam o dom de Deus, tiveram acesso à salvação e tornaram-se irmãos, chamados a viver no amor.
O texto que nos é proposto pertence à segunda parte da carta. Nessa parte (que vai de Rm 12,1 a 15,13), Paulo exorta os cristãos a viver no amor; em concreto, dá aos cristãos algumas indicações de caráter prático acerca do comportamento que devem assumir para com os irmãos.

O texto que nos é apresentado como segundo leitura tem de ser entendido no contexto mais amplo de uma perícope que vai de 15,1 a 15,13. Literariamente, esta perícope está construída na base de dois parágrafos simétricos (cf. Rm 15,1-6 e 15,7-13) que apresentam uma mesma sequência e uma mesma organização: a) exortação; b) motivação cristológica; c) iluminação a partir da Escritura; d) súplica final.
Na primeira parte da perícope (cf. Rm 15,1-6), Paulo exorta os cristãos a vencer qualquer tipo de egoísmo e de autossuficiência e a dar as mãos aos mais débeis e necessitados (a); como motivo para este comportamento, Paulo apresenta o exemplo de Cristo, que não procurou seguir um caminho de facilidade, mas escolheu o amor e o dom da vida (b); este comportamento que Paulo pede aos cristãos (e é aqui que começa o nosso texto de hoje) é aquele que a Escritura – que foi escrita para nossa instrução – nos sugere (c); e, finalmente, Paulo pede ao “Deus da perseverança e da consolação” que dê aos cristãos de Roma a harmonia, a fim de que louvem a Deus com um só coração e uma só alma (d).
Na segunda parte da perícope (cf. Rm 15,7-13), Paulo começa por exortar os crentes a não fazerem discriminações, mas a acolherem todos (a); como motivo para este comportamento, Paulo aponta o exemplo de Cristo, que acolheu a todos os homens (b); e Paulo justifica o que disse atrás com o exemplo da Escritura (e é neste ponto que termina o trecho que a liturgia nos propõe como segunda leitura), citando explicitamente vários textos do Antigo Testamento (c); finalmente, Paulo pede ao “Deus da esperança” que cumule os crentes “de alegria e de paz, na fé” (d).
O mais importante de tudo isto é a mensagem fundamental que sobressai nesta dupla estrutura: a comunidade deve viver em harmonia, acolhendo e ajudando os mais fracos, sem discriminar nem excluir ninguém, no amor e na partilha. Cristo é o exemplo que os membros da comunidade devem ter sempre diante dos olhos… Convém também não esquecer que o ser capaz de viver deste jeito é um dom de Deus – dom que os crentes devem pedir em todos os momentos ao Pai.

ATUALIZAÇÃO

A comunidade cristã – como rosto visível de Cristo no mundo – tem de ser o lugar do amor, da partilha fraterna, da harmonia, do acolhimento. No entanto, com bastante frequência encontramos comunidades onde os irmãos estão divididos: criticam os outros de forma avulsa, tomam atitudes agressivas que afastam os mais débeis, discriminam aqueles que não entram na sua “panelinha”, estão aferrados ao poder e fazem tudo para dominar os outros e para afirmar a sua superioridade… Isto acontece na minha comunidade? Eu tenho algumas responsabilidades nessa situação? O que posso fazer para mudar as coisas?

Convém não esquecer que a conversão à harmonia, à partilha com os mais pobres, ao amor fraterno, ao dom da vida, é algo exigente, que não pode ser feito contando apenas com a boa vontade do homem; mas é algo que só pode ser feito com a força e com a ajuda de Deus… Lembro-me de pedir a Deus a sua ajuda para vencer o meu egoísmo e a minha autossuficiência e para amar verdadeiramente os meus irmãos? Estou disposto a ir ao seu encontro e a deixar que Ele converta o meu coração e a minha vida?

ALELUIA – cf. Lc 1,28

Aleluia. Aleluia.

Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco,
bendita sois Vós entre as mulheres.

EVANGELHO – Lc 1, 26-38

O texto que nos é hoje proposto pertence ao “Evangelho da Infância” na versão de Lucas. De acordo com os biblistas atuais, os textos do “Evangelho da Infância” pertencem a um gênero literário especial, chamado homologese. Este gênero não pretende ser um relato jornalístico e histórico de acontecimentos; mas é, sobretudo, uma catequese destinada a proclamar certas realidades salvíficas (que Jesus é o Messias, que Ele vem de Deus, que Ele é o “Deus conosco”). Desenvolve-se em forma de narração e recorre às técnicas do midrash haggádico (uma técnica de leitura e de interpretação do texto sagrado usada pelos rabis judeus da época de Jesus). A homologese utiliza e mistura tipologias (fatos e pessoas do Antigo Testamento, encontram a sua correspondência em fatos e pessoas do Novo Testamento) e aparições apocalípticas (anjos, aparições, sonhos) para fazer avançar a narração e para explicitar determinada catequese sobre Jesus. O Evangelho que nos é hoje proposto deve ser entendido a esta luz: não interessa, pois, estar aqui à procura de fatos históricos; interessa, sobretudo, perceber o que é que a catequese cristã primitiva nos ensina, através destas narrações, sobre Jesus.
A cena situa-nos numa aldeia da Galileia, chamada Nazaré. A Galileia, região a norte da Palestina, à volta do Lago de Tiberíades, era considerada pelos judeus uma terra longínqua e estranha, em permanente contacto com as populações pagãs e onde se praticava uma religião heterodoxa, influenciada pelos costumes e pelas tradições pagãs. Daí a convicção dos mestres judeus de Jerusalém de que “da Galileia não pode vir nada de bom”. Quanto a Nazaré, era uma aldeia pobre e ignorada, nunca nomeada na história religiosa judaica e, portanto (de acordo com a mentalidade judaica), completamente à margem dos caminhos de Deus e da salvação.
Maria, a jovem de Nazaré que está no centro deste episódio, era “uma virgem desposada com um homem chamado José”. O casamento hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas etapas: havia uma primeira fase, na qual os noivos se prometiam um ao outro (os “esponsais”); só numa segunda fase surgia o compromisso definitivo (as cerimônias do matrimônio propriamente dito)… Entre os “esponsais” e o rito do matrimônio, passava um tempo mais ou menos longo, durante o qual qualquer uma das partes podia voltar atrás, ainda que sofrendo uma penalidade. Durante os “esponsais”, os noivos não viviam em comum; mas o compromisso que os dois assumiam tinha já um caráter estável, de tal forma que, se surgia um filho, este era considerado filho legítimo de ambos. A Lei de Moisés considerava a infidelidade da “prometida” como uma ofensa semelhante à infidelidade da esposa (cf. Dt 22,23-27)… E a união entre os dois “prometidos” só podia dissolver-se com a fórmula jurídica do divórcio. José e Maria estavam, portanto, na situação de “prometidos”: ainda não tinham celebrado o matrimônio, mas já tinham celebrado os “esponsais”.

Depois da apresentação do “ambiente” do quadro, Lucas apresenta o diálogo entre Maria e o anjo.
A conversa começa com a saudação do anjo. Na boca deste, são colocados termos e expressões com ressonância vétero-testamentária, ligados a contextos de eleição, de vocação e de missão. Assim, o termo “ave” (em grego, “kaire”) com que o anjo se dirige a Maria, é mais do que uma saudação: é o eco dos anúncios de salvação à “filha de Sião” – uma figura fraca e delicada que personifica o Povo de Israel, em cuja fraqueza se apresenta e representa essa salvação oferecida por Deus e que Israel deve testemunhar diante dos outros povos (cf. 2 Re 19,21-28; Is 1,8;12,6; Jer 4,31; Sof 3,14-17). A expressão “cheia de graça” significa que Maria é objeto da predileção e do amor de Deus. A outra expressão “o Senhor está contigo” é uma expressão que aparece com frequência ligada aos relatos de vocação no Antigo Testamento (cf. Ex 3,12 - vocação de Moisés; Jz 6,12 - vocação de Gedeão; Jer 1,8.19 - vocação de Jeremias) e que serve para assegurar ao “chamado” a assistência de Deus na missão que lhe é pedida. Estamos, portanto, diante do “relato de vocação” de Maria: a visita do anjo destina-se a apresentar à jovem de Nazaré uma proposta de Deus. Essa proposta vai exigir uma resposta clara de Maria.
Qual é, então, o papel proposto a Maria no projeto de Deus?
A Maria, Deus propõe que aceite ser a mãe de um “filho” especial… Desse “filho” diz-se, em primeiro lugar, que ele se chamará “Jesus”. O nome significa “Deus salva”. Além disso, esse “filho” é apresentado pelo anjo como o “Filho do Altíssimo”, que herdará “o trono de seu pai David” e cujo reinado “não terá fim”. As palavras do anjo levam-nos a 2 Sm 7 e à promessa feita por Deus ao rei David através das palavras do profeta Nathan. Esse “filho” é descrito nos mesmos termos em que a teologia de Israel descrevia o “messias” libertador. O que é proposto a Maria é, pois, que ela aceite ser a mãe desse “messias” que Israel esperava, o libertador enviado por Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação definitivas.
Como é que Maria responde ao projeto de Deus?
A resposta de Maria começa com uma objeção… A objeção faz sempre parte dos relatos de vocação do Antigo Testamento (cf. Ex 3,11; 6,30; Is 6,5; Jer 1,6). É uma reação natural de um “chamado”, assustado com a perspetiva do compromisso com algo que o ultrapassa; mas é, sobretudo, uma forma de mostrar a grandeza e o poder de Deus que, apesar da fragilidade e das limitações dos “chamados”, faz deles instrumentos da sua salvação no meio dos homens e do mundo.
Diante da “objeção”, o anjo garante a Maria que o Espírito Santo virá sobre ela e a cobrirá com a sua sombra. Este Espírito é o mesmo que foi derramado sobre os juízes (Oteniel – cf. Jz 3,10; Gedeão – cf. Jz 6,34; Jefté – cf. Jz 11,29; Sansão – cf. Jz 14,6), sobre os reis (Saul – cf. 1 Sm 11,6; David – cf. 1 Sm 16,13), sobre os profetas (cf. Maria, a profetisa irmã de Aarão – cf. Ex 15,20; os anciãos de Israel – cf. Nm 11,25-26; Ezequiel – cf. Ez 2,1; 3,12; o Trito-Isaías – cf. Is 61,1), a fim de que eles pudessem ser uma presença eficaz da salvação de Deus no meio do mundo. A “sombra” ou “nuvem” leva-nos, também, à “coluna de nuvem” (cf. Ex 13,21) que acompanhava a caminhada do Povo de Deus em marcha pelo deserto, indicando o caminho para a Terra Prometida da liberdade e da vida nova. A questão é a seguinte: apesar da fragilidade de Maria, Deus vai, através dela, fazer-se presente no mundo para oferecer a salvação a todos os homens.
O relato termina com a resposta final de Maria: “eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”. Afirmar-se como “serva” significa, mais do que humildade, reconhecer que se é um eleito de Deus e aceitar essa eleição, com tudo o que ela implica – pois, no Antigo Testamento, ser “servo do Senhor” é um título de glória, reservado àqueles que Deus escolheu, que ele reservou para o seu serviço e que ele enviou ao mundo com uma missão (essa designação aparece, por exemplo, no Deutero-Isaías – cf. Is 42,1; 49,3; 50,10; 52,13; 53,2.11 – em referência à figura enigmática do “servo de Jahwéh”). Desta forma, Maria reconhece que Deus a escolheu, aceita com disponibilidade essa escolha e manifesta a sua disposição de cumprir, com fidelidade, o projeto de Deus.

ATUALIZAÇÃO

A liturgia deste dia afirma, de forma clara e insofismável, que Deus ama os homens e tem um projeto de vida plena para lhes oferecer. Como é que esse Deus cheio de amor pelos seus filhos intervém na história humana e concretiza, dia a dia, essa oferta de salvação? A história de Maria de Nazaré (bem como a de tantos outros “chamados”) responde, de forma clara, a esta questão: é através de homens e mulheres atentos aos projetos de Deus e de coração disponível para o serviço dos irmãos que Deus atua no mundo, que Ele manifesta aos homens o seu amor, que Ele convida cada pessoa a percorrer os caminhos da felicidade e da realização plena. Já pensamos que é através dos nossos gestos de amor, de partilha e de serviço que Deus se torna presente no mundo e transforma o mundo?

Outra questão é a dos instrumentos de que Deus se serve para realizar os seus planos… Maria era uma jovem mulher de uma aldeia obscura dessa “Galileia dos pagãos” de onde não podia “vir nada de bom”. Não consta que tivesse uma significativa preparação intelectual, extraordinários conhecimentos teológicos, ou amigos poderosos nos círculos de poder e de influência da Palestina de então… Apesar disso, foi escolhida por Deus para desempenhar um papel primordial na etapa mais significativa na história da salvação. A história vocacional de Maria deixa claro que, na perspectiva de Deus, não são o poder, a riqueza, a importância ou a visibilidade social que determinam a capacidade para levar a cabo uma missão. Deus age através de homens e mulheres, independentemente das suas qualidades humanas. O que é decisivo é a disponibilidade e o amor com que se acolhem e testemunham as propostas de Deus.

Diante dos apelos de Deus ao compromisso, qual deve ser a resposta do homem? É aí que somos colocados diante do exemplo de Maria… Confrontada com os planos de Deus, Maria responde com um “sim” total e incondicional. Naturalmente, ela tinha o seu programa de vida e os seus projetos pessoais; mas, diante do apelo de Deus, esses projetos pessoais passaram naturalmente e sem dramas a um plano secundário. Na atitude de Maria não há qualquer sinal de egoísmo, de comodismo, de orgulho, mas há uma entrega total nas mãos de Deus e um acolhimento radical dos caminhos de Deus. O testemunho de Maria é um testemunho questionante, que nos interpela fortemente… Que atitude assumimos diante dos projetos de Deus: acolhemo-los sem reservas, com amor e disponibilidade, numa atitude de entrega total a Deus, ou assumimos uma atitude egoísta de defesa intransigente dos nossos projetos pessoais e dos nossos interesses egoístas?

É possível alguém entregar-se tão cegamente a Deus, sem reservas, sem medir os prós e os contras? Como é que se chega a esta confiança incondicional em Deus e nos seus projetos? Naturalmente, não se chega a esta confiança cega em Deus e nos seus planos sem uma vida de diálogo, de comunhão, de intimidade com Deus. Maria de Nazaré foi, certamente, uma mulher para quem Deus ocupava o primeiro lugar e era a prioridade fundamental. Maria de Nazaré foi, certamente, uma pessoa de oração e de fé, que fez a experiência do encontro com Deus e aprendeu a confiar totalmente n’Ele. No meio da agitação de todos os dias, encontro tempo e disponibilidade para ouvir Deus, para viver em comunhão com Ele, para tentar perceber os seus sinais nas indicações que Ele me dá dia a dia?

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