A
liturgia deste domingo propõe-nos uma reflexão sobre os horizontes últimos do
homem e garante-nos a vida que não acaba.
Na
primeira leitura, temos o testemunho de sete irmãos que deram a vida pela sua
fé, durante a perseguição movida contra os judeus por Antíoco IV Epifanes. Aquilo
que motivou os sete irmãos mártires, que lhes deu força para enfrentar a
tortura e a morte foi, precisamente, a certeza de que Deus reserva a vida
eterna àqueles que, neste mundo, percorrem, com fidelidade, os seus caminhos.
No
Evangelho, Jesus garante que a ressurreição é a realidade que nos espera. No
entanto, não vale a pena estar a julgar e a imaginar essa realidade à luz das
categorias que marcam a nossa existência finita e limitada neste mundo; a nossa
existência de ressuscitados será uma existência plena, total, nova. A forma
como isso acontecerá é um mistério; mas a ressurreição é uma certeza absoluta
no horizonte do crente.
Na
segunda leitura temos um convite a manter o diálogo e a comunhão com Deus,
enquanto esperamos que chegue a segunda vinda de Cristo e a vida nova que Deus
nos reserva. Só com a oração será possível mantermo-nos fiéis ao Evangelho e
ter a coragem de anunciar a todos os homens a Boa Nova da salvação.
1ª
leitura: 2Mc. 7,1-2.9-14 - AMBIENTE
Em
323 a.C., Alexandre, o Grande, morreu e o império foi dividido pelos seus
generais (“diadocos”). A Palestina (desde 333 a.C., integrada no império de
Alexandre) ficou, inicialmente, nas mãos dos Ptolomeus (que dominavam ainda o
Egito e a Fenícia). No entanto, a partir do ano 200 (batalha das “fontes do
Jordão”), a Palestina passou para as mãos dos Selêucidas (outra família de
generais de Alexandre, que já dominava a Síria e a Mesopotâmia).
Os
Ptolomeus tiveram uma atitude relativamente tolerante para com o judaísmo e
respeitaram, no geral, as tradições e a fé do Povo de Deus; mas, sob a
autoridade dos Selêucidas, sobreveio uma fase em que a cultura helénica se
tornou mais agressiva, ameaçando pôr em causa a sobrevivência do judaísmo. Foi,
sobretudo, no reinado de Antíoco IV Epifanes (175-164 a.C.) que o helenismo foi
imposto – inclusive pela força – ao Povo de Deus. Muitos judeus – apostados em
manter vivas as suas tradições – foram perseguidos e mortos.
O
texto que nos é proposto coloca-nos neste ambiente. Conta-nos o martírio de uma
mãe e dos seus sete filhos, que se recusaram a violar a fé e as tradições
judaicas e foram mortos por isso. Trata-se, provavelmente, de uma tradição
popular (embora com um substrato histórico), transmitida oralmente durante
algum tempo, antes de ser integrada no segundo livro dos Macabeus. O autor não
dá qualquer indicação acerca do lugar do martírio, nem do nome dos sete irmãos.
MENSAGEM
A
história apresenta-nos, portanto, uma família de sete irmãos e da sua mãe, que
o rei pretendia coagir (através da tortura) a abandonar a fé e a comer carne de
porco (proibida pela Lei, por ser carne de um animal “impuro”). O nosso trecho
apresenta as respostas corajosas de alguns destes irmãos, preocupados mais com
a fidelidade aos valores judaicos e à fé dos pais, do que com as ameaças do
rei.
O
que é que “faz correr” estes jovens? O que é que lhes dá a coragem para
enfrentar as exigências dos seus algozes? De acordo com as explicações que o
autor coloca na boca dos nossos heróis, é a fé na ressurreição ou,
literalmente, na revivificação eterna de vida (vers. 9) que os motiva. Os sete
irmãos tiveram a coragem de defender a sua fé até à morte, porque acreditavam
que Deus lhes devolveria outra vez a vida, uma vida semelhante àquela que lhes
ia ser tirada. O Deus criador tem, de acordo com a catequese aqui feita, o
poder de ressuscitar os mártires para a vida eterna…
Não
é, ainda, a noção neo-testamentária de ressurreição (uma vida nova, uma vida
plena, uma vida transformada e elevada à máxima potencialidade) que aqui
aparece; é apenas a idéia de uma revivificação, de um readquirir no outro mundo
uma vida semelhante àquela que aqui foi roubada ao homem (embora se admitisse
que, nesse mundo de Deus, já não haveria pranto, nem sofrimento, nem morte). De
qualquer forma, é a idéia de imortalidade que aqui é formulada. Repare-se, no
entanto, que o nosso texto ainda não ensina a revivificação de todos os homens,
mas apenas dos justos (vers. 14).
É
a primeira vez que a doutrina da ressurreição é explicitamente apresentada na
Bíblia. A partir daqui, esta idéia vai desenvolver-se cada vez mais, até ser
completamente iluminada pelo exemplo de Jesus.
ATUALIZAÇÃO
Como
é que termina a nossa vida? Os sonhos que procuramos concretizar, as nossas
realizações mais queridas, que é que valem se nos espera um dia,
inevitavelmente, a morte? Estamos condenados a deixar e a perder tudo aquilo
que amamos? A nossa morte é uma viagem fatal em direção ao nada? Estas
perguntas são eternas; e, há cerca de 2100 anos, um catequista de Israel já as
colocava… A sua fé ditou-lhe, no entanto, a certeza de que a vida continua para
além desta terra. É essa certeza que ele nos deixa, neste texto; e é essa
experiência de fé que ele nos convida a fazer.
Quem
acredita na ressurreição não pode deixar-se paralisar pelo medo (muitas vezes é
o medo que limita a nossa existência e nos impede de defender os valores em que
acreditamos)… Pode comprometer-se na luta pela justiça e pela verdade, na
certeza de que as forças da morte não o podem vencer ou destruir. É essa
certeza que animou o testemunho de tantos mártires de ontem e de hoje… É essa
certeza que anima a minha luta e que dá força ao meu compromisso?
É,
sem dúvida, inspiradora a “teimosia” com que estes irmãos defendem os valores
em que acreditam. Num mundo em que o que é verdade de manhã, deixou de ser
verdade à tarde, em que o partido dos oportunistas tem cada vez mais
simpatizantes e em que todos os meios são legítimos para alcançar certos fins,
o testemunho destes mártires é uma poderosa interpelação… Somos capazes de
defender, com verdade e verticalidade aquilo em que acreditamos? Somos capazes
de lutar, ainda que contra a corrente, pelos valores que nos parecem mais
significativos e duradouros?
2ª
leitura: 2Ts. 2,16 - 3,5 - AMBIENTE
Já
vimos no passado domingo que a Segunda Carta aos Tessalonicenses (que alguns
admitem não ser de Paulo) nos coloca frente a uma comunidade cristã fervorosa,
que vive com empenho e generosidade o seu compromisso cristão apesar das
provações, constituindo mesmo um modelo para as comunidades vizinhas (cf. 1Ts.
1,7-8); no entanto, a comunidade a que esta carta se destina é, também, uma
comunidade com algumas dúvidas e inquietações em questões de doutrina –
nomeadamente no que diz respeito ao “dia do Senhor” (isto é, à segunda vinda de
Jesus). De resto, Paulo aproveita a ocasião para corrigir comportamentos, fazer
alguns pedidos e exortar a uma fidelidade cada vez maior ao Evangelho de Jesus.
MENSAGEM
Depois
de apresentar a doutrina sobre a segunda vinda do Senhor (2,1-12), o autor da
carta convida os tessalonicenses a assumir a atitude correta, enquanto esperam
essa vinda. Em concreto, o autor da carta pede aos cristãos de Tessalónica que
guardem as tradições recebidas de Paulo, “de viva voz ou por carta”, isto é,
pede-lhes que se mantenham fiéis ao Evangelho de Jesus que o apóstolo lhes
transmitiu (2,13-15).
O
texto que hoje nos é proposto como segunda leitura começa precisamente neste
ponto… O convite a permanecer fiéis às tradições recebidas vai acompanhado de
uma súplica a Deus Pai e a Jesus Cristo, para que tornem possível essa
fidelidade (2,16-17). Mais uma vez fica claro que, no processo de salvação do
homem, há dois planos: o dom de Deus e o esforço de fidelidade do homem. É
preciso, no entanto, deixar claro que, sem a graça de Deus, o esforço do homem
seria inútil.
Na
segunda parte do nosso texto (3,1-5), temos um pedido de oração pelo apóstolo e
pelo seu ministério. À súplica do autor em favor dos destinatários da carta
(2,16-17), deve responder a súplica dos destinatários da carta em favor do apóstolo.
A oração de uns pelos outros é uma forma preciosa de solidariedade cristã.
De
resto, os crentes que já receberam a Palavra transformadora e libertadora de
Jesus devem solicitar a ajuda divina para que a proposta de salvação que Cristo
veio trazer, e que a Igreja ficou encarregada de testemunhar, chegue a todos os
homens; ainda mais se, como parece insinuar-se no presente caso, as
circunstâncias são decididamente adversas à proclamação e vivência do
Evangelho. Repare-se como, também aqui, o papel de Deus é central: o autor da
carta sabe que, sem a ajuda de Deus, será impossível ao apóstolo dar
testemunho.
ATUALIZAÇÃO
Este
texto obriga-me a tomar consciência de que é com a ajuda de Deus que o crente
consegue viver na fidelidade ao Evangelho, enquanto espera a vinda do Senhor.
Tenho consciência de que é d’Ele que brota a minha fidelidade ao Evangelho, ou
considero que as minhas vitórias e conquistas, neste campo, se devem apenas a
mim, aos meus méritos e qualidades?
É
com a ajuda de Deus que o missionário tem a coragem de anunciar fielmente o
Evangelho e de vencer as dificuldades, as injustiças, as incompreensões, as
oposições que são obstáculo ao seu trabalho e ao seu testemunho. Tenho
consciência de que é na oração – minha e dos meus irmãos – que encontro a força
de Deus? Quando, como apóstolo, tenho de enfrentar a oposição e a incompreensão
do mundo, confio em Deus, peço-Lhe ajuda, ou deixo que o medo e o desânimo
tomem conta do meu coração e me levem a desistir da missão que Deus me confiou?
O
pedido de rezar “uns pelos outros” convida-nos a tomar consciência da
solidariedade que deve marcar a experiência comunitária. O cristão nunca é uma
pessoa isolada, mas o membro de uma família de irmãos, chamados a viver no
amor, na partilha, na entrega da vida, como membros de um único corpo – o corpo
de Cristo. É preciso tomar consciência dos laços que nos unem, sentirmo-nos
responsáveis pelos nossos irmãos, partilhar as suas dores e alegrias, fazer
nossos os seus problemas e, no nosso diálogo com Deus, ter presente as
necessidades de todos.
Evangelho:
Lc. 20,27-38 - AMBIENTE
Este
texto situa-nos já em Jerusalém, nos últimos dias antes da morte de Jesus. É a
altura das grandes controvérsias com os líderes judaicos (essas controvérsias
representam, para Lucas, a última oportunidade que Deus dá ao seu Povo, no
sentido de acolher a salvação). Discussão após discussão, torna-se claro que os
líderes judaicos rejeitam a proposta de Jesus: prepara-se, assim, o quadro da
paixão e da morte na cruz.
Os
adversários de Jesus são, no contexto em que o Evangelho deste domingo nos
coloca, os saduceus. No tempo de Jesus, os saduceus formavam um grupo
aristocrático, recrutado sobretudo entre os sacerdotes da classe superior.
Exerciam a sua autoridade à volta do Templo e dominavam o Sinédrio (no entanto,
a sua autoridade nessa instituição não era absoluta desde que os fariseus aí
haviam chegado). A sua importância política era real, ainda que muito limitada
pela presença do procurador romano. Politicamente, eram conservadores e entendiam-se
bem com o opressor romano… Pretendiam manter a situação, para não ver
comprometidos os benefícios políticos, sociais e econômicos de que desfrutavam.
Para
os saduceus, apenas interessava a Lei escrita – a “Torah”. Negavam que a Lei
oral (que era essencial para os fariseus) tivesse qualquer valor. Este apego
conservador à Lei escrita explica que negassem algumas crenças e doutrinas
admitidas nos ambientes populares frequentados pelos fariseus. Por isso, não
aceitavam a ressurreição dos mortos: nenhum versículo da “Torah” apoiava essa
crença.
No
seu conflito com os fariseus, estava em jogo uma certa visão da sociedade e do
poder. Os fariseus não viam com agrado a “democratização” da Lei promovida
pelos fariseus e pelos seus escribas. Esta “democratização” apresentava o
inconveniente de fazer os sacerdotes perder a sua autoridade como intérpretes
da Lei. Diante do povo, os saduceus mostravam-se distantes, severos,
intocáveis.
MENSAGEM
A
questão central do nosso texto gira à volta da ressurreição, um tema que não
significava nada para os saduceus. Percebendo que, quanto a essa questão, a
perspectiva de Jesus estava próxima da dos fariseus, os saduceus apresentaram
uma hipótese acadêmica, com o objetivo de ridicularizar a crença na
ressurreição: uma mulher casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a
lei do levirato (segundo a qual, o irmão de um defunto que morreu sem filhos
devia casar com a viúva, a fim de dar descendência ao falecido e impedir que os
bens da família fossem parar a mãos estranhas, cf. Dt. 25,5-10). Quando
ressuscitarem, ela será mulher de qual dos irmãos?
A
primeira parte da resposta de Jesus (vs. 27-36) afirma que a ressurreição não é
(como pensavam os fariseus do tempo) uma simples continuação da vida que
vivemos neste mundo (na linha de uma revivificação – ideia apresentada na
primeira leitura), mas uma vida nova e distinta, uma vida de plenitude que
dificilmente podemos entender a partir das nossas realidades quotidianas. A
questão do casamento não se porá, então (a expressão “são semelhantes aos
anjos” do v. 30 não é uma expressão de depreciação do matrimônio, mas a
afirmação de que, nessa vida nova, a única preocupação será servir e louvar a
Deus). O poder de Deus, que chama os homens da morte à vida, transforma e
assume a totalidade do ser humano, de forma que nascemos para uma vida
totalmente nova e em que as nossas potencialidades serão elevadas à plenitude.
A nossa capacidade de compreensão deste mistério é limitada, pois estamos a
contemplar as coisas e a classificá-las à luz das nossas realidades terrenas;
no entanto, a ressurreição que nos espera ultrapassa totalmente a nossa
realidade terrena.
A
segunda parte da resposta de Jesus (vers. 37-38) é uma afirmação da certeza da
ressurreição. Como não podia apoiar-se nos textos recentes da Escritura (como
Dn 12,2-3), que sugeriam a fé na ressurreição (pois esses textos não tinham
qualquer valor para os saduceus), Jesus cita-lhes a “Torah” (cf. Ex 3,6): no
episódio da sarça-ardente, Jahwéh revelou-Se a Moisés como “o Deus de Abraão,
de Isaac e de Jacob”… Ora, se Deus Se apresenta dessa forma – muitos anos
depois de Abraão, Isaac e Jacob terem desaparecido deste mundo – isso quer
dizer que os patriarcas não estão mortos (um homem “morto” – ou seja, um homem
reduzido ao estado de uma sombra inconsciente e privada de vida no “sheol”,
segundo a ideia semita corrente – tinha perdido a proteção de Deus, pois já não
existia como homem vivo e consciente). Na perspectiva de Jesus, portanto, os
patriarcas não estão reduzidos ao estado de sombras na obscuridade absoluta do
“sheol”, mas vivem atualmente em Deus. Conclusão: se Abraão, Isaac e Jacob
estão vivos, podemos falar em ressurreição.
ATUALIZAÇÃO
A
questão da ressurreição não é uma questão pacífica e clara para a maioria dos
homens do nosso tempo. Há quem veja na esperança da ressurreição apenas um
“ópio do povo”, destinado a adormecer a justa vontade de lutar pela construção
de um mundo mais justo; há quem veja na ressurreição uma forma de evasão, face
aos problemas que a vida apresenta; há quem veja na ressurreição uma ilusão
onde o homem projeta os seus desejos insatisfeitos… Convencidos de que a vida
se resume aos 70/80 anos que vivemos neste mundo, muitos dos nossos
contemporâneos constroem a sua existência tendo apenas em conta os valores
deste mundo, sem quaisquer horizontes futuros. Que sentido é que isto faz, na
perspectiva da nossa fé?
A
ressurreição é, no entanto, a esperança que dá sentido a toda a caminhada do
cristão. A fé cristã torna a esperança da ressurreição uma certeza absoluta,
pois Cristo ressuscitou e quem se identifica com Cristo nascerá com Ele para a
vida nova e definitiva. A nossa vida presente deve ser, pois, uma caminhada
tranquila, confiante, alegre – ainda quando feita no sofrimento e na dor – em
direção a essa nova realidade.
A
ressurreição não é a revivificação dos nossos corpos e a continuação da vida
que vivemos neste mundo; mas é a passagem para uma vida nova onde, sem
deixarmos de ser nós próprios, seremos totalmente outros… É a plenitudização de
todas as nossas capacidades, a meta final do nosso crescimento, a realização da
utopia da vida plena. Sendo assim, há alguma razão para temermos a morte ou
para vermos nela algo que nos priva de alguma coisa importante (nomeadamente a
relação com aqueles que amamos)?
A
certeza da ressurreição não deve ser, apenas, uma realidade que esperamos; mas
deve ser uma realidade que influencia, desde já, a nossa existência terrena. É
o horizonte da ressurreição que deve influenciar as nossas opções, os nossos
valores, as nossas atitudes; é a certeza da ressurreição que nos dá a coragem
de enfrentar as forças da morte que dominam o mundo, de forma a que o novo céu
e a nova terra que nos esperam comecem a desenhar-se desde já.
•
Temos de ter muito cuidado com a forma como falamos da ressurreição aos homens
do nosso tempo, pois podemos pensá-la, explicá-la e projectá-la à luz da nossa
vida atual e corremos sérios riscos de nos tornarmos ridículos. O que podemos
fazer é afirmar a nossa certeza na ressurreição; depois, temos de confessar a
nossa incapacidade de conceber e de explicar esse mundo novo que nos espera
(como a criança no seio da mãe não compreende nem sabe explicar a vida que a
espera no mundo exterior).
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