O Evangelho
confronta-nos com a pergunta de Jesus: “e vós, quem dizeis que Eu sou?”
Paralelamente, apresenta o caminho messiânico de Jesus, não como um caminho de
glória e de triunfos humanos, mas como um caminho de amor e de cruz. “Conhecer
Jesus” é aderir a Ele e segui-l’O nesse caminho de entrega, de doação, de amor
total.
A primeira
leitura apresenta-nos um misterioso profeta “trespassado”, cuja entrega trouxe
conversão e purificação para os seus concidadãos. Revela, pois, que o caminho
da entrega não é um caminho de fracasso, mas um caminho que gera vida nova para
nós e para os outros. João, o autor do Quarto Evangelho, identificará essa
misteriosa figura profética com o próprio Cristo.
A segunda
leitura reforça a mensagem geral da liturgia deste domingo, insistindo que o
cristão deve “revestir-se” de Jesus, renunciar ao egoísmo e ao orgulho e
percorrer o caminho do amor e do dom da vida. Esse caminho faz dos crentes uma
única família de irmãos, iguais em dignidade e herdeiros da vida em plenitude.
1ª leitura:
Za. 12,10-11;13,1 - AMBIENTE
Como o livro
de Isaías, o livro de Zacarias não pode ser atribuído a um só e mesmo profeta.
Só os capítulos 1-8 podem ser atribuídos a esse Zacarias, filho de Baraquias
(cf. Za. 1,1.7), que atuou em Jerusalém no pós-exílio e teve um papel preponderante
na reconstrução do Templo (estamos à volta de 520 a.C.).
Os capítulos
9-14 parecem ser uma outra coleção de textos, que provêm de um, ou mais
provavelmente de vários autores tardios; costuma falar-se deste conjunto de
textos usando a designação “Deutero-Zacarias”.
A época em
que os textos do Deutero-Zacarias apareceram também é muito discutida (a partir
das referências históricas do livro, é possível deduzir todas as épocas, desde
o séc. VIII até ao séc. II a.C.). No entanto, a opinião mais difundida atualmente
é a que situa a redação destes capítulos em finais do séc. IV e durante o séc.
III a.C. (o ambiente parece revelar a época posterior às vitórias de Alexandre
da Macedônia).
O texto que
nos é proposto integra uma coleção que vai de 12,1 a 14,21. Essa coleção
apresenta-nos um mosaico de temas diversos, embora unidos por uma certa
expectativa messiânica. Depois do anúncio da intervenção definitiva de Deus na
pessoa de um rei/messias que, na humildade, procurará instaurar o reino ideal
(cf. Za. 9,9-10) e da referência a um “pastor” enigmático que virá apascentar o
rebanho de Deus (cf. Za. 11,4-17), os textos apresentam-nos um conjunto de
oráculos que se referem à salvação e glória de Jerusalém. É nesse enquadramento
que podemos situar o nosso texto.
MENSAGEM
O profeta
começa por anunciar a efusão de um espírito de piedade e de súplica sobre a
casa de David e os habitantes de Jerusalém: esse espírito irá provocar uma
transformação interior que colocará toda a gente na órbita de Deus, numa
atitude de confiança e de abertura a Deus.
Tal acção
resultará da atividade profética de um misterioso “trespassado”. Primeiro, o
autor identifica-o com Deus (“olharão para mim”, a quem trespassaram”); mas,
logo a seguir, a frase distingue de novo Deus e o misterioso personagem
evocado. O “’ly” (“para mim”) significa, provavelmente, que o próprio Deus Se
sente atingido pela morte infligida ao seu enviado.
Quem é este
personagem? Há quem o identifique com o rei Josias, morto em Meggido em combate
contra os egípcios (cf. 2Re. 23,29-30); há, também, quem diga que esta figura
se inspira no sumo sacerdote Onias III (cf. 2 Mac 4,34) ou em Simão Macabeu
(cf. 1 Mac 16,11-17; se este personagem fosse Simão Macabeu, teríamos de
colocar a redação deste texto na segunda metade do séc. II a.C.). Pode, ainda,
ser um qualquer profeta cujo nome desconhecemos… De qualquer forma, trata-se de
um mártir inocente e anônimo, por cuja morte os habitantes de Jerusalém se
tornaram responsáveis. A figura que melhor ilumina esta passagem ainda é a do
“servo sofredor” de Is 53, mesmo se os termos utilizados são bastante
diferentes. Como acontece com o “servo de Jahwéh”, o sacrifício deste mártir
inocente é fonte de transformação dos corações (cf. Za. 12,10) e de purificação
(cf. Za. 13,1): a contemplação dessa vítima inocente iniciará no Povo um
processo de arrependimento e de purificação.
A repetida
evocação de David neste contexto (cf. Za. 12,7-8.10.12; 13,1) liga este
personagem com a promessa messiânica.
João, o
autor do Quarto Evangelho, verá em Jesus, morto na cruz e com o coração
trespassado pela lança do soldado, a concretização da figura aqui evocada (cf.
Jo 19,37).
ATUALIZAÇÃO
¨ Esta
figura do “trespassado” faz-nos pensar em todos os “profetas” que lutam pela
justiça e pela verdade e que são torturados, vilipendiados, massacrados por
causa do seu testemunho incômodo. A identificação do “trespassado” com o
próprio Deus diz-nos que o profeta nunca está só e perdido face ao ódio do
mundo, mas que Deus está sempre do seu lado; diz-nos, também, que é de Deus que
brota a missão profética, mesmo quando ela incomoda e questiona os homens.
¨ Fomos
constituídos profetas no momento da nossa opção por Cristo (batismo). Como se
tem “cumprido” a nossa missão profética? Na fidelidade e no empenho, ou na
preguiça e no comodismo? No medo que paralisa, ou na inquebrantável confiança
no Deus que está ao nosso lado?
¨ Como
acolhemos a interpelação e o questionamento dos outros profetas que Deus envia
ao nosso encontro? Com desprezo e arrogância, com frieza e indiferença? Ou com
a convicção de que é o próprio Deus que, através deles, nos interpela?
¨ Este texto
garante-nos que o sofrimento por causa do testemunho profético não é em vão. Do
testemunho profético – mesmo quando “cumprido” na dor, na dificuldade, no fracasso
aos olhos do mundo – resultará sempre a transformação dos corações, a conversão
e, portanto, o nascimento de um mundo novo.
2ª leitura:
Gl. 3,26-29 - AMBIENTE
Continuamos
a ler essa carta enviada aos habitantes da região central da Ásia Menor
(Galácia), onde se discute se Cristo basta para chegar à salvação ou são
precisas também as obras da Lei. Já sabemos que, para Paulo, só Cristo salva;
por isso, os gálatas são convidados a fazer “ouvidos de mercador” às exigências
dos “judaizantes” e a não se preocuparem com a circuncisão, nem com outras
exigências da Lei de Moisés.
Este texto,
em concreto, aparece na segunda parte da carta aos Gálatas (cf. Gl. 3,1-6,18),
em que Paulo apresenta uma reflexão sobre o cristão e a liberdade. Nos
versículos anteriores, Paulo comparara a Lei a um “carcereiro” (cf. Gl. 3,23) e
a um “pedagogo” greco-romano (cf. Gl. 3,24). Estas duas imagens são bem
elucidativas: o carcereiro da época era, com muita frequência, exemplo de
crueldade; e o pedagogo (geralmente um escravo pouco instruído que acompanhava
a criança à escola e a mantinha disciplinada) também não era muito apreciado e
evocava a imagem de reprimendas e castigos. É verdade, considera Paulo (cf. Gl.
3,25), que é melhor ser conduzido pela mão do que perder-se no caminho; mas
seria uma estupidez aspirar a viver sempre no cárcere ou considerar como um
ideal ser sempre conduzido pela mão, sem experimentar a liberdade.
MENSAGEM
Aos gálatas,
tentados a voltar à escravidão da Lei, Paulo recorda a experiência libertadora
que resultou da sua adesão a Cristo.
Pelo
batismo, os crentes foram “revestidos de Cristo” e tornaram-se “filhos de
Deus”. Dizer que os crentes foram “revestidos de Cristo” significa que entre os
batizados e Cristo se estabeleceu uma relação que não é apenas exterior, mas
que toca o âmago da existência: pelo batismo, os cristãos assumiram a
existência do próprio Cristo e tornaram-se, como Ele, pessoas que renunciaram à
vida velha do egoísmo e do pecado, para viverem a vida nova da entrega a Deus e
do amor aos irmãos. Em todos os crentes circula, agora, a vida do próprio
Cristo; essa vida veste-os completamente, da cabeça aos pés.
A primeira
consequência que daqui resulta é que os cristãos são livres: eles receberam de
Cristo uma vida nova e não estão mais sujeitos à escravatura do egoísmo, do
pecado e da morte.
A segunda
consequência que daqui resulta é que os cristãos são iguais. Identificados com
Cristo (porque todos – judeus e não judeus, homens e mulheres – foram
revestidos da mesma vida), não há qualquer diferença ou discriminação quanto à
raça, ou ao sexo; todos são “filhos”, com igual direito quanto à herança (todos
são filhos do mesmo Pai e todos têm acesso, em Cristo, à mesma vida plena). A
“salvação” que Cristo trouxe significa a igualdade fundamental de todos.
A questão é
esta: depois de experimentar isto, os gálatas estarão dispostos a ser, outra
vez, escravos?
ATUALIZAÇÃO
¨ O cristão
é, fundamentalmente, aquele que se “revestiu de Cristo”. Que significa isto, em
concreto? Que assinamos um documento no qual nos comprometemos a viver como
batizados? Que respeitamos apenas as leis e orientações da hierarquia? Que nos
comprometemos somente a ir à missa ao domingo, a ir a Fátima uma vez por ano e
a rezar o terço de vez em quando? Ou significa que assumimos o compromisso de
viver como Cristo, de assumir os seus valores, de fazer da nossa vida um dom de
amor, de nos entregarmos até à morte para construir um mundo de justiça e de
paz para todos?
¨ Para os
judeus, contemporâneos de Jesus e de Paulo de Tarso, os pagãos e as mulheres
eram gente discriminada. “Dou-te graças, Deus altíssimo – diz uma célebre
oração rabínica – porque não me fizeste pagão, escravo ou mulher”. Paulo
proclama, neste texto, que, a partir da nossa identificação com Cristo, toda a
discriminação entre os homens e, sobretudo entre os cristãos, carece de
sentido. A Igreja soube tirar as consequências deste fato? Como acolhemos os
estrangeiros, os discriminados, os divorciados, os homossexuais, os drogados,
as mulheres? Como filhos iguais do mesmo Deus, ou como irmãos “coitados”, que é
preciso tolerar e tratar com caridade mas que não são iguais nem têm a mesma
dignidade dos outros?
Evangelho: Lc. 9,18-24 - AMBIENTE
Estamos na
fase final da etapa da Galileia. Jesus passou algum tempo a apresentar o seu
programa e a levar a Boa Nova aos pobres, aos marginalizados, aos oprimidos
(cf. Lc. 4,16-21). À volta d’Ele, foi-se formando um grupo de “testemunhas”,
que apreciaram a sua atuação e que se juntaram a esse sonho de criar um mundo
novo, de justiça, de liberdade e de paz para todos. Agora, antes de começar a
etapa decisiva da sua caminhada nesta terra (o “caminho” para Jerusalém, onde
Jesus vai concretizar a sua entrega de amor), os discípulos são convidados a
tirar as suas conclusões acerca do que viram, ouviram e testemunharam. Quem é
este Jesus, que se prepara para cumprir a etapa final de uma vida de entrega,
de dom, de amor partilhado? E os discípulos estarão dispostos a seguir esse
mesmo caminho de doação e de entrega da vida ao “Reino”?
MENSAGEM
A cena de
hoje começa com a indicação da oração de Jesus (v. 18). É um dado típico de
Lucas que põe sempre Jesus a rezar antes de um momento fundamental (cf. Lc.
5,16; 6,12; 9,28-29; 10,21; 11,1; 22,32.40-46; 23,34). A oração é o lugar do
reencontro de Jesus com o Pai; depois de rezar, Jesus tem sempre uma mensagem
importante – uma mensagem que vem do Pai – para comunicar aos discípulos. A
questão importante que, no contexto do episódio de hoje, Jesus tem a comunicar,
tem a ver com a questão: “quem é Jesus?”
A época de
Jesus foi uma época de crise profunda para o Povo de Deus; foi, portanto, uma
época em que o sofrimento gerou uma enorme expectativa messiânica. Asfixiado
pela dor que a opressão trazia, o Povo de Deus sonhava com a chegada desse
libertador anunciado pelos profetas – um grande chefe militar que, com a força
das armas, iria restaurar o império de seu pai David e obrigar os romanos
opressores a levantar o jugo de servidão que pesava sobre a nação. Na época
apareceram, aliás, várias figuras que se assumiram como “enviados de Deus”,
criaram à sua volta um clima de ebulição, arrastaram atrás de si grupos de
discípulos exaltados e acabaram, invariavelmente, chacinados pelas tropas
romanas. Jesus é também um destes demagogos, em quem o Povo vê cristalizada a
sua ânsia de libertação?
Aparentemente,
Jesus não é considerado pelas multidões “o messias”: o Povo identifica-o,
preferentemente, com Elias, o profeta que as lendas judaicas consideravam estar
junto de Deus, reservado para o anúncio do grande momento da libertação do Povo
de Deus (v. 19); talvez a sua postura e a sua mensagem não correspondessem
àquilo que se esperava de um rei forte e vencedor.
Os
discípulos, no entanto, companheiros de “caminho” de Jesus, deviam ter uma
perspectiva mais elaborada e amadurecida. De fato, é isso que acontece; por
isso, Pedro não tem dúvidas em afirmar: “Tu és o messias de Deus” (v. 20).
Pedro representa aqui a comunidade dos discípulos – essa comunidade que
acompanhou Jesus, testemunhou os seus gestos e descobriu a sua ligação com
Deus. Dizer que Jesus é o “messias” significa reconhecer nele esse “enviado” de
Deus, da linha davídica, que havia de traduzir em realidade essas esperanças de
libertação que enchiam o coração de todos.
Jesus não
discorda da afirmação de Pedro. Ele sabe, no entanto, que os discípulos
sonhavam com um “messias” político, poderoso e vitorioso e apressa-se a
desfazer possíveis equívocos e a esclarecer as coisas: Ele é o enviado de Deus
para libertar os homens; no entanto, não vai realizar essa libertação pelo
poder das armas, mas pelo amor e pelo dom da vida (v. 22). No seu horizonte
próximo não está um trono, mas a cruz: é aí, na entrega da vida por amor, que
Ele realizará as antigas promessas de salvação feitas por Deus ao seu Povo.
A última parte
do texto (vs. 23-24) contém palavras destinadas aos discípulos: aos de ontem,
de hoje e de amanhã. Todos são convidados a seguir Jesus, isto é, a tomar –
como Ele – a cruz do amor e da entrega, a derrubar os muros do egoísmo e do
orgulho, a renunciar a si mesmo e a fazer da vida um dom. Isto não deve
acontecer em circunstâncias excepcionais, mas na vida quotidiana (“tome a sua
cruz todos os dias”). Desta forma fica definida a existência cristã.
ATUALIZAÇÃO
¨ O
Evangelho de hoje define a existência cristã como um “tomar a cruz” do amor, da
doação, da entrega aos irmãos. Supõe uma existência vivida na simplicidade, no
serviço humilde, na generosidade, no esquecimento de si para se fazer dom aos
outros. É esse o “caminho” que eu procuro percorrer?
¨ Na sociedade
em geral e na Igreja em particular, encontramos muitos cristãos para quem o
prestígio, as honras, os postos elevados, os tronos, os títulos são uma espécie
de droga de que não prescindem e a que não podem fugir. Frequentemente,
servem-se dos carismas e usam as tarefas que lhe são confiadas para se
auto-promover, gerando conflitos, rivalidades, ciúmes e mal-estar. À luz do
“tomar a cruz e seguir Jesus”, que sentido é que isto fará? Como podemos,
pessoal e comunitariamente, lidar com estas situações? Podemos tolerá-las – em
nós ou nos outros? Como é possível usar bem os talentos que nos são confiados,
sem nos deixarmos tentar pelo prestígio, pelo poder, pelas honras? Tem alguma
importância, à luz do que Jesus aqui ensina, que a Igreja apareça em lugar proeminente
nos acontecimentos sociais e mundanos e que exija tratamentos de privilégio?
¨ Quem é
Jesus, para nós? É alguém que conhecemos das fórmulas do catecismo ou dos
livros de teologia, sobre quem sabemos dizer coisas que aprendemos nos livros?
Ou é alguém que está no centro da nossa existência, cujo “caminho” tem um real
impacto no nosso dia a dia, cuja vida circula em nós e nos transforma, com quem
dialogamos, com quem nos identificamos e a quem amamos?
¨ É na
oração que eu procuro perceber a vontade de Deus e encontrar o caminho do amor
e do dom da vida? Nos momentos das decisões importantes da minha vida, sinto a
necessidade de dialogar com Deus e de escutar o que Ele tem para me dizer?
Nenhum comentário:
Postar um comentário