terça-feira, 30 de outubro de 2012

A RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO.


40. Na perspectiva da unidade das Escrituras em Cristo, tanto os teólogos como os pastores necessitam de estar conscientes das relações entre o Antigo e o Novo Testamento. Em primeiro lugar, é evidente que o próprio Novo Testamento reconhece o Antigo Testamento como Palavra de Deus e, por conseguinte, admite a autoridade das Sagradas Escrituras do povo judeu.[131] Reconhece-as implicitamente, quando usa a mesma linguagem e frequentemente alude a trechos destas Escrituras; reconhece-as explicitamente, porque cita muitas partes servindo-se delas para argumentar. Uma argumentação baseada nos textos do Antigo Testamento reveste-se assim, no Novo Testamento, de um valor decisivo, superior ao de raciocínios simplesmente humanos. No quarto Evangelho, a este propósito Jesus declara que «a Escritura não pode ser anulada» (Jo 10, 35) e São Paulo especifica de modo particular que a revelação do Antigo Testamento continua a valer para nós, cristãos (cf. Rm 15, 4; 1 Cor 10, 11).[132] Além disso, afirmamos que «Jesus de Nazaré foi um judeu e a Terra Santa é terra-mãe da Igreja»;[133] a raiz do cristianismo encontra-se no Antigo Testamento e sempre se nutre desta raiz. Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou qualquer forma emergente de marcionismo, que tende de diversos modos a contrapor entre si o Antigo e o Novo Testamento.[134]

 Além disso, o próprio Novo Testamento se diz em conformidade com o Antigo e proclama que, no mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, encontraram o seu perfeito cumprimento as Escrituras Sagradas do povo judeu. Mas é preciso notar que o conceito de cumprimento das Escrituras é complexo, porque comporta uma tríplice dimensão: um aspecto fundamental de continuidade com a revelação do Antigo Testamento, um aspecto de ruptura e um aspecto de cumprimento e superação. O mistério de Cristo está em continuidade de intenção com o culto sacrificial do Antigo Testamento; mas realizou-se de um modo muito diferente, que corresponde a muitos oráculos dos profetas, e alcançou assim uma perfeição nunca antes obtida. De facto, o Antigo Testamento está cheio de tensões entre os seus aspectos institucionais e os seus aspectos proféticos. O mistério pascal de Cristo está plenamente de acordo – embora de uma forma que era imprevisível – com as profecias e o aspecto prefigurativo das Escrituras; mas apresenta evidentes aspectos de descontinuidade relativamente às instituições do Antigo Testamento.

 41. Estas considerações mostram assim a importância insubstituível do Antigo Testamento para os cristãos, mas ao mesmo tempo evidenciam a originalidade da leitura cristológica. Desde os tempos apostólicos e depois na Tradição viva, a Igreja deixou clara a unidade do plano divino nos dois Testamentos graças à tipologia, que não tem carácter arbitrário mas é intrínseca aos acontecimentos narrados pelo texto sagrado e, por conseguinte, diz respeito a toda a Escritura. A tipologia «descobre nas obras de Deus, na Antiga Aliança, prefigurações do que o mesmo Deus realizou, na plenitude dos tempos, na pessoa do seu Filho encarnado».[135] Por isso os cristãos lêem o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. Se a leitura tipológica revela o conteúdo inesgotável do Antigo Testamento relativamente ao Novo, não deve todavia fazer-nos esquecer que aquele mantém o seu próprio valor de Revelação que Nosso Senhor veio reafirmar (cf. Mc 12, 29-31). Por isso «também o Novo Testamento requer ser lido à luz do Antigo. A catequese cristã primitiva recorreu constantemente a este método (cf. 1 Cor 5, 6-8; 10, 1-11)».[136] Por este motivo, os Padres sinodais afirmaram que «a compreensão judaica da Bíblia pode ajudar a inteligência e o estudo das Escrituras por parte dos cristãos».[137]

 Assim se exprimia, com aguda sabedoria, Santo Agostinho sobre este tema: «O Novo Testamento está oculto no Antigo e o Antigo está patente no Novo».[138] Deste modo, tanto em âmbito pastoral como em âmbito académico, importa que seja colocada bem em evidência a relação íntima entre os dois Testamentos, recordando com São Gregório Magno que aquilo que «o Antigo Testamento prometeu, o Novo Testamento fê-lo ver; o que aquele anuncia de maneira oculta, este proclama abertamente como presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo Testamento; e o melhor comentário do Antigo Testamento é o Novo Testamento».[139]

 As páginas «obscuras» da Bíblia

 42. No contexto da relação entre Antigo e Novo Testamento, o Sínodo enfrentou também o caso de páginas da Bíblia que às vezes se apresentam obscuras e difíceis por causa da violência e imoralidade nelas referidas. Em relação a isto, deve-se ter presente antes de mais nada que a revelação bíblica está profundamente radicada na história. Nela se vai progressivamente manifestando o desígnio de Deus, actuando-se lentamente ao longo de etapas sucessivas, não obstante a resistência dos homens. Deus escolhe um povo e, pacientemente, realiza a sua educação. A revelação adapta-se ao nível cultural e moral de épocas antigas, referindo consequentemente factos e usos como, por exemplo, manobras fraudulentas, intervenções violentas, extermínio de populações, sem denunciar explicitamente a sua imoralidade. Isto explica-se a partir do contexto histórico, mas pode surpreender o leitor moderno, sobretudo quando se esquecem tantos comportamentos «obscuros» que os homens sempre tiveram ao longo dos séculos, inclusive nos nossos dias. No Antigo Testamento, a pregação dos profetas ergue-se vigorosamente contra todo o tipo de injustiça e de violência, colectiva ou individual, tornando-se assim o instrumento da educação dada por Deus ao seu povo como preparação para o Evangelho. Seria, pois, errado não considerar aqueles passos da Escritura que nos aparecem problemáticos. Entretanto deve-se ter consciência de que a leitura destas páginas requer a aquisição de uma adequada competência, através duma formação que leia os textos no seu contexto histórico-literário e na perspectiva cristã, que tem como chave hermenêutica última «o Evangelho e o mandamento novo de Jesus Cristo realizado no mistério pascal».[140] Por isso exorto os estudiosos e os pastores a ajudarem todos os fiéis a abeirar-se também destas páginas por meio de uma leitura que leve a descobrir o seu significado à luz do mistério de Cristo.

 Cristãos e judeus, relativamente às Sagradas Escrituras

 43. Depois de considerar a íntima relação que une o Novo Testamento ao Antigo, é espontâneo fixar a atenção no vínculo peculiar que isso cria entre cristãos e judeus, um vínculo que não deveria jamais ser esquecido. Aos judeus, o Papa João Paulo II declarou: sois «os nossos “irmãos predilectos” na fé de Abraão, nosso patriarca».[141] Por certo, estas afirmações não significam ignorar as rupturas atestadas no Novo Testamento relativamente às instituições do Antigo Testamento e menos ainda o cumprimento das Escrituras no mistério de Jesus Cristo, reconhecido Messias e Filho de Deus. Mas esta diferença profunda e radical não implica de modo algum hostilidade recíproca. Pelo contrário, o exemplo de São Paulo (cf. Rm 9–11) demonstra que «uma atitude de respeito, estima e amor pelo povo judeu é a única atitude verdadeiramente cristã nesta situação que, misteriosamente, faz parte do desígnio totalmente positivo de Deus».[142] De facto, o Apóstolo afirma que os judeus, «quanto à escolha divina, são amados por causa dos Patriarcas, pois os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 28-29).

 Além disso, usa a bela imagem da oliveira para descrever as relações muito estreitas entre cristãos e judeus: a Igreja dos gentios é como um rebento de oliveira brava enxertado na oliveira boa que é o povo da Aliança (cf. Rm 11, 17-24). Alimentamo-nos, pois, das mesmas raízes espirituais. Encontramo-nos como irmãos; irmãos que em certos momentos da sua história tiveram um relacionamento tenso, mas agora estão firmemente comprometidos na construção de pontes de amizade duradoura.[143] Como disse o Papa João Paulo II noutra ocasião: «Temos muito em comum. Juntos podemos fazer muito pela paz, pela justiça e por um mundo mais fraterno e mais humano».[144]
 Desejo afirmar uma vez mais quão precioso é para a Igreja o diálogo com os judeus. É bom que, onde isto se apresentar como oportuno, se criem possibilidades mesmo públicas de encontro e diálogo, que favoreçam o crescimento do conhecimento mútuo, da estima recíproca e da colaboração inclusive no próprio estudo das Sagradas Escrituras.

 A interpretação fundamentalista da Sagrada Escritura

 44. A atenção que quisemos dar até agora ao tema da hermenêutica bíblica, nos seus diversos aspectos, permite-nos abordar o tema – muitas vezes aflorado no debate sinodal – da interpretação fundamentalista da Sagrada Escritura.[145] Sobre este tema, a Pontifícia Comissão Bíblica, no documento A interpretação da Bíblia na Igreja, formulou indicações importantes. Neste contexto, desejo chamar a atenção sobretudo para aquelas leituras que não respeitam o texto sagrado na sua natureza autêntica, promovendo interpretações subjectivistas e arbitrárias. Na realidade, o «literalismo» propugnado pela leitura fundamentalista constitui uma traição tanto do sentido literal como do espiritual, abrindo caminho a instrumentalizações de variada natureza, difundindo por exemplo interpretações anti-eclesiais das próprias Escrituras. O aspecto problemático da «leitura fundamentalista é que, recusando ter em conta o carácter histórico da revelação bíblica, torna-se incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo evita a íntima ligação do divino e do humano nas relações com Deus. (…) Por este motivo, tende a tratar o texto bíblico como se fosse ditado palavra por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada numa linguagem e numa fraseologia condicionadas por uma dada época».[146] Ao contrário, o cristianismo divisa nas palavras a Palavra, o próprio Logos, que estende o seu mistério através de tal multiplicidade e da realidade de uma história humana.[147] A verdadeira resposta a uma leitura fundamentalista é «a leitura crente da Sagrada Escritura, praticada desde a antiguidade na Tradição da Igreja. [Tal leitura] procura a verdade salvífica para a vida do indivíduo fiel e para a Igreja. Esta leitura reconhece o valor histórico da tradição bíblica. Precisamente por este valor de testemunho histórico é que ela quer descobrir o significado vivo das Sagradas Escrituras destinadas também à vida do fiel de hoje»,[148] sem ignorar, portanto, a mediação humana do texto inspirado e os seus géneros literários.



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III-Parte



por Papa Bento XVI *

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