Uma
das características do tempo da quaresma, é a penitência, sobretudo no
comer e no beber. Tal penitência pode consistir numa simples
abstinência, que é renúncia a algum alimento, ou pode chegar ao jejum,
que consiste no privar-se das refeições de modo total ou parcial.
É muito importante a prática de tal
forma de penitência. Aliás, eram o jejum e a abstinência que, na Igreja
Antiga, davam uma fisionomia própria ao tempo quaresmal.
Mas, por que jejuar? Por que se abster de alimentos? É necessário
compreender o sentido profundo que o cristianismo dá a essas práticas,
para não ficarmos numa atitude superficial, às vezes até folclórica ou,
por ignorância pura e simples, desprezarmos algo tão belo e precioso no
caminho espiritual do cristão.
O jejum e a abstinência têm quatro sentidos muito específicos e claros:
1. O jejum nos ensina que somos radicalmente
dependentes de Deus. Na Escritura, a palavra nephesh significa, ao mesmo
tempo, vida e garganta. A idéia que isso exprime é que nossa vida não
vem de nós mesmos, não a damos a nós próprios; nós a recebemos
continuamente: ela entra pela nossa garganta com o alimento que comemos,
a água que bebemos, o ar que respiramos. Jamais o homem pode pensar que
se basta a si mesmo, que pode se fechar para Deus. Quando jejuamos,
sentimos uma certa fraqueza e lerdeza, às vezes, nos vem mesmo um pouco
de tontura. Isso faz parte da “psicologia do jejum”: recorda-nos o que
somos sem esta vida que vem de fora, que nos é dada por Deus
continuamente. A prática do jejum, impede-nos, então, da ilusão de
pensar que a nossa existência, uma vez recebida, é autônoma, fechada,
independente. Nunca poderemos dizer: “A vida é minha; faço como eu
quero!” A vida será, sempre e em todas as suas etapas, um dom de Deus,
um presente gratuito, e nós seremos sempre dependentes dele. Esta
dependência nos amadurece, nos liberta de nossos estreitos e mesquinhos
horizontes, nos livra da auto-suficiência e nos faz compreender “na
carne” nossa própria verdade, recordando-nos que a vida é para ser
vivida em diálogo de amor com Aquele que no-la deu.
2. O alimento é uma de nossas necessidades básicas,
um de nossos instintos mais fundamentais, juntamente com a sexualidade. A
abstenção do alimento nos exercita na disciplina, fortalecendo nossa
força de vontade, aguçando nossa capacidade de vigilância, dando-nos a
capacidade para uma verdadeira disciplina. Nossa tendência é ir atrás de
nossos instintos, de nossas tendências, de nossa vontade
desequilibrada. Aliás, essa é a grande fraqueza e o grande engano do
mundo atual. Dizemos: “não vou me reprimir; não vou me frustrar”, e
vamos nos escravizando aos desejos mais banais e às paixões mais
contrárias ao Evangelho e ao amor pelo próximo. O próprio Jesus, de modo
particular, e a Escritura, de modo geral, nos exortam à vigilância e à
sobriedade. O jejum e a abstinência, portanto, são um treino para que
sejamos senhores de nós mesmos, de nossas paixões, desejos e vontades.
Assim, seremos realmente livres para Cristo, sendo livres para realizar
aquilo que é reto e desejável aos olhos de Deus! O próprio Jesus afirmou
que quem comete pecado é escravo do pecado! Não adianta: sem o
exercício da abstinência, jamais seremos fortes. Não basta malhar o
corpo; é preciso malhar o coração!
3. O jejum tem também a função de nos unir a Cristo,
no seu período de quarenta dias no deserto. Quaresma de Cristo,
quaresma do cristão. Faz-nos, assim, participantes da paixão do Senhor,
completando em nós o que faltou à cruz de Jesus. O cristão jejua por
amor a Cristo e para unir-se a ele, trazendo na sua carne as marcas da
cruz do Senhor. É uma união com o Senhor que não envolve somente a alma,
com seus sentimentos e afetos, mas também o corpo. É o homem todo, a
pessoa na sua totalidade que se une ao Cristo. Nunca é demais recordar
que o cristianismo não é uma religião simplesmente da alma, mas atinge o
homem em sua totalidade. Pelo jejum, também o corpo reza, também o
corpo luta para colocar-se no âmbito da vida nova de Cristo Jesus.
Também o corpo necessita, como o coração, ser esvaziado do vinagre dos
vícios para ser preenchido pelo mel, que é o Espírito Santo de Jesus.
4. Finalmente, o jejum e a abstinência, fazem-nos
recordar aqueles que passam privação, sobretudo a fome, abrindo-nos para
os irmãos necessitados. Há tantos que, à força, pela gritante injustiça
social em nosso País, jejuam e se abstêm todos os dias, o ano todo! O
jejum nos faz sentir um pouco a sua dor, tão concreta, tão real, tão
dolorosa! Por isso mesmo, na tradição mística e ascética da Igreja, o
jejum e a abstinência devem ser acompanhados sempre pela esmola: aquele
alimento do qual me privo, já não é mais meu, mas deve ser destinado ao
pobre. É por isso que os pobres, ainda hoje, nos dias de jejum, pedem
nas portas o “meu jejum”. Eis o jejum perfeito: ele me abre para Deus e
para os irmãos. Neste ponto, é enorme a insistência seja da Sagrada
Escritura, seja dos Padres da Igreja (os santos doutores dos primeiros
séculos do cristianismo).
Resta-nos, agora, passar da teoria à
prática. Seja nossa quaresma rica do jejum e da abstinência,
enriquecidos com o bem da caridade fraterna, da esmola, que se efetiva
na atenção e preocupação ativa e concreta pelos pobres de todas as
pobrezas.
Dom Henrique Soares da Costa
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