“O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12)
Ao iniciarmos a Quaresma, um lugar que
continuamente será citado e que vai aparecer com frequência nos textos,
reflexões e orações, é o “deserto”. Deserto que deve fazer parte de
nossas vidas em algum momento: espaço de escura e de silêncio, de busca,
de despojamento; lugar que nos faz tomar consciência das coisas
essenciais que dão sentido à nossa existência; ambiente privilegiado
para o encontro tu a tu com o Deus amor que nos habita, ou melhor, em
Quem habitamos. Se nos abrirmos à Sua presença amorosa, caminharemos
livres dos falsos absolutos que cada dia nos tentam, e nossos desertos
existenciais se converterão em um jardim onde florescerá de novo a
esperança.
Como seres humanos, de tempos em tempos
precisamos passar por experiências de despojamento, de esvaziamento, de
vulnerabilidade, de crise..., para poder suavizar nosso coração e, desse
modo, fazer-nos mais receptivos e expansivos.
O “deserto” é o lugar das perguntas, do
discernimento, da busca de profundidade, o ambiente favorável que nos
oferece ferramentas com as quais poder romper as bolhas que nos
aprisionam, impedindo-nos sair para a aventura da vida.
O “deserto” nos sacode e nos desnuda,
porque desmascara nossas falsas seguranças. Por isso, somos movidos a
buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido
adequadamente, é provável que no final vamos poder dizer, como
Kierkegaard, “eu teria me afundado se não tivesse ido ao Fundo”. Com
efeito, antes ou depois, o deserto nos conduzirá para o Fundo estável e
sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra
prometida”.
Num mundo em que a imagem e as redes
sociais ocupam, com suas presenças, toda a nossa vida, todos os nossos
lares, os espaços públicos, fazendo-nos viver a cultura da
superficialidade, muitas pessoas de diferentes condições sociais e
religiosas já começam a sentir a urgente necessidade de escapar de tanta
solicitação externa que as oprime e alimentam o desejo de se ocupar
mais decididamente com o seu mundo interior. Mas, se somos sinceros,
adentrar-nos em nosso “eu profundo” e viver a partir de dentro é algo
que não sabemos e muitas vezes até sentimos medo. É cada vez mais
difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com
o mundo exterior.
Nesse sentido, a liturgia quaresmal
revela-se como uma mediação privilegiada para potencializar nossa
interioridade, ou destravá-la, para que a expansão de nossa vida seja
possível. Tal experiência resgata-nos do entorpecimento e nos dá um
choque de lucidez. Ela oxigena a nossa mente e implode nosso
conformismo; revela-se instigadora e provocativa, fonte inspiradora que
nos liberta do cárcere da rotina. Ela nos faz lembrar que somos
andarilhos, deslocando-nos no traçado da existência em busca de
respostas que dêem sentido à nossa existência.
O caminho para Deus passa pela
experiência mais profunda e autêntica de si mesmo, convidando cada um a
repensar como, em meio às dificuldades de cada tempo, sempre é possível o
percurso em direção à própria interioridade.
Buscar o Deus que “está dentro de mim,
enquanto eu estou fora” (S. Agostinho), significa entrar em relação
direta com nosso interior, com o que nos move, com o que sentimos e
pensamos; significa dissolver bloqueios afetivos já solidificados e
conflitos não resolvidos; é fazer que se calem muitos ruídos parasitas e
que se escute, por fim, o silêncio sonoro que brota do oculto;
desentupir os condutos do coração e processar a lava ardente dos grandes
desejos significa abrir os olhos para uma paisagem desconhecida.
Foi no deserto onde Jesus descobriu o
que move verdadeiramente o coração do ser humano. Foi nessa situação –
de solidão – onde também descobriu o que Deus ama no coração humano.
Nessa experiência de deserto Jesus tomou consciência de duas forças ou
dinamismos que atuam no coração humano: um de expansão, de saída de si,
de vida aberta e em sintonia com o Pai e com os outros; outro, de
retração, de auto-centração, de busca de poder, prestígio, vaidade...
Jesus viveu impulsionado pelo Espírito,
mas sentiu em sua própria carne as forças do mal: “foi tentado por
satanás”; satanás significa “o adversário”, a força hostil a Deus e a
quem trabalha por seu reinado. Na tentação de Jesus se des-vela o que há
em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a
Deus ou de cumplicidade com a injustiça. Qual dos dois dinamismos
internos alimentamos?
O evangelista Marcos ressalta que o
“deserto” não é só um lugar geográfico; é também o lugar que buscamos
para nos silenciar e nos oferecer a oportunidade para reconectar
conscientemente com nosso centro. Em todo processo de crescimento, e
mais ainda nos períodos críticos do mesmo, vamos nos deparar com a
presença dos “animais selvagens” e dos “anjos” em nosso eu profundo.
É assim que nomeamos as experiências que
acontecem quando nos adentramos em nosso mundo interior. Os “animais
selvagens” são aquelas circunstâncias internas e que nos frustram e,
sobretudo, aquele material psíquico que não reconhecemos ou aceitamos em
nosso interior: nossas paixões, nossos traumas, nossas feridas, nossos
instintos, nossa impotência e fragilidade... É a “sombra” que vamos
arrastando, e que continua nos assustando enquanto não a reconhecemos e a
abraçamos abertamente em sua totalidade.
Os “anjos” são os consolos – externos e
internos – que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz,
compreensão, de fortaleza, de amor...
“Animais selvagens e anjos” cumprem seu
papel, pois nos “obrigam” a avançar para nossa verdade profunda,
tirando-nos da superfície de nós mesmos, ou talvez da “zona de conforto”
na qual tínhamos nos instalado, conformando-nos com uma vida
“normótica” e sem criatividade.
O amadurecimento humano implica abraçar
toda nossa verdade, também aquela que nos aparece sob disfarces
temerosos, como o medo, a solidão, a tristeza, a angústia... Lidar com
tais “feras” requer capacidade de olhá-las de frente, com compreensão,
paciência e muito afeto. A espiritualidade cristã nos mostra que
exatamente em nossas feridas nós descobrimos o tesouro do nosso
verdadeiro “eu”, escondido no fundo de nosso coração.
Tradicionalmente, fomos coagidos a viver
uma espiritualidade que nos ensinou a prender os “animais selvagens” e a
levantar junto deles um edifício de “grandes ideais”. E com isto,
passamos a viver constantemente com medo de que as feras pudessem fugir e
nos devorar.
Sabemos que tudo quanto nós reprimimos
nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens” tem muita força.
Quando os prendemos, fica nos faltando a sua força, de que temos
necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os
outros. Somos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar
para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com
as feras perigosas.
Quando, graças à presença dos “anjos”,
deixarmos de rejeitar e de resistir aos “animais selvagens”, iremos
tomando consciência como a luz e a fortaleza vão se expandindo em nosso
interior; nós nos perceberemos mais unificados e harmoniosos. E assim,
estaremos mais preparados para a “travessia” em direção à Páscoa.
Texto bíblico: Mc 1,12-15
Na oração:
- Cuidamos da interioridade quando nos questionamos sobre o modo como olhamos a vida, como atuamos diante das situações, como nos relacionamos com os outros, como vivemos nossas convicções e crenças; e, sobretudo, quando nos exercitamos em determinadas “atividades espirituais” que podem nos ajudar a des-velar o nosso “eu original”, como o silêncio, os momentos de oração, o encontro com a Palavra, a partilha em grupo...
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