Jesus Cristo é o Príncipe da Paz,
que nos conforta e nos acolhe. Mas Ele também demonstrou um lado menos
gentil, por assim dizer, com o qual muitos de nós talvez não nos
sintamos assim tão confortáveis.
Os cristãos em todo o mundo deram início há poucos dias a uma das
mais importantes temporadas do calendário litúrgico: a Quaresma.
Enquanto nos preparamos para a Paixão e Ressurreição do nosso Salvador,
temos uma boa oportunidade de meditar o mistério do Senhor em sua
totalidade.
Ele é, de fato, o Príncipe da Paz, que nos conforta e nos acolhe. Mas Jesus também demonstrou um lado menos gentil, por assim dizer, um lado com o qual muitos de nós talvez não nos sintamos assim tão confortáveis.
Na Quaresma deste ano, paremos um pouco para conhecer e apreciar este
Jesus tão diferente da versão “mansa e humilde” a que estamos
habituados.
Quando alguém fala de Jesus derrubando as bancas dos cambistas no
Templo, você provavelmente já sabe o tópico que está em discussão.
Trata-se da resposta padrão que se costuma dar à alegação de que Jesus
foi sempre pacífico, amoroso e compreensivo. Sim, houve esse incidente
de violência no templo (cf. Mt 21, 10-17; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45-48; Jo 2, 13-17), e nós sabemos que Jesus era excessivamente severo com os líderes religiosos hipócritas de sua época. Mas a imagem dominante é a de que, em todos os outros casos, Ele era muito “tranqüilo”.
Estive pensando sobre isso assim que comecei minha preparação para a
Quaresma, e me peguei perguntando se foi apenas com os cambistas e os
fariseus que Jesus havia agido, por assim dizer, à maneira do “Antigo
Testamento”. Li então os quatro Evangelhos em seguida, em duas sentadas,
para ver que tipo de Cristo emergia do texto bíblico. Foi um exercício
interessante.
Existem duas verdades a respeito de Jesus que parecem estar em
desacordo com o entendimento cristão moderno a seu respeito. Em primeiro
lugar, o Deus feito homem, não sendo limitado pelo tempo, mantinha uma
visão de mundo que nós, definitivamente, veríamos como antiquada e
“obscurantista”. Além disso, Ele recorrentemente “feria” os sentimentos
das pessoas sem pedir desculpas por isso. O manso Cordeiro de Deus era também um leão feroz.
Comecemos pelo primeiro ponto. Nesta era científica, achamos bobagem
acreditar que exista um diabo de verdade, demônios e inferno. Mas Jesus
agia “à moda antiga”. Ele falou de um Adão e Eva literais, da Arca de
Noé, de Jonas no ventre de um grande peixe, e da destruição de Sodoma — a
tudo isso se referindo como a fatos verdadeiros. Falou com bastante
frequência nos Evangelhos sobre Satanás e sobre possessão demoníaca. Os exorcismos faziam parte de sua rotina de trabalho. Uma vez, provocou rebuliço em um grupo de pessoas próximas, declarando que elas eram filhas não de Abraão, mas do diabo, “pai da mentira” (cf. Jo 8, 44). Palavras duras, sem dúvida. Imagine só, chamar a alguém filho do demônio… Mas Ele falava dessa forma porque acreditava nisso.
Em segundo lugar, Jesus acreditava na realidade do pecado, na
necessidade do arrependimento e em um inferno de verdade, no qual
pessoas choram e rangem os dentes. Ele falou dessas coisas regularmente, e não de uma maneira conceitual ou metafórica.
Aos de sua volta, Ele apresentou essas más notícias de forma enérgica.
Comparou alguns indivíduos a ervas daninhas e disse: “O Filho do Homem
enviará seus anjos e eles retirarão do seu Reino toda causa de pecado e
os que praticam o mal; depois, serão jogados na fornalha de fogo”, onde “haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13, 41-42).
Ele explicou como funcionará o julgamento final. Um grupo, daqueles
que fazem a sua vontade, será acolhido em seu Reino. Aos outros, porém,
Ele dirá: “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno,
preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mt 25, 41). Se
fôssemos os “gerentes de turnê” de Jesus, nós nos sentiríamos inclinados
a lembrá-lO de que o mel costuma atrair mais abelhas. Ele nos
responderia: “É verdade”, mas diria só estar fazendo o que faz o seu Pai
(cf. Jo 5, 19).
Jesus não teve receio de nos dizer que Ele poderia ser um juiz severo. Ele veio ao mundo para julgar (cf. Jo 9, 39) e disse certa feita estar ansioso para lançar fogo sobre a terra (cf. Lc
12, 49). Não foram apenas os líderes religiosos e hipócritas de seu
tempo que receberam essa mensagem. Ele preveniu alguns mais próximos de
que, se não se arrependessem, todos pereceriam de maneiras indescritíveis (cf. Lc 13, 1-3).
As Escrituras se encerram com o Apocalipse e um Jesus extremamente
angustiante; assustador, a falar verdade. São João, que uma vez reclinou
a cabeça no peito do Mestre; o discípulo amado, a quem foi confiada a
Mãe do Senhor, encontra Jesus novamente alguns anos depois. Não é um
encontro lá muito feliz. João cai como morto diante de um Jesus, cujos olhos “eram como chama de fogo” (cf. Ap 1, 14-17). Da boca do Príncipe da Paz “sai uma espada afiada, para com ela ferir as nações” (Ap 19, 15). O Jesus do Apocalipse, o mesmo frágil bebê da manjedoura, é de uma ferocidade para além de qualquer descrição.
Mas Jesus nos diz numerosas vezes que seremos odiados por todas as nações (cf. Mt 24, 9), assim como Ele é odiado por causa do seu testemunho (cf. Jo 7, 7). Jesus tem “lados” diferentes, de fato, mas todos eles compõem uma divina harmonia.
O Jesus que fala do fogo do inferno e o que fala da graça do Espírito
Santo não estão jamais em conflito; antes, um ilumina o outro. Sua
boa-nova é realmente boa, porque ela vem para superar as más, realmente más notícias.
Um “meio Jesus”, cortado pela metade, é o que H. Richard Niebuhr, um teólogo protestante do século XX, denunciou na teologia liberal de sua época: “Um Deus sem ira levou os homens sem pecado a um Reino sem julgamento por meio de pregações a respeito de um Cristo sem cruz”. Um Jesus pela metade traz algo a que Dietrich Bonhoeffer chamava graça barata, “o inimigo mortal da nossa Igreja” [1].
A graça de Cristo custa caro porque o nosso pecado coletivo foi tão
grande a ponto de custar a Deus o que lhe era mais querido: seu Filho
único. Ele oferece essa graça a todos os que procuram o perdão de suas
faltas, dão as costas ao pecado e vivem para seguir e amá-lO de todo o
coração. Essa é a mensagem quaresmal, esse é o inconfundível e glorioso Evangelho do único Jesus Cristo que existe. Um “meio Jesus” não é o que mundo está procurando. A Igreja deve pregar a totalidade dAquele que nos foi dado por meio dos santos Evangelhos. Fazer menos do que isso é pregar um Cristo de encomenda, feito à nossa medida.
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