Além
de tentar arrancar do coração humano as virtudes sobrenaturais
infundidas por Deus em sua alma, o trabalho do diabo tem ido além.
Ainda destrinchando as palavras do Papa Pio XII sobre a lenta e gradual
destruição da humanidade, é preciso que nos atentemos às seguintes
palavras: “Nestes últimos séculos [o “inimigo”] tentou realizar a
desagregação intelectual, moral, social, da unidade no organismo
misterioso de Cristo” [1].
A que Pio XII queria se referir, nesse discurso, ao falar do “organismo
misterioso de Cristo”? Esse Pontífice, que escreveu a bela encíclica
Mystici Corporis, “sobre o Corpo Místico de Jesus Cristo e
nossa união nele com Cristo” [2], podia muito bem estar falando da
Igreja, que é “muito mais excelente que quaisquer outras sociedades
humanas” [3]. Mas, dado o contexto – a desestruturação presente em todo o
mundo –, também é provável que tenha querido falar da sociedade humana
como um todo.
Mas, por que chamar a sociedade de “organismo misterioso de Cristo”?
Porque, como atesta Santo Tomás de Aquino, verdadeiramente, Cristo é
cabeça de todos os homens:
“Cristo é a cabeça de todos os homens, mas em graus diversos. Assim, primária e principalmente, é a cabeça daqueles que atualmente lhe estão unidos pela glória. Em segundo lugar, dos que lhe estão unidos pela caridade. Em terceiro, dos que lhe estão unidos pela fé. Em quarto, dos que lhe estão unidos só em potência sem ainda terem sido reduzidos ao ato, mas que a este devem ser reduzidos, segundo a divina predestinação. O quinto, enfim, os que lhe estão unidos em potência e nunca serão reduzidos a ato, como os homens que vivem neste mundo e que não são predestinados. Mas que, partindo deste mundo, deixam totalmente de ser membros de Cristo, por já não poderem ser unidos a Cristo.” [4]
Ao assumir a natureza humana, Jesus procurou salvar todos os homens.
“Como não há, não houve, nem haverá homem algum cuja natureza não foi
assumida por Cristo Jesus, nosso Senhor, assim não há homem algum, não
houve, nem haverá pelo qual ele não tenha sofrido”, diz uma declaração
magisterial do século IX. Mas, como “o cálice da salvação humana”, “se
não for bebido, não salva” [5], o sacrifício de Cristo, embora útil a
todos, pode ser ineficaz, não por defeito do resgate operado por Nosso
Senhor, mas por ingratidão dos homens. Por isso, o demônio se esforça
por transformar aqueles que receberam, pelos méritos de Cristo, a
herança eterna, em rebeldes e moradores do inferno.
Em nossos tempos, porém, além de tentar o homem com a falta de fé, com o
desespero e com o ódio, tentando arrancar de seu coração as virtudes
sobrenaturais infundidas por Deus em sua alma, o trabalho do diabo tem
ido além. A própria seiva natural tem sido impiedosamente sugada de suas
veias e passam a ser aceitos comportamentos que, em si mesmos, não só
entram em choque com preceitos religiosos, mas com a própria realidade
das coisas.
Como não deplorar, por exemplo, que o aborto e a eutanásia sejam
amplamente aceitos por legislações civis mundo afora? Como não enxergar
na promoção de um “estilo de vida homossexual” uma profunda disfunção
cultural, que coloca o prazer acima da própria preservação da espécie?
Como não se espantar com o agigantamento descontrolado do “Estado-babá”,
que não só distribui vales e bolsas aos seus cidadãos – que bem podem
ser chamados de súditos –, mas chega a arrogar para si o direito de
educar as crianças e os jovens?
O “inimigo”, indica o Santo Padre, é “astuto”. Obscurecendo a
compreensão da lei natural, torna praticamente impossível a obra de
evangelização entre os homens. Afinal, como se pode ensinar que Deus é
um pai amoroso, que “de tal modo amou o mundo, que lhe deu seu Filho
único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida
eterna” [6], se se aceita que uma mãe que mata seu filho permaneça
impune ou, pior, receba toda a assistência do Estado para assassiná-lo?
Ou se se entrega aos políticos a responsabilidade de criar as crianças,
eliminando lenta e gradualmente as figuras paternas e maternas de seus
imaginários? Como se podem ensinar as verdades eternas, cujo fio
condutor é a Palavra (o λόγος) que “se fez carne” [7], a uma sociedade
que sequer entende a finalidade primária do ato conjugal?
Por esses e outros fatos, é preciso concordar com o Papa: está-se
diante de uma verdadeira “desagregação intelectual, moral, social, da
unidade do organismo misterioso de Cristo” – que chega a parecer
“decapitado”. A solução é recuperar como guia e senhor Aquele que é “a
cabeça de todos os homens” e procurar, com a oração e com a pregação do
Evangelho, integrar todos no Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja.
Por Christo Nihil Praeponere
Referências
- Pio XII, Discorso agli uomini di Azione Cattolica, 12 ottobre 1952
- Carta Encíclica Mystici Corporis, 29 de junho de 1943
- Mystici Corporis, 61
- Suma Teológica, III, q. 8, a. 3
- Sínodo de Quiercy, maio 853: DS 624
- Jo 3, 16
- Jo 1, 14
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