O JESUS MUÇULMANO.
Alguns registros de palavras de Jesus que nunca imaginamos que existissem.
Por volta do ano 1600, o imperador indiano Akbar construiu um esplêndido
portão cerimonial em Fatehpur Sikri e escreveu nele algumas palavras
atribuídas a Jesus, o filho de Maria: "O mundo é uma ponte: cruze-a, mas
não construa a sua casa sobre ela".
É um ditado evocativo, um dos muitos atribuídos a Jesus na tradição islâmica.
Mas será que existe alguma chance de que essas palavras tenham mesmo alguma ligação autêntica com o Jesus histórico?
Fique sabendo que as chances são maiores do que você pensa!
O Alcorão
traz uma boa quantidade de material sobre Jesus. Mais relevantes neste
caso, porém, são as muitas histórias e dizeres reunidos por sábios
muçulmanos ao longo dos séculos seguintes, recolhidos pelo estudioso
moderno Tarif Khalidi em seu livro “O Jesus Muçulmano: Provérbios e
Histórias na Literatura Islâmica”. Khalidi argumenta que, juntos, esses
textos constituem todo um “Evangelho muçulmano”.
Esse “Jesus
muçulmano” lembra a linguagem e o pensamento da escritura cristã
primitiva, com leves modificações em comparação com os evangelhos que
nós conhecemos. Isto é particularmente verdadeiro no caso das histórias e
citações mais antigas, que remontam ao século IX. Jesus mostra as aves
do céu e fala do quanto Deus se importa com elas; Jesus exorta os seus
seguidores a acumularem tesouros apenas no céu; Jesus diz que eles não
devem lançar pérolas aos porcos. Em cerca de 30 exemplos, as semelhanças
com os evangelhos sinóticos são impressionantes. Como
se não bastasse, muito poucos desses dizeres do “Jesus muçulmano”
apresentam ideias distintamente islâmicas.
São textos que
parecem nos levar de volta até um estágio autenticamente primitivo da
formação do Novo Testamento. Os estudiosos concordam que os primeiros
registros sobre Jesus era escritos em forma de provérbios ou como
sequências de dizeres, com muito pouco da narrativa que conhecemos dos
evangelhos canônicos. Uma dessas coleções hipotéticas é o "Q", uma fonte
de relevância crítica para Mateus e Lucas. Os cristãos se lembravam das
palavras de Jesus e só mais tarde é que os autores foram juntando
aqueles fragmentos isolados até lhes dar unidade. Os provérbios que não
foram incluídos nos textos canônicos continuaram sendo citados como
“ágrapha”, ou seja, como dizeres não escritos, não registrados. Nós os
conhecemos hoje porque eles aparecem com frequência em citações de
líderes da Igreja primitiva ou em leituras de manuscritos do Novo
Testamento.
E isso nos traz de volta ao caso das palavras de Jesus registradas por comentaristas muçulmanos
antigos, que, em seu estilo e formato, carregam uma surpreendente
semelhança não com os evangelhos canônicos, mas com fontes como o "Q". É
quase como se aqueles estudiosos tivessem tido acesso aos provérbios e
construído uma narrativa plausível com base neles, sem que fosse,
necessariamente, a mesma estrutura fornecida pelos evangelistas
cristãos. Será que eles usaram algo como o "Q"? Talvez alguma fonte
judaico-cristã hoje perdida?
Para ilustrar o “sabor de cristianismo primitivo” desses dizeres do “Evangelho
muçulmano”, ofereço abaixo uma mistura aleatória de frases creditadas a
Jesus, algumas oriundas de escritos cristãos não canônicos e as
restantes tiradas do Evangelho muçulmano. Veja se você acerta qual dos
“Jesuses” disse o seguinte:
1. Estejam no meio, mas caminhem do lado.
2. Tornem-se transeuntes.
3. Os que estão comigo não me entenderam.
4. Abençoado é aquele que vê com o coração, mas cujo coração não está no que ele vê.
5. Estou perto de vós como a roupa do vosso corpo.
6. Satanás acompanha o mundo.
As respostas: 1, 4 e 6 são muçulmanos; 2, 3 e 5 são cristãos. Se não
nos dessem as respostas, seria muito difícil identificarmos as duas
categorias. Excetuando os estudiosos especialistas no texto do Novo
Testamento, eu duvido até que a maioria dos estudiosos do cristianismo
primitivo ou medieval pudesse acertar todos.
Este grau de semelhança é impressionante, considerando-se a cronologia.
Todos os exemplos cristãos datam dos séculos I ou II; nenhum dos
exemplos muçulmanos tem registro anterior ao século IX. Eles respiram,
no entanto, exatamente a mesma atmosfera.
Não é muito difícil
enxergar como esses dizeres primitivos foram preservados e transmitidos,
e a pista pode estar na característica de “negação do mundo” que está
presente em muitas dessas frases: o mundo é uma ponte! Tais palavras
teriam sido atesouradas por monges e eremitas cristãos do Oriente, de
regiões como a Síria e a Mesopotâmia. Sabemos também que, desde os
primeiros tempos, alguns monges e clérigos cristãos aceitaram o islã. O Alcorão
relata como os seus olhos se enchiam de lágrimas, enquanto eles oravam:
"Nós cremos; faz-nos um, pois, com todos quantos testemunham a
verdade!".
Como que quer que essa transmissão tenha
acontecido, porém, eis um pensamento surpreendente: talvez a tradição
muçulmana nos ofereça várias dezenas de plausíveis palavras de Jesus que
jamais imaginamos que tínhamos!
Philip Jenkins
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