“Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado...” (Jo 20,27)
Uma grande ameaça sempre se fez presente
na caminhada histórica da Igreja, qual seja, o risco de viver o
seguimento de Jesus sem as suas chagas.
Crer no Ressuscitado
“asséptico”, sem as chagas em suas mãos, em seu lado e em seus pés, é
desumaniza-lo.
Crer de alguma forma em Jesus, mas um Jesus da glória, um
Jesus “espiritual”, separado da vida e da entrega até à morte, é
esvaziar o verdadeiro sentido da redenção. Crer no Ressuscitado sem as
chagas é esquecer-se das feridas dos pobres, da morte dos oprimidos; é
não tocar as chagas da humanidade sofrida, quebrada... Crer no
Ressuscitado com as chagas nos compromete em fazer descer da Cruz todos
os crucificados da história.
Neste sentido, o evangelho deste 2º
domingo da Páscoa, nos apresenta uma profunda experiência pascal da
Igreja a partir da “conversão de Tomé”, que é a imagem daquele que
aceita a ressurreição de Jesus, mas a entende como uma experiência
intimista, sem compromisso de comunhão e sem solidariedade com os mais
excluídos e sofredores.
Tomé é aquele que vive isolado, anda
solto por aí, sem vínculo comunitário. Enquanto os outros se fecham, ele
vive sem comunidade, sem compromisso social, dedicado à sua mística
particular. Morreu Jesus, mas não lhe importa as chagas d’Ele, nem o
sofrimento dos outros; vive de uma espiritualidade “desencarnada”, com
uma fé puramente intimista, sem a visibilidade de um corpo morto, sem a
necessidade de precisar tocar as chagas d’Aquele que morreu pelos
outros, as chagas de todos os mortos.
Custava-lhe tocar as pegadas e
feridas de Jesus crucificado; para ele, é como se Jesus não tivesse
sofrido e não trouxesse em suas chagas as chagas da humanidade.
Possivelmente, Tomé tivesse uma fé de tipo “new age”, de puras melodias
interiores, que não se visibiliza no serviço e no cuidado aos outros.
Jesus respondeu à incredulidade de Tomé
mostrando suas feridas; só assim, em contato de corporalidade a
corporalidade, em encontro com a Vida triunfante de Cristo, pode
realizar-se a experiência de Páscoa.
“Tocar o Verbo de Deus”, tocando as
chagas dos crucificados: este é o tema deste domingo. Isto é o que
devemos todos fazer, se cremos na Ressurreição. Sem chagas do
Crucificado não há Páscoa. Sem corporalidade do Ressuscitado não existe
cristianismo.
Muitos de nós preferimos continuar
buscando uma Igreja bela, de glória, fechada em si mesma, de espaços sem
ar de liberdade, preocupada somente com sua doutrina, seus ritos e
liturgias celestiais, mas separada da comunidade dos pobres e sofredores
... Temos medo de compartilhar a vida e de “tocar” a ferida de Jesus,
que são suas chagas, as chagas da igreja e da humanidade. Se esquecemos
isto, esquecemos a Páscoa.
Por isso, o Senhor ressuscitado continua
sendo Aquele que traz em suas mãos e lado as feridas de sua entrega, os
sinais de seu amor crucificado em favor da humanidade. O Senhor
ressuscitado continua sendo Aquele que sofre em todos os sofredores do
mundo.
Certamente, nós cristãos podemos e
devemos afirmar que “tocamos” o Jesus ressuscitado com as mãos da fé, em
um espaço novo de “corporalidade mística”. Mas não podemos tocá-Lo só
em um plano de “ideias”, de belas experiências interiores, senão na
realidade da carne, da vida concreta: temos que tocar as chagas dos
crucificados, na vida concreta dos rejeitados da sociedade. Ali está
Jesus como Aquele que vem ao nosso encontro como promessa de vida.
Os mesmos sinais de morte (cravos que
ataram as mãos e pés de Jesus no madeiro, lança que perfurou seu
coração) revelam-se como sinais de vida, mas não para esquecermos deles,
senão para tê-los sempre presentes na vida da comunidade, nas
experiências de amor ativo que nos leva a descobrir o caminho pascal em
todos os sofredores e chagados da história.
Tomé viu, tocou e apalpou as chagas da
entrega radical de Jesus. E justamente ali, naquilo que entra pelos
sentidos, Tomé se deu de cara com a fé: “Meu Senhor e meu Deus”. Hoje a
presença de Jesus está ali onde os que lhe buscam, encontram chagas de
dor e morte. Se, em lugar disso, encontram poder, pompa, prestígio, não
poderão dizer: “Meu Senhor e meu Deus”.
O Ressuscitado, ao conservar e mostrar
as feridas abertas nas suas mãos e no seu lado, quer que saibamos que se
apropriou também das nossas feridas; nas feridas do Crucificado, somos
movidos a mostrar nossas feridas; porque carregou nossas dores, nossas
feridas Lhe pertencem; assim, nossas feridas, sanadas pelas chagas de
Jesus, se convertem em sinal de vida, porque abrem possibilidades de
futuro.
As feridas são tudo aquilo que é
vulnerado, fragilizado e debilitado, que permanece em nós depois de
situações de sofrimento, de frustração ou de perda. Há antigas feridas,
velhas e enraizadas, que parasitam nossas forças impedindo o fluir de
nossa vida. São como sabotadoras que vão fragilizando nossa estrutura
interna e tornando a vida amarga. Sua aparição é típica nos momentos de
crise.
É no meio das feridas, pessoais e
coletivas, que o Ressuscitado se faz presente, exercendo o “ofício do
consolador” (S. Inácio). O “ofício de consolar” é a marca do
Ressuscitado, é força recriadora e reconstrutora de vidas despedaçadas.
Jesus “toca” as feridas e “ressuscita” cada um dos seus amigos e amigas,
ativando neles(as) o sentido da vida, reconstruindo os laços
comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava
sem chão, sem direção...
A partir da experiência do encontro com o
Ressuscitado podemos recuperar a dimensão do tato como possibilidade de
viver de forma mais humanizadora e plena. Os sentidos, e de maneira
especial o tato, nos fazem mais humanos, nos tornam mais sensíveis, nos
ajudam na descoberta do corpo ferido do outro, fazem palpável o amor,
nos ajudam a reavivar a beleza do transcendente em cada pessoa.
Jesus sabia deste tocar bem concreto:
através de suas mãos fez presente o amor do Pai ao tocar com ternura os
corpos das pessoas excluídas, violentadas, consideradas indignas de
serem tocadas, nem amadas. O mesmo Jesus se deixa tocar em um momento de
grande vulnerabilidade: numa situação de angústia e temor, recebe o
contato, a proximidade e a carícia de uma mulher que o unge com perfume
(Jo. 12, 1-8).
Ressuscitar o tato é sentir-se próximo,
acolhedor, terno... Mas, antes é preciso deixar cair as barreiras; nosso
mundo está cheio de alambrados, valas, muros e fronteiras; assim nos
defendemos daqueles que são de outra raça, cor, religião, classe
social... Comecemos apagando nossos preconceitos antes de tentar tocar.
Ninguém toca ninguém “de longe”.
Estaremos “tocando o Ressuscitado” quando nos aproximamos d’Ele com uma
visita, um telefonema, uma mensagem, uma saudação na rua, um favor, um
serviço prestado com amor. Há templos famosos pela liturgia da oração
tátil: orfanatos, hospitais, cárceres, periferias, sanatórios, asilos,
favelas... Não deixemos de frequentá-los, pois é ali que “tocamos a
carne de Cristo”.
Que Tomé e todos nós toquemos o lado
aberto de Jesus e suas mãos feridas, de maneira que o contato com o
sofrimento do mundo nos transforme e nos faça capazes de expandir a vida
de Deus.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: contemplar o Ressuscitado
significa também “ressuscitar nossos sentidos”, torná-los mais oblativos
e abertos para se deixarem impactar pela realidade crucificada.
- À Luz da Páscoa, como você reage
diante de tantos crucificados, vítimas de intolerância, preconceito,
violência verbal, indiferença?
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