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A hóstia, por exemplo, é realmente consagrada quando o padre celebrante não vive em fidelidade à Igreja?
Têm-se multiplicado entre os sites e páginas católicas nas redes sociais os artigos e comentários críticos contra desvios e atropelos à liturgia genuína da Igreja Católica. O tema é suscitado, por exemplo, neste comentário do padre Zezinho, neste artigo do bispo Dom Henrique Soares e nesta nota da Arquidiocese de São Paulo.
Diante das deturpações litúrgicas que, nos artigos citados, Dom Henrique chamou de “bizarrices” e o padre Zezinho descreveu como “avacalhação”, surgem perguntas e perplexidades de católicos de todos os cantos, inclusive a respeito da relação
entre a validade do sacramento e as disposições dos padres que celebram
ritos alheios ao que é formalmente aprovado pela Igreja.
Um desses questionamentos foi apresentado por uma leitora do site Deus lo vult ao seu administrador, o jovem leigo católico Jorge Ferraz, de Recife, que publicou em resposta o artigo abaixo reproduzido na íntegra:
*
A má formação do clero e a validade dos Sacramentos
Uma leitora me perguntou por email se a falta de Fé dos sacerdotes
poderia macular a eficácia dos sacramentos ministrados por eles. Por
exemplo, se um sacerdote que não acredita na Transubstanciação poderia
celebrar uma Missa válida (ou seja, uma Missa na qual a Hóstia
Consagrada se tornasse, real e substancialmente, no Deus Vivo e
Verdadeiro), ou se um bispo que descrê na Igreja Hierárquica poderia
ordenar verdadeiros sacerdotes (ou seja, homens capazes de
“confeccionar” os Sacramentos da Nova Aliança).
A resposta curta e direta para a pergunta é que os ministros celebram validamente os Sacramentos ainda que particularmente não tenham Fé. É o que consta nos manuais de teologia sacramental: “La validez y eficacia de los sacramentos no dependen de la ortodoxia ni del estado de gracia del ministro” (OTT, Manual de Teologia Dogmática, Livro IV, Parte III, Seção I, Cap. IV,
§9., 1., b.). Quanto a este ponto não parece haver polêmica digna de
nota, estando as posições donatistas já derrotadas há muitos séculos
pela Igreja.
Mas há uma outra questão afim. É que todo Sacramento exige matéria, forma e ministro com intenção de fazer o que faz a Igreja. Sabe-se que a intenção suficiente para a validade dos sacramentos é a mera intenção virtual (Summa, IIIa, q.64, a.8, ad.3);
no entanto, mesmo esta precisa ser minimamente qualificada. O próprio
Aquinate, dois artigos depois, diz que se alguém quiser realizar não um
sacramento, mas uma paródia, este anula o sacramento (id. ibid., a.10, Resp.). E o mesmo Ludwig Ott afirma poucos parágrafos depois (id. ibid., 2., b., c’.) o seguinte (tradução livre):
Segundo a opinião hoje quase geral dos teólogos, para a administração válida dos sacramentos requer-se [da parte do ministro] a intenção interna, isto é, uma intenção tal que não apenas tenha por objeto a realização externa da cerimônia sacramental, mas também o seu significado interno. É insuficiente a intenção meramente externa que foi considerada como suficiente por numerosos teólogos da escolástica primitiva (…) e muitos teólogos dos séculos XVII/XVIII.
Esta intenção meramente externa tem por objeto a realização da cerimônia religiosa com seriedade e nas circunstâncias devidas, porém deixando de lado o seu significado religioso interno. Como é natural, essa intenção não responde ao dever de fazer o que faz a Igreja, nem ao papel do ministro como servidor de Cristo, nem à finalidade do signo sacramental que em si é ambíguo e recebe sua determinação da intenção interna; nem tampouco está de acordo com as declarações do Magistério (cf. Dz 424, «fidelis intentio»).
A distinção é relevante. A lhe dar crédito, parece que é preciso
matizar a resposta anteriormente dada. Parece, assim, que a mera falta
de Fé do ministro não é suficiente para invalidar o Sacramento
ministrado; no entanto, é possível cogitar de invalidade por defeito de intenção (não meramente “por falta de Fé”) se o ministro deliberada e conscientemente descrer da realidade sacramental.
Alguns exemplos. Certo padre nutre dúvidas sobre a realidade da
transubstanciação; não consegue crer na Presença Real, mas sofre por
conta disso, e celebra reta e zelosamente a Santa Missa. O Sacramento é
válido; tal é, precisamente, a história do milagre de Lanciano. A intenção, neste caso, era reta, ainda que faltasse ao padre, em certa medida, a fé eucarística.
Outro exemplo. O sujeito rompe formalmente com a Igreja Católica. No
entanto, incoerente mas honestamente, continua acreditando em Nosso
Senhor Jesus Cristo. Batiza, respeitando a fórmula trinitária. O
Sacramento é válido, sem dúvidas: esta é uma das definições doutrinárias
mais antigas, da época do Cristianismo Primitivo.
Terceiro exemplo. O indivíduo é um simplório, tem uma profunda
limitação intelectual, ou quem sabe pertence a uma cultura estranha
(digamos, é um silvícola em seu primeiro contato com o europeu), mas se
encantou com a pregação dos missionários, largou tudo o que tinha e se
fez ordenar sacerdote. Não entende, absolutamente!, todos os detalhes da
teologia sacramental católica, mas decorou os ritos da Santa Missa e,
quando a celebra, entende estar praticando o culto dos católicos. Ainda
neste caso o Sacramento é válido pela retidão do sacerdote.
Ou seja, o sacramento é válido, ainda que o ministro não acredite
nele, se essa descrença for uma mera fraqueza; é válido, ainda que o
ministro negue o dogma católico, se a negação do dogma versar sobre um
ponto alheio ao Sacramento que se está ministrando; e é válido, ainda
que o ministro não compreenda direito o que está fazendo, se essa
incompreensão for fruto de uma formação insuficiente e não-culposa. Não
há, nestes casos, defeito de intenção capaz de invalidar o Sacramento.
Caso diferente ocorre quando o padre conhece o ensino da Igreja sobre
determinado sacramento e, conscientemente, com malícia, quer fazer algo
diferente do que a Igreja entende com o sacramento. Por exemplo, se o
padre sabe que a Igreja ensina ser a Missa a renovação incruenta do
Sacrifício do Calvário, mas acha que a Igreja está errada, e quando ele
“preside a Eucaristia” o que ele efetivamente quer celebrar é um
banquete simbólico festivo, então neste caso o Sacramento é inválido.
Não porque — atenção! — falte-lhe Fé, mas porque lhe falta a intenção de
fazer o que faz a Igreja neste caso específico. No mesmo exemplo, se
este mesmo padre acredita ter o poder de perdoar os pecados, e se ao
ouvir confissão ele quer realmente absolver o penitente de suas faltas,
então a sua confissão é válida mesmo que a sua Missa não o seja.
Pelo que vejo, eu acredito que o problema da má-formação dos
sacerdotes, no geral, enquadra-se no exemplo da formação insuficiente
que referi acima. São pessoas de reta intenção que podem até ter idéias
bem equivocadas sobre o dogma católico; mas não o fazem com o animus
específico de agir contra o que a Igreja ensina, o que faz toda a
diferença. Na pior das hipóteses, têm a intenção de celebrar a cerimônia
cristã que (acreditam que) a Igreja celebra, e isso é suficiente para
garantir a intenção virtual capaz de conferir validade aos sacramentos.
Com esses não é preciso se preocupar.
Ao contrário, é preciso se acautelar dos padres orgulhosos, rebeldes,
que negam conscientemente o ensino sacramental da Igreja; e dos que
celebram de maneira debochada, ou mecânica. Um e outro podem ministrar
sacramentos inválidos por defeito de intenção. Não simplesmente por
conta de má formação, mas de uma formação má. Porque para invalidar um
sacramento não é suficiente ser ignorante, é preciso saber que está
fazendo errado, é preciso querer fazer errado. Por mais que a situação
do clero atual seja deplorável, não me parece que haja entre ele tanta
perversidade a ponto de transformar a validade dos sacramentos em uma
questão exageradamente preocupante.
Artigo original: Jorge Ferraz, em Deus lo Vult
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