A
tentação de apresentar um cristianismo sem cruz revela-se, aos poucos,
decepcionante, porque é somente na cruz que se descobre o amor de Deus.
A cruz possui um significado inegociável para o cristianismo. É somente
por meio do Cristo crucificado que se pode compreender “o poder de
Deus” (cf. 1 Cor 1, 24) e a sua ação salvífica entre os homens. Por
isso, na pregação evangélica de Jesus, tudo se resume a esta exortação:
“Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e
siga-me” (cf. Mt 16, 24). Não se trata de mera retórica, mas da
apresentação de um dado incontestável: não há redenção sem cruz. O homem
que quiser se salvar, deverá, necessariamente, apegar-se às cruzes do
dia a dia, renunciando-se a si mesmo, tal qual o Filho do Homem fez no
lenho da salvação.
Após aquele encontro fatídico na estrada para Damasco, São Paulo pôde
perscrutar o significado autêntico da renúncia anunciada por Jesus. Viu
que a lógica da cruz consiste num abandono confiante no “Evangelho da
graça”, o qual nos apresenta a salvação não como prêmio que se conquista
por meio de esforços puramente humanos. É dom gratuito; Deus confunde a
“sabedoria” humana ao doar-se inteiramente ao homem — “o que é tido
como debilidade de Deus é mais forte que os homens” (cf. 1 Cor 1, 24).
São Paulo, por sua vez, fazendo frente às tendências de sua época, não
deixou de anunciar aos seus interlocutores a “loucura” e o “escândalo”
do madeiro santo: “Porque a linguagem da Cruz é loucura para aqueles que
se perdem; mas poder de Deus para os que se salvam, isto é, para nós”
(cf. 1 Cor 1, 18-23).
Nas pegadas do
Apóstolo das gentes, a Igreja sempre procurou incutir na
sociedade o necessário e urgente apelo do Crucificado, sobretudo quando
estes esforços sofriam oposição da mentalidade pagã e autossuficiente do
período. Ela testemunhou pelo derramamento de sangue — tal qual São
Pedro, que se deixou crucificar de cabeça para baixo, achando-se indigno
de ter uma morte igual à de Jesus —, pela vida abastada e longe das
comodidades do mundo — a exemplo dos monges eremitas e dos irmãos e
irmãs do Carmelo —, como também pela atualização diária e milagrosa do
próprio sacrifício de Jesus, através da celebração da Santa Eucaristia.
Em poucas palavras, pode-se dizer que a pregação da Igreja se
fundamentou ordinariamente neste pequeno, mas não menos verdadeiro,
princípio: “Quando vires uma pobre Cruz de madeira, só, desprezível e
sem valor... e sem Crucificado, não esqueças que essa Cruz é a tua Cruz”
[1].
Por outro lado, grande e persistente foi a oposição sofrida pelo
anúncio do Cristo crucificado ao longo da história. Algo que não
surpreende, todavia. Dada a realidade do pecado original, que faz com
que os homens tenham os pensamentos do mundo e não os de Deus (cf. Mt
16, 23), o ser humano “é continuamente tentado a desviar o seu olhar do
Deus vivo e verdadeiro para o dirigir aos ídolos (cf. 1 Ts 1, 9),
trocando ‘a verdade de Deus pela mentira’ (cf. Rm 1, 25)” [2]. De fato,
para uma mentalidade submissa àquilo que São João chamava de
“concupiscência da carne”, “concupiscência dos olhos” e “soberba da
vida”, isto é, os ídolos que o mundo oferece, a cruz pode parecer uma
realidade muito pouco atraente e sem sentido [3]. Nestes dois últimos
séculos, em que não raras vezes os santos padres tiveram de lidar com
propostas subversivas, dentro e fora da Igreja, cuja finalidade
principal era substituir o Cristo crucificado por uma concepção cristã
praticamente ateia, esse drama se revela ainda mais grave.
É particularmente notório um episódio da luta de Pio XI contra a
ideologia nazista. Por ocasião da visita de Hitler a Roma, tendo se
espalhado, a pedido de Mussolini, as suásticas do nacional-socialismo
por toda a cidade eterna, o Papa Ratti ordenou que nenhuma bandeira
fosse exposta nas sacadas do Vaticano, foi para Castel Gandolfo, e
mandou escrever no L’Osservatore Romano que o ar de Roma estava
irrespirável e que a ele não agradava nem um pouco ficar num lugar onde
havia uma cruz que não era a de Cristo. Algo semelhante ocorreu com João
Paulo II, quando da sua viagem à Nicarágua, em 1983. O governo
sandinista, apoiado por padres ligados à Teologia da Libertação, havia
organizado um infeliz protesto contra o papa. Na missa campal, foram
colocados no altar, de propósito, cartazes de guerrilheiros em vez do
crucifixo. O então secretário pessoal do santo papa, Cardeal Stanislaw
Dziwisz, conta em suas memórias [4]:
[...] O Santo Padre, praticamente sozinho, enfrentou o tumulto e fez frente aos provocadores. Foi inesquecível a cena em que os sandinistas agitavam suas bandeiras rubro-negras, enquanto ele, de cima do palco, opunha-se a eles, levantando na direção do céu o báculo com o crucifixo na ponta.
Também dentro da Igreja esses confrontos contra a cruz de Cristo não
faltaram. Nas sessões do Concílio Vaticano II, infelizmente, muitos
foram os que sugeriram o abandono do sinal da cruz durante a liturgia,
por este supostamente já não mais corresponder ao espírito do homem
moderno [5]. Nas universidades de teologia, por sua vez, “a maneira
blasfema como então se zombava da cruz como sendo um sadomasoquismo” era
de se lamentar [6]. O então padre Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI,
escreve a respeito: “Vi o rosto horrível, sem disfarce, dessa piedade
ateia; vi o terror psicológico, desenfreado, com o qual se conseguia
sacrificar toda consideração moral como restante de um espírito burguês,
quando se tratava da meta ideológica” [7].
Como nos tempos de São Paulo, a sociedade moderna não é simpática à
mensagem da cruz de Cristo. Ao contrário, há certamente aquele número de
indivíduos que, ludibriados pelas promessas ideológicas, depositam a
própria esperança em obras e esforços humanos, a fim de alcançar um
paraíso aqui na terra. É a tentação do neopelagianismo.
Mutatis mutandis, como também não pensar nos “profetas” da
técnica, verdadeiros gurus do modernismo, que, “fiando-se demasiadamente
nas descobertas atuais”, julgam desnecessária a mensagem evangélica,
dando margem ao ceticismo e ao agnosticismo [8]? And last, but not least,
que dizer das seitas e heresias que proliferam, fazendo com que o
cristianismo e, por conseguinte, a Igreja deixem de ser a Mater et
Magistra da sociedade, como gostava de definir São João XXIII, para se
converter em uma mera instituição filantrópica ou sentimentalista?
A Igreja deve seguir o caminho do Esposo. Renegar a cruz seria como que
um adultério. A tentação de apresentar um cristianismo sem cruz, no
intuito de satisfazer o gosto da clientela, aos poucos, mostra-se
frustrante. Sem o Cristo crucificado se perde o dom gratuito do Pai que,
amando o mundo de tal maneira, entrega Seu Filho único em holocausto. É
nisto que conhecemos o amor. Não há mensagem mais urgente, mais
necessária, mais imprescindível para o homem que a mensagem do amor de
Deus. Nenhum esforço humano, nenhuma sabedoria humana, nenhuma teologia
da “libertação” ou da “prosperidade” é realmente capaz de libertar o
homem e fazer com que ele progrida na santidade. É Cristo crucificado
que nos traz a redenção, porque foi para isto que Ele se manifestou:
“para destruir as obras do demônio” (cf. 1 Jo 3, 8).
É, pois, na morte crucificada que se encontra a verdadeira vida.
Por Christo Nihil Praeponere
Referências:
- Caminho, n. 178.
- João Paulo II, Carta Enc. Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 1
- cf. 1 Jo 2, 16
- SVIDERCOSCHI; DZIWISZ; Gian Franco, Stanislaw. Uma vida com Karol. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, pág. 109.
- WILTGEN, Ralph. O Reno se lança no Tibre— O Concílio desconhecido. Niterói: Permanência, 2007, pág. 43.
- RATZINGER, Joseph. Lembranças da minha vida. São Paulo: Paulinas, 2007, pág. 118.
- Ibidem
- Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et spes (7 de dezembro de 1965), n. 57
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