Na era da
internet, uma notícia chega aos quatro cantos do mundo em frações de segundos.
Por meio do computador, vemos o mundo e nos comunicamos com ele, mobilizamo-nos
para coisas boas e ruins. Tudo se parece com um espírito que corre veloz nas
ondas invisíveis e nas fibras ópticas de um mundo globalizado, que, apesar dos
avanços tecnológicos, ainda persiste em mostrar o incômodo da miséria, do
racismo, da exploração sexual e das injustiças sociais reinantes em grande
parte do nosso planeta. A globalização ainda não acontece satisfatoriamente na
promoção da solidariedade, da cultura da paz, do acesso aos bens necessários à
vida, da justiça.
É neste
contexto de século XXI que continuamos celebrando Pentecostes como
acontecimento profundamente aglutinador, pois nele todos os povos são reunidos
por Deus para desfrutar da Páscoa de seu Filho, fonte de paz, salvação e vida
plena para todos. Pentecostes é o oposto de Babel (Gn. 11,1-9), pois não
envolve multiplicação de línguas, mas é a plenitude da comunicação entre o
divino e o humano e o evento basilar do cristianismo primitivo, ao reler a
manifestação de Deus no monte Sinai. É o que veremos nas leituras de hoje.
1ª leitura
(At 2,1-11)
Pentecostes
é a releitura simbólica do Sinai
Haviam se
passado os 50 dias entre as festas da Páscoa e Pentecostes. Era o quinquagésimo
dia da festa das Semanas, daí o nome hebraico da festa: “Pentecostes”. Era o
dia 6 do mês de sivan – 22 de maio no nosso calendário. Jerusalém estava
repleta de peregrinos. Todos teriam trazido as primeiras colheitas para serem
ofertadas no Templo. A peregrinação até Jerusalém teria sido linda. Imagine
grupos de pessoas caminhando juntos com cestos de uva, trigo, azeitonas,
tâmaras, mel... Imagine o povo sendo acolhido em Jerusalém ao som de harpa,
flauta e recitação de salmos. Todos carregavam dentro de si o desejo de
agradecer a Deus pelas primeiras colheitas e de comemorar o “dom da Torá”, da
Lei dada ao povo no monte Sinai tantos séculos atrás. Nisso consistia a festa
judaica de Pentecostes: comemorar o recebimento da Torá no monte Sinai e
afirmar, com isso, que no dia de sua revelação “eu também estava lá” (Dt.
5,24). O ontem se torna hoje (Lc. 4).
Em Jerusalém
estavam todos. E todos presenciaram a vinda do Espírito Santo. Como podemos
interpretar esse episódio narrado por Lucas nos Atos? Não estaria aí uma
releitura do evento Sinai? Lucas descreve o acontecido em Pentecostes tendo na
memória a narrativa do Sinai. Era preciso demonstrar que um novo Sinai estava acontecendo
para legitimar a ação da comunidade de Jerusalém. Jesus teria dito para
voltarem a Jerusalém e lá eles receberiam o Espírito Santo. Pentecostes passa a
ser o batismo da comunidade cristã, o qual a confirma na missão de ir para o
mundo e evangelizar. Mais que de um dado histórico, estamos diante de uma
profissão de fé. Sem Pentecostes, a Páscoa (passagem) para uma nova vida em
Jesus não estaria completa. É belíssima a simbologia usada por Lucas para falar
de uma experiência tão importante, que marca o início da missão das comunidades
cristãs.
Em At
2,1-13, temos dois relatos unidos: um mais antigo (vv. 1-4 + 12-13) e um mais
desenvolvido redacionalmente (vv. 5-11). O objetivo do primeiro é chamar a
atenção para o fato carismático e apocalíptico de Pentecostes, e o do segundo,
demonstrar o caráter profético e missionário do evento. Vamos considerar o
texto como um todo e interpretá-lo simbolicamente, também como releitura do
Sinai.
Eis os
símbolos:
a) Casa em
Jerusalém: a vinda do Espírito Santo ocorre, segundo a tradição, em uma casa de
dois andares na cidade de Jerusalém, que está situada sobre o monte Sião. Esses
dois detalhes evocam claramente o monte Sinai, local onde Moisés recebeu as Dez
Palavras de Deus. No Primeiro Testamento, os montes eram considerados lugares
privilegiados da manifestação de Deus.
b)
Língua/linguagem: Lucas substitui o termo voz, que aparece na narrativa do
Sinai, por língua. Esses termos são semelhantes e ambos se referem à Palavra. E
cada um entende na sua própria língua. A Palavra é a presença de Deus. Língua
(idioma) e linguagem (modo de se comunicar) têm o mesmo sentido no texto. O
milagre de Pentecostes consiste no fato de os presentes poderem entender os
apóstolos no interior de sua própria cultura. É o mesmo que dizer: a
evangelização está sendo realizada com sucesso. Por isso, esse fenômeno, também
encontrado em At 10,46 e 19,6, 1Cor 12,10.28.30 e 14,2.4-6.9, aparece nessa
leitura com o acréscimo de “outras línguas”, com a intenção de demonstrar que a
evangelização era para “todos no mundo todo”. Evangelizar não é falar em língua
que ninguém entende, mas justamente o contrário. Não importa o idioma
(língua-mãe), mas a linguagem comum, o modo como é transmitida a proposta do
reino.
c) De fogo:
representa a manifestação de Deus; é um modo apocalíptico de dizer que Deus se
manifestou (Ex. 3,2-3; 13,21; 19,18). Deus acompanha o povo pelo deserto numa
coluna de fogo que iluminava a noite (Ex. 13,20-22). Deus desce para falar com
o povo e Moisés no Sinai por meio do fogo (Ex. 19,18). A comunidade de Mateus
conservou a memória da fala de João Batista que anuncia o batismo no Espírito
Santo e no fogo que Jesus deveria realizar (Mt 3,11). E é isso que ocorre em
Pentecostes, segundo a interpretação da comunidade dos Atos dos Apóstolos. O
Espírito Santo é o fogo da palavra de Jesus que deve ser anunciada pelos seus
seguidores.
d) Multidão:
simboliza o povo no deserto que recebeu as tábuas da Lei. No dia de
Pentecostes, 3 mil pessoas estavam em Jerusalém. Não se trata aqui de uma cifra
exata. A comunidade dos Atos quis, com isso, afirmar que a comunidade dos
convertidos era uma multidão, proveniente de 12 povos e 3 regiões.
e) Vendaval
impetuoso: simboliza a manifestação de Deus. É a “violência” do Espírito que
leva a comunidade a ser profética e missionária. Deus fala no Primeiro e
Segundo Testamentos.
f) Estão
cheios de vinho doce: essa acusação simboliza os que não estão abertos ao novo
da comunidade cristã. Segundo os Rolos do Templo (cf. FITZMYER, J. The acts of
the apostles, The Anchor Bible, vol. 31, p. 235), gruta 11, os judeus de Qumrã
celebravam três Pentecostes: a) a festa das Semanas e do Novo Trigo (50 dias
após a Páscoa); b) a festa do Novo Vinho (50 dias após a festa do Novo Trigo);
c) a festa do Novo Óleo (50 dias após a festa do Novo Vinho). Essa sequência de
festas nos mostra que, depois da Páscoa, de 50 em 50 dias, era celebrada uma
festa. Sendo uma das festas a do Novo Vinho, podemos entender melhor esta
zombaria no texto: “estão cheios de vinho doce”. Lucas pode ter conhecido
múltiplos Pentecostes entre os contemporâneos judeus e fez alusão ao
Pentecostes do Novo Vinho, quando fala, mais propriamente, do Pentecostes do
Novo Trigo.
Evangelho
(Jo 20,19-23)
Pentecostes
é a nova Páscoa para os seguidores de Jesus, na paz e no anúncio do
Espírito Santo.
A comunidade
está reunida e com medo. O Ressuscitado ultrapassa as barreiras físicas e
aparece diante dela. Ele lhes diz: “A paz esteja convosco”. “Paz” se diz em
hebraico shalom, palavra originada do verbo shlm, que, no tempo verbal piel,
significa pagar, devolver, ressarcir, indenizar, conservar. Da mesma raiz, o
adjetivo shalem significa estar completo, inteiro. Pagar em hebraico tem o
sentido de completar o valor justo. É forma simbólica de completar o vazio
deixado pelo objeto tirado. Quem compra e não paga mutila o outro. Paz é eterna
harmonia com Deus, com o outro e com o universo. Os judeus acreditam que o
Messias só virá quando a justiça social estiver implantada em nosso meio.
Jerusalém, a cidade (yeru) da paz (shalem), é protótipo desse sonho, dessa
esperança. Jerusalém, em hebraico, escreve-se, na verdade, Ierushalaim. Duas
vezes aparece o i (em hebraico yod), ainda que na segunda vez ele não seja
pronunciado, pois representa o nome de Deus, Iahweh. Os outros povos, não
compreendendo o significado do i no nome dessa cidade santa, traduziram-no como
Jerusalém. O yod representa, para o semita, a esperança. E é nesse contexto que
podemos entender a fala de Jesus: “Nem um i sequer será tirado da Lei” (Mt
5,18). A esperança de paz, de voltar ao tempo de Deus, jamais acabará para quem
sabe esperar. Jesus pôde dizer Paz a vós, pois ele é a paz. A sua presença já é
paz e esperança. Quando, na missa, saudamos o outro com a expressão “paz de
Cristo”, desejamos que Cristo esteja dentro dele e ele seja qual outro
ressuscitado. A expressão “paz de Cristo” reúne os elementos do ser completo,
da harmonia e, mais que isso, da presença duradoura de Deus transmitida por
Jesus aos seus.
Para as
comunidades joaninas, Pentecostes, como dom do Espírito, realiza-se na Páscoa.
Jesus, na sua morte de cruz, entrega o Espírito (Jo 19,30). Jesus ressuscitado
aparece aos discípulos e lhes oferece o Espírito Santo, como nos atesta o
evangelho de hoje (v. 22). A comunidade pascal é portadora da paz e da força do
Espírito do Ressuscitado que deve ser levado ao mundo. Ela é sinal da ação do
Espírito que faz passar da morte para a vida todo o universo. Por isso, Jesus
envia a comunidade ao mundo, com a missão de reconciliá-lo com Deus, combatendo
as forças do mal. A nova comunidade dos judeu-cristãos é portadora do projeto
de Deus para a verdadeira unificação do mundo. Esse segredo chama-se: Páscoa do
Ressuscitado. Sua força é a mesma de Pentecostes: reunir a diversidade na
unidade. O desafio da comunidade é abrir as portas da “casa”: sair de si para
reconhecer no universo o “vendaval” do Espírito que tudo renova, tudo recria e
que sopra onde quer.
2ª leitura
(1Cor 12,3b-7.12-13)
O Espírito,
fonte de diversidade e de comunhão
Tendo
aprofundado o caráter simbólico da solenidade de Pentecostes, deparamos com a
segunda leitura de hoje, a qual é um desafio proposto à comunidade de Corinto,
em meio às divisões que ela sofria. Paulo insiste na comunhão no mesmo
Espírito, na diversidade de ministérios, atividades, raças, culturas e povos.
Diversidade é sinal da riqueza do único corpo de Cristo e condição para a
unidade. O Espírito distribui os dons e reúne tudo e todos em Cristo. Assim,
todos devem ser responsáveis e contribuir para o crescimento da comunidade, o Corpo
do Senhor. Essa unidade só é possível porque envolve três realidades:
1) a
ressurreição de Jesus que reúne o corpo e a comunidade;
2) a força
do Espírito que impulsiona esse corpo; e
3) a
diversidade de dons necessários à vida do corpo.
Na comunidade
de Corinto e nas de hoje, reconhecer Jesus como Senhor, título do Ressuscitado,
é abandonar toda e qualquer divisão entre os irmãos. É ser sinal do amor de
Deus para o mundo, deixando a energia do Espírito nos conduzir ao diferente, ao
novo, manifestando a todos a vida que Deus dá. É o que expressa o prefácio
litúrgico de Pentecostes: “[...] é ele quem dá a todos os povos o conhecimento
do verdadeiro Deus e une, numa só fé, a diversidade das raças e línguas”.
A
unidade dos cristãos é desafio constante para todos nós. É nesse espírito que
somos convidados a viver a Páscoa do Senhor como fator de unidade entre todas
as Igrejas e entre todo o gênero humano. Pentecostes, assumido pela tradição
cristã como plenitude da Páscoa de Jesus, é a força capaz de nos fazer
compreender e viver em profundidade o projeto universal de vida para todos.
Faz-nos enxergar no diferente, e até no estranho, a força da vida divina. A
vida nova em Cristo tem força “simbólica”, unificadora: supõe abandonar tudo o
que divide, afasta e cria abismos na convivência humana e ecológica, para
abraçar outra norma de vida: o amor que reúne, aproxima e refaz a convivência
na humanidade. É o Espírito, força de vida e de unidade, o único capaz de nos
conectar com todo o universo e com a fonte da vida.
Pistas para
reflexão
– Demonstrar
que o Espírito Santo é o coração palpitante que animou a vida das primeiras
comunidades cristãs no anúncio do evangelho e na fé em Jesus ressuscitado.
Somos herdeiros dessa fé intrépida que rompeu barreiras e ganhou o mundo.
– Demonstrar
que a grande mensagem de Pentecostes é a evangelização e não o falar línguas. A
vivacidade de nossas comunidades é exemplo de um novo Pentecostes
acontecendo.
– O Espírito
de Deus em Pentecostes enche todo o universo, e mantém unidas todas as coisas;
gera novas relações na comunidade e no mundo; realiza a plenitude da aliança do
Sinai: o amor sem fronteiras.
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