A solenidade da Ascensão de Jesus que hoje celebramos sugere que, no
final de um caminho percorrido no amor e na doação, está a vida definitiva, em
comunhão com Deus. Sugere, também, que Jesus nos deixou o testemunho e que
somos agora nós, seus seguidores, que devemos continuar a realizar o projecto
libertador de Deus para os homens e para o mundo.
O Evangelho apresenta-nos as palavras de despedida de Jesus que definem
a missão dos discípulos no mundo. Faz, também, referência à alegria dos
discípulos: essa alegria resulta do reconhecimento da presença no mundo do
projecto salvador de Deus e resulta do fato de a ascensão de Jesus ter
acrescentado à vida dos crentes um novo sentido.
Na primeira leitura, repete-se a mensagem essencial desta festa: Jesus,
depois de ter apresentado ao mundo o projeto do Pai, entrou na vida definitiva
da comunhão com Deus – a mesma vida que espera todos os que percorrem o mesmo
caminho de Jesus. Quanto aos discípulos: eles não podem ficar a olhar para o
céu, numa passividade alienante, mas têm de ir para o meio dos homens continuar
o projeto de Jesus.
A segunda leitura convida os discípulos a terem consciência da esperança
a que foram chamados (a vida plena de comunhão com Deus). Devem caminhar ao
encontro dessa esperança de mãos dadas com os irmãos – membros do mesmo “corpo”
– e em comunhão com Cristo, a “cabeça” desse “corpo”. Cristo reside nesse
“corpo”.
1ª leitura: Atos 1,1-11 - AMBIENTE
O livro dos “Atos dos Apóstolos” dirige-se a comunidades que vivem num
certo contexto de crise. Estamos na década de 80, cerca de cinquenta anos após
a morte de Jesus. Passou já a fase da expectativa pela vinda iminente do Cristo
glorioso para instaurar o “Reino” e há uma certa desilusão. As questões
doutrinais trazem alguma confusão; a monotonia favorece uma vida cristã pouco
comprometida e as comunidades instalam-se na mediocridade; falta o entusiasmo e
o empenho… O quadro geral é o de um certo sentimento de frustração, porque o
mundo continua igual e a esperada intervenção vitoriosa de Deus continua
adiada. Quando vai concretizar- se, de forma plena e inequívoca, o projeto
salvador de Deus?
É neste ambiente que podemos inserir o texto que hoje nos é proposto
como primeira leitura. Nele, o catequista Lucas avisa que o projeto de salvação
e libertação que Jesus veio apresentar passou (após a ida de Jesus para junto
do Pai) para as mãos da Igreja, animada pelo Espírito. A construção do “Reino”
é uma tarefa que não está terminada, mas que é preciso concretizar na história
e exige o empenho contínuo de todos os crentes. Os cristãos são convidados a
redescobrir o seu papel, no sentido de testemunhar o projeto de Deus, na
fidelidade ao “caminho” que Jesus percorreu.
MENSAGEM
O nosso texto começa com um prólogo (vs. 1-2) que relaciona os “Atos”
com o 3º Evangelho – quer na referência ao mesmo Teófilo a quem o Evangelho era
dedicado, quer na alusão a Jesus, aos seus ensinamentos e à sua ação no mundo
(tema central do 3º Evangelho). Neste prólogo são, também, apresentados os
protagonistas do livro – o Espírito Santo e os apóstolos, ambos vinculados com
Jesus.
Depois da apresentação inicial, vem o tema da despedida de Jesus (vs.
3-8). O autor começa por fazer referência aos “quarenta dias” que mediaram
entre a ressurreição e a ascensão, durante os quais Jesus falou aos discípulos
“a respeito do Reino de Deus” (o que parece estar em contradição com o
Evangelho, onde a ressurreição e a ascensão são apresentadas no próprio dia da
Páscoa – cf. Lc. 24). O número quarenta é, certamente, um número simbólico: é o
número que define o tempo necessário para que um discípulo possa aprender e
repetir as lições do mestre. Aqui define, portanto, o tempo simbólico de
iniciação ao ensinamento do Ressuscitado.
As palavras de despedida de Jesus (vs. 4-8) sublinham dois aspectos: a
vinda do Espírito e o testemunho que os discípulos vão ser chamados a dar “até
aos confins do mundo”. Temos aqui resumida a experiência missionária da
comunidade de Lucas: o Espírito irá derramar-se sobre a comunidade crente e
dará a força para testemunhar Jesus em todo o mundo, desde Jerusalém a Roma. Na
realidade, trata-se do programa que Lucas vai apresentar ao longo do livro,
posto na boca de Jesus ressuscitado. O autor quer mostrar com a sua obra
que o testemunho e a pregação da Igreja estão entroncados no próprio Jesus e
são impulsionados pelo Espírito.
O último tema é o da ascensão (vs. 9-11). Evidentemente, esta passagem
necessita de ser interpretada para que, através da roupagem dos símbolos, a
mensagem apareça com toda a claridade.
Temos, em primeiro lugar, a elevação de Jesus ao céu (v. 9a). Não
estamos a falar de uma pessoa que, literalmente, descola da terra e começa a
elevar-se; estamos a falar de um sentido teológico (não é o “repórter”, mas sim
o “teólogo” a falar): a ascensão é uma forma de expressar simbolicamente que a
exaltação de Jesus é total e atinge dimensões supra-terrenas; é a forma
literária de descrever o culminar de uma vida vivida para Deus, que agora
reentra na glória da comunhão com o Pai.
Temos, depois, a nuvem (v. 9b) que subtrai Jesus aos olhos dos
discípulos. Pairando a meio caminho entre o céu e a terra, a nuvem é, no Antigo
Testamento, um símbolo privilegiado para exprimir a presença do divino (cf. Ex.
13,21.22; 14,19.24; 24,15b-18; 40,34-38). Ao mesmo tempo, a nuvem,
simultaneamente, esconde e manifesta: sugere o mistério do Deus escondido e
presente, cujo rosto o Povo não pode ver, mas cuja presença adivinha nos
acidentes da caminhada. Céu e terra, presença e ausência, sombra e luz, divino
e humano, são dimensões aqui sugeridas a propósito de Cristo ressuscitado,
elevado à glória do Pai, mas que continua a caminhar com os discípulos.
Temos, ainda, os discípulos a olhar para o céu (v. 10a). Significa a
expectativa dessa comunidade que espera ansiosamente a segunda vinda de Cristo,
a fim de levar ao seu termo o projeto de libertação do homem e do mundo.
Temos, finalmente, os dois homens vestidos de branco (v. 10b). O branco
sugere o mundo de Deus – o que indica que o seu testemunho vem de Deus. Eles
convidam os discípulos a continuar no mundo, animados pelo Espírito, a obra
libertadora de Jesus; agora, é a comunidade dos discípulos que tem de
continuar, na história, a obra de Jesus, embora com a esperança posta na
segunda e definitiva vinda do Senhor.
O sentido fundamental da ascensão não é que fiquemos a admirar a
elevação de Jesus; mas é convidar-nos a seguir o caminho de Jesus, olhando para
o futuro e entregando-nos à realização do seu projeto de salvação no meio do
mundo.
ATUALIZAÇÃO
♦ A ressurreição/ascensão de Jesus garante-nos que uma vida vivida
na fidelidade aos projetos do Pai é uma vida destinada à glorificação, à
comunhão definitiva com Deus. Quem percorre o mesmo caminho de Jesus subirá,
como Ele, à vida plena.
♦ A ascensão de Jesus recorda-nos, sobretudo, que Ele foi elevado
para junto do Pai e nos encarregou de continuar a tornar realidade o seu
projeto libertador no meio dos homens nossos irmãos. É essa a atitude que tem marcado
a caminhada histórica da Igreja? Ela tem sido fiel à missão que Jesus, ao
deixar este mundo, lhe confiou?
♦ O nosso testemunho tem transformado e libertado a realidade que
nos rodeia?
Qual o real impacto desse testemunho na nossa família, no local onde desenvolvemos a nossa atividade profissional, na nossa comunidade cristã ou religiosa?
Qual o real impacto desse testemunho na nossa família, no local onde desenvolvemos a nossa atividade profissional, na nossa comunidade cristã ou religiosa?
♦ Não é invulgar ouvirmos dizer que os seguidores de Jesus vivem a
olhar para o céu e ignoram os dramas da terra. Estamos, efetivamente, atentos
aos problemas e às angústias dos homens, ou vivemos de olhos postos no céu, num
espiritualismo alienado? Sentimo-nos questionados pelas inquietações, pelas
misérias, pelos sofrimentos, pelos sonhos, pelas esperanças que enchem o
coração dos que nos rodeiam? Sentimo-nos solidários com todos os homens?
2ª leitura: Ef. 1,17-23 - AMBIENTE
A Carta aos Efésios é, provavelmente, um dos exemplares de uma “carta
circular” enviada a várias igrejas da Ásia, numa altura em que Paulo está na
prisão (em Roma?). O seu portador é um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos
58/60. Alguns vêem nesta carta uma espécie de síntese da teologia paulina, numa
altura em que a missão do apóstolo está praticamente terminada na Ásia.
Em concreto, o texto que nos é proposto aparece na primeira parte da
carta e faz parte de uma acção de graças, na qual Paulo agradece a Deus pela fé
dos Efésios e pela caridade que eles manifestam com todos os irmãos na fé.
MENSAGEM
À ação de graças, Paulo une uma fervorosa oração a Deus para que os
destinatários da carta conheçam “a esperança a que foram chamados” (v. 18). A
prova de que o Pai tem poder para realizar essa “esperança” (isto é, conferir
aos crentes a vida eterna como herança) é o que ele fez com Jesus Cristo:
ressuscitou-O e sentou-O à sua direita (v. 20), exaltou-O e deu-Lhe soberania
sobre todos os poderes angélicos (Paulo está preocupado com a perigosa
tendência de alguns cristãos em dar uma importância exagerada aos anjos,
colocando-os, até, acima de Cristo – cf. Col. 1,6). Essa soberania estende-se,
inclusive, à Igreja – o “corpo” do qual Cristo é a “cabeça”. O mais
significativo deste texto é, precisamente, este último desenvolvimento. A ideia
de que a comunidade cristã é um “corpo” – o “corpo de Cristo” – formado por
muitos membros, já havia aparecido nas grandes cartas, acentuando-se sobretudo
a relação dos vários membros do “corpo” entre si (cf. 1Cor.
6,12-20;10,16-17;12,12-27; Rm. 12,3-8); mas nas cartas do cativeiro, Paulo
retoma a noção de “corpo de Cristo” para refletir, sobretudo, sobre a relação
que existe entre a comunidade e Cristo.
Neste texto, em concreto, há dois conceitos muito significativos para
definir o quadro da relação entre Cristo e a Igreja: o de “cabeça” e o de
“plenitude” (em grego, “pleroma”).
Dizer que Cristo é a “cabeça” da Igreja significa, antes de mais, que os
dois formam uma comunidade indissolúvel e que há entre os dois uma comunhão
total de vida e de destino; significa, também, que Cristo é o centro à volta do
qual o “corpo” se articula, a partir do qual e em direção ao qual o “corpo”
cresce, se orienta e constrói, a origem e o fim desse “corpo”; significa,
ainda, que a Igreja/“corpo” está submetida à obediência a Cristo/“cabeça”: só
de Cristo a Igreja depende e só a Ele deve obediência.
Dizer que a Igreja é a “plenitude” (“pleroma”) de Cristo significa dizer
que nela reside a “plenitude”, a “totalidade” de Cristo. Ela é o receptáculo, a
habitação onde Cristo Se torna presente no mundo; é através desse “corpo” onde
reside que Cristo continua todos os dias a realizar o seu projeto de salvação
em favor dos homens. Presente nesse “corpo”, Cristo enche o mundo e atrai a Si
o universo inteiro, até que o próprio Cristo “seja tudo em todos” (v. 23).
ATUALIZAÇÃO
♦ Na nossa peregrinação pelo mundo, convém termos sempre presente
“a esperança a que fomos chamados”. A ressurreição de Cristo é a garantia da
nossa própria ressurreição. Formamos com Ele um “corpo”, destinados à vida
plena. Esta perspectiva tem de dar-nos a força de enfrentar a história e de
avançar – apesar das dificuldades – nesse caminho do amor e da entrega total
que Cristo percorreu.
♦ Dizer que fazemos parte do “corpo de Cristo” significa que
devemos viver numa comunhão total com Ele e que nessa comunhão recebemos, a
cada instante, a vida que nos alimenta. Significa, também, viver em comunhão,
em solidariedade total com todos os nossos irmãos, membros do mesmo corpo,
alimentados pela mesma vida.
♦ Dizer que a Igreja é o “pleroma” de Cristo significa que temos a
obrigação de testemunhar Cristo, de torná-l’O presente no mundo, de levar à
plenitude o projeto de libertação que Ele começou em favor dos homens. Essa
tarefa só estará acabada quando, pelo testemunho e pela ação dos crentes,
Cristo for “um em todos”.
Evangelho: Lc. 24,46-53 - AMBIENTE
O Evangelho de hoje situa-nos no dia de Páscoa. Cristo já se manifestou
aos discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35) e aos onze, reunidos no cenáculo (cf.
Lc 24,36-43). No texto que nos é proposto, apresentam-se as últimas instruções
de Jesus (cf. Lc 24,44-49) e a ascensão (cf. Lc 24,50-53).
Ao contrário dos “Atos”, ressurreição, aparições de Jesus ressuscitado
aos discípulos e ascensão são colocados – aqui – no mesmo dia, o que parece
mais correto do ponto de vista teológico: ressurreição e ascensão não se podem
diferenciar; são apenas formas humanas de falar da passagem da morte à vida
definitiva junto de Deus.
MENSAGEM
O nosso texto está dividido em duas partes: despedida dos discípulos
(vs. 46-49) e ascensão (vs. 50-53).
Na primeira parte temos, portanto, as palavras de despedida de Jesus. Os
discípulos que fizeram a experiência do encontro pessoal com Jesus ressuscitado
são agora convocados para a missão: Jesus envia-os como testemunhas, a pregar a
conversão (“metanoia” – a transformação radical da vida, da mentalidade, dos
valores) e o perdão dos pecados (ou seja, o anúncio de que Deus ama todos os
homens e os convida a deixar o egoísmo, o orgulho e a auto-suficiência para
iniciarem uma vida de Homens Novos). Para esta tarefa ingente, os discípulos
contam com a ajuda e a assistência do Espírito. Temos também, aqui, todos os
elementos daquilo que será a futura missão da Igreja. O testemunho apostólico
terá como tema central a morte e ressurreição de Jesus, o Messias libertador
anunciado pelas escrituras (vs. 44.46). Desde Jerusalém, esta proposta deve ser
anunciada a todas as nações. Este “percurso” será explicitado no livro dos
“Atos”.
Na segunda parte, Lucas descreve a ascensão, situada em Betânia. Há duas
indicações de Lucas que importa realçar. A primeira é a bênção que Jesus dá aos
discípulos antes de ir para junto do Pai: essa bênção sugere um dom que vem de
Deus e que afeta positivamente toda a vida e toda a ação dos discípulos,
capacitados para a missão pela força de Deus. A segunda é a alegria dos
discípulos: a alegria é o grande sinal messiânico e escatológico; indica que o
mundo novo já começou, pois o projeto salvador e libertador de Deus está em
marcha.
ATUALIZAÇÃO
♦ A ressurreição/ascensão de Jesus convida-nos a ver a vida com
outros olhos – os olhos da esperança. Diz-nos que o sofrimento, a perseguição,
o ódio, a morte, não são a última palavra para definir o quadro do nosso
caminho; diz-nos que no final de um caminho percorrido na doação, na entrega,
no amor vivido até às últimas consequências, está a vida definitiva, a vida de
comunhão com Deus. Esta esperança permite-nos enfrentar o medo, os nossos
limites humanos, o fanatismo, o egoísmo dos fazedores de pecado e permite-nos
olhar com serenidade para esse qualquer coisa de novo que nos espera, para esse
futuro de vida plena que é o nosso destino final.
♦ A ascensão de Jesus e, sobretudo, as palavras finais de Jesus,
que convocam os discípulos para a missão, sugerem a nossa responsabilidade na
construção desse mundo novo onde habita a justiça e a paz; sugerem que a
proposta libertadora que Jesus fez a todos os homens está agora nas nossas mãos
e que é nossa responsabilidade torná-la realidade; sugerem que nós, os
seguidores de Jesus, temos de construir, com o esforço de todos os dias, o novo
céu e a nova terra. Sentimos, de fato, esta responsabilidade? Preocupamo-nos em
tornar realidade no mundo os gestos libertadores de Cristo? Procuramos
construir, no dia a dia, esse mundo novo de justiça, de fraternidade, de
liberdade e de paz?
♦ A alegria que brilha nos olhos e nos corações desses discípulos
que testemunham a entrada definitiva de Jesus na vida de Deus tem de ser uma
realidade que transparece na nossa vida. Os seguidores de Jesus, iluminados
pela fé, têm de testemunhar, com a sua alegria, a certeza de que os espera, no
final do caminho, a vida em plenitude; e têm de testemunhar, com a sua alegria,
a certeza de que o projeto salvador e libertador de Deus está a atuar no mundo,
está a transformar os corações e as mentes, está a fazer nascer, dia a dia, o
Homem Novo.
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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