Jornal Valor
No lugar dos sinos da igreja, a rede social. Embora causando desconforto e estranhamentos, sentimentos comuns na modernidade quando o assunto é morte, os anúncios fúnebres parecem ter como caminho natural a mesma mídia de outras narrativas: a internet.
Já é possível dar uma passadinha em velório on-line e deixar comentário de condolências para a família; ser adicionado como amigo no memorial on-line de alguém que acabou de morrer para compartilhar lembranças; preparar o próprio anúncio fúnebre com suas palavras finais que serão recebidas pelos amigos do Facebook logo depois de sua morte.
“A atitude de anunciar uma morte tende a se reinventar na era da internet”, diz a psicóloga Ana Luiza Mano, do Núcleo de Pesquisas em Psicologia em Informática (NPPI) da PUC-SP, que apresentará um estudo sobre memoriais on-line na 35ª conferência anual da Association for Death Education and Counseling (Adec), que ocorre no fim do mês, em Los Angeles.
Com apenas 25 anos, Ana já pensa em montar o seu memorial e vê com naturalidade o pedido de familiares que querem ser entrevistados por ela para garantir bom perfil on-line na posteridade. Eles ficaram contagiados com sua empolgação no assunto: é a terceira vez que vai ao “congresso da morte”.
No portal Respectance (es.respectance.com), que se autoproclama líder mundial entre os sites de memoriais e está disponível em 11 idiomas, é possível criar o perfil da pessoa que morreu, detalhar sua biografia e convidar amigos e familiares para escrever comentários e compartilhar lembranças. A página em homenagem ao morto, com espaço para mensagens das visitas, pode ter música de fundo, fotos e vídeos adicionados durante três semanas. Depois desse período, o memorial precisa ser “patrocinado”, por um valor mensal de US$ 4,95 ou anual de U$ 29,95, para continuar recebendo conteúdo, com capacidade ilimitada.
“Acho natural e até desejável esse tipo de inovação”, diz Maria Helena Franco, do Laboratório dos Estudos sobre Luto da PUC-SP. “A pessoa que não conseguiu ir à missa de sétimo dia pode deixar um comentário. É uma forma de dar uma paradinha para pensar. Estamos criando novas tradições de luto.
” Os memoriais on-line são mais comuns nos EUA, assim como os velórios transmitidos pela internet, mas no Brasil portais de algumas funerárias já oferecem o serviço. Com a senha fornecida pela família, o velório pode ser acompanhado no cemitério e crematório Dom José, em Porto Alegre. O velório virtual já está disponível em Recife, Natal e João Pessoa nos cemitérios do grupo funerário Vila.
No Facebook, o assunto ainda é tratado com cautela. Como a empresa muitas vezes demora a ser informada da morte do usuário pela família, é comum que amigos escrevam mensagens em sua página como se ele estivesse vivo, e até recebam notificações sobre o aniversário de quem já morreu.
A política do site, porém, é a de transformar todos os perfis de usuários mortos em memoriais, “contas protegidas” que não aparecem no recurso “pessoas que talvez você conheça”. Novos amigos não podem ser adicionados, mas os antigos continuam com acesso à sua linha do tempo – que não pode ser modificada – e conseguem enviar mensagens “privadas”. Não é permitida a criação de novo memorial para homenagear alguém que morreu e não era usuário. Ou seja, a narrativa sobre a vida da pessoa é preservada como uma autobiografia, e não pode ser reconstruída.
“Nos EUA já houve briga na Justiça entre uma mãe e quatro amigos de seu filho morto, porque ela apagava aquilo que considerava inadequado ao memorial dele”, diz Ana Luiza, dando amostra da complexidade que se anuncia em torno da memória on-line. Ela, no entanto, diz não acreditar que a facilidade de acesso a essas páginas possa criar obsessão ou lutos mais prolongados.
Uma forma de controlar o início da construção da inevitável biografia on-line, e ainda resolver a questão do anúncio imediato de uma morte, é o aplicativo para o Facebook If I die. Hoje, avisos de mortes e convites para velórios e enterros costumam ser feitos informalmente pela rede, mas no futuro os usuários poderão começar a receber o comunicado diretamente do amigo morto, em palavras ou pedidos derradeiros preparados previamente por ele.
O aplicativo permite que seja gravada ou escrita uma mensagem pública, que será enviada para todos os amigos do Facebook assim que a sua morte for informada, e confirmada por três “depositários” escolhidos e contatados em vida. Em pacotes “premium”, pagos, é possível deixar mensagens específicas para determinados amigos.
Para aumentar a polêmica, a empresa dona do aplicativo, a israelense Willook, lançou no ano passado um concurso que promete a fama ao primeiro usuário que morrer. Com o cuidado de excluir qualquer competidor com suspeitas de suicídio, a empresa garante que tornará a mensagem póstuma do vencedor (gravada especialmente para o concurso “For a chance to world fame“) um hit na web. Quem viver, e não ganhar, verá.
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