Dom Estêvão Bettencourt (OSB)
A respeito da «riqueza do Vaticano»
propagam-se ditos notoriamente exagerados. Procuremos perceber qual o
seu fundamento e qual a razão de ser do poder temporal do Papa,
representante de Jesus Cristo sobre a terra.
Quem considera a história, verifica que
a soberania territorial dos Papas não se deve a uma pretensa ambição
dos Pontífices, nem é o resultado de plano premeditado, mas constitui a
afirmação espontânea da fé do povo cristão.
1. A origem da ascendência temporal dos Papas se acha nos primórdios da história da Igreja.
Em 330 o Imperador Constantino
transferiu a capital do Império Romano para Bizâncio no Oriente, o que
representa um verdadeiro desvio no curso da história: Roma no Ocidente
ficou entregue à “administração de um conselho municipal, que tinha o
nome de Senado, e de funcionários encarregados de julgar as causas
judiciárias e cobrar os impostos. Bizâncio mais e mais se esquecia de
Roma, descuidando-se do seu reabastecimento e da conservação de seus
monumentos; as incursões dos bárbaros na península itálica tornavam as
condições de vida da população cada vez mais precárias e dolorosas. Eis,
porém, que, em meio à anarquia, uma figura ia ganhando espontânea
veneração: a do bispo de Roma, considerado pela população cristã como o
pai comum, no qual todos depositavam confiança. Correspondendo a este
afeto filial, os Pontífices Romanos foram-se tornando os tutores do bem
público não somente no plano espiritual, mas também no temporal e
social: em 452, por exemplo, o Papa São Leão Magno dirigiu-se ao
encontro de Átila e do exército huno, que se aprestavam para devastar
Roma e a Itália meridional, conseguindo detê-los em Mântua.
Nos
séc. VI-VII acontecia não raro que príncipes e nobres, ao entrar no
mosteiro ou ao morrer, doavam seus bens ao Papa, em testemunho de
piedade filial; foi-se assim formando o chamado «Patrimônio de
São Pedro» na península itálica e nas ilhas adjacentes. Esses
latifúndios, de extensão cada vez maior,
permitiam ao Pontífice Romano uma posição de certa independência frente
ao Imperador bizantino e colocavam sob a sua jurisdição, religiosa e
civil, grande número de cidadãos, que trabalhavam nos territórios papais
ou destes se beneficiavam. Enquanto o Papa se tornava cada vez
mais o amparo das populações infelizes do Ocidente, os Imperadores
bizantinos e seus exarcas (representantes estabelecidos em Ravena) se
mostravam impotentes ou indiferentes diante das calamidades que as
afetavam. No séc. VIII os acontecimentos se precipitaram.
O Papado se viu premido entre duas potências hostis: no Oriente, os bizantinos
favoreciam as heresias (a respeito de Cristo e do culto das imagens),
os Imperadores subtraiam terras à jurisdição eclesiástica dos Papas; no
norte da Itália, os lombardos, pagãos ou arianos (heréticos), ameaçavam
constantemente saquear Roma e os territórios meridionais, constituindo
um perigo não somente civil, mas também religioso. Nessas
circunstâncias, os Pontífices Romanos se lembraram de recorrer ao
auxílio de um dos novos povos do cenário europeu: os francos,
que, desde o batismo de seu rei Clóvis em 496, constituíam uma nação
cristã de crescente valor cultural; em 732, seu mordomo, Carlos Martelo,
tinha conjurado o perigo muçulmano, vencendo os árabes em Poitiers. Os
francos conservavam fidelidade à reta fé e possuíam energias novas,
enquanto Bizâncio já significava um mundo velho, vítima tanto das
sutilezas de seu gênio («bizantinismo» na arte, na filosofia, na
teologia…) como dos exércitos estrangeiros (principalmente dos persas); o
verdadeiro esteio da cristandade já não estava no Oriente (onde as
sutis discussões teológicas debilitavam a fé), mas no.Ocidente, em
particular no reino dos francos, onde a fé era empreendedora. Porque
então não apelariam os Papas para estes filhos da Santa Igreja, a fim de
impor uma ordem de coisas cristã aos povos cristãos?
Foi o que Estêvão II resolveu fazer,
dirigindo ao mordomo franco um pedido de auxílio diante das ameaças dos
lombardos. Pepino o Breve atendeu-o em 756, movido por amor à fé e aos
interesses da Igreja: em duas expedições venceu os lombardos e confirmou
o Papa na posse do Patrimônio de São Pedro. Estava assim fundado, por
magnificência da piedade cristã (dos nobres da Itália e dos francos), o
Estado Pontifício independente de Bizâncio. Em compensação, Pepino foi
sagrado rei dos francos pelo Papa Estêvão II, e seu filho Carlos Magno
recebeu do Pontífice Leão III, em 800, a coroa de Imperador do Império
Romano, restaurado no Ocidente com o título de Império sacro ou cristão.
Esses fatos têm sido calorosamente
comentados pelos historiadores. Pergunta-se se não houve nisso tudo
usurpação de direitos, jogo de interesses políticos dos Papas e dos
francos.
Após uma reflexão serena,
responder-se-á que não. Os acontecimentos mencionados não foram senão a
«oficialização» de uma situação que de fato já existia: o Papa já
exercia as funções de soberano do Patrimônio de São Pedro, sem possuir o
título respectivo; os mordomos francos, do seu lado, já governavam o
reino (sob a dinastia dos reis merovíngios ditos «fainéants»,
indolentes), embora não trouxessem as insígnias de monarcas; Pepino o
Breve e Estêvão II, Carlos Magno e Leão III só fizeram tornar a situação
definida e patente aos olhos do mundo. A restauração do Império Romano
no Ocidente não pode ser tida como violência cometida contra Bizâncio,
nem foi um gesto surpreendente e brusco, mas o remate orgânico de um
processo histórico iniciado em 330 e lentamente amadurecido no decorrer
de mais de quatrocentos anos (até 756, ou melhor, até 800).
2. O Estado Pontifício, fundado em 756, perdurou ininterruptamente até 1870, quando cedeu ao movimento de unificação da península itálica.
Registraram-se, no decorrer desses muitos séculos, obras grandiosas,
que a soberania temporal dos Papas possibilitou; mas verificaram-se
outrossim certos abusos, gestos de prepotência política e de luxo
mundano, principalmente no período da Renascença. A
Santa Igreja, guiada pelo Espírito Santo, é a primeira a reconhecer e
condenar tais desvios; ela não se identifica irrestritamente com nenhum
de seus membros, mas, na qualidade de Esposa de Cristo, transcende a
todos, até mesmo aos mais altamente colocados (pois cada um traz até
certo ponto o lastro do pecado); também não se surpreende ao verificar
os abusos de seus filhos; estão bem na linha da parábola evangélica do
joio e do trigo…
Em 1870, tendo caído o
poder temporal dos Papas, foram amplamente debatidas as vantagens e os
inconvenientes da conservação do Estado Pontifício (tratava-se da
«Questão Romana»). Apesar de toda a pressão adversária, Pio IX, Leão
XIII, São Pio X, Bento XV e Pio XI julgaram não poder abrir mão dos seus
antigos direitos; conscientemente, pois, tomaram essa posição. E qual o
motivo que levava os Pontífices a proceder desse modo?
Pio XI o explicou com a máxima clareza
por ocasião do tratado do Latrão ou da restauração do Estado Pontifício,
aos 11 de fevereiro de 1929:
«Podemos dizer que não há
uma linha, uma expressão do tratado (do Latrão) que não tenham sido, ao
menos durante uns trinta meses, objeto particular de nossos estudos, de
nossas meditações e, mais ainda, de nossas orações, orações que pedimos
outrossim a grande número de almas santas e mais amadas por Deus.
Quanto a Nós, sabíamos de antemão que não conseguiríamos contentar a todos, coisa que geralmente nem o próprio Deus consegue…
… Alguns talvez achem exíguo demais
o território temporal. Podemos responder, sem entrar em pormenores e
precisões pouco oportunas, que é realmente pouco, muito pouco; foi
deliberadamente que pedimos o menos possível nessa matéria, depois de
ter refletido, meditado e orado bastante. E isso, por vários motivos,
que nos parecem válidos e sérios.
Antes do mais, quisemos mostrar que
somos sempre o Pai que trata com seus filhos; em outros termos:
quisemos manifestar nossa intenção de não tornar as coisas mais
complicadas e, sim, mais simples e mais fáceis.
Além disto, queríamos acalmar e
dissipar toda espécie de inquietação; queríamos tornar totalmente
injusta, absolutamente infundada, qualquer recriminação levantada ou a
ser levantada em nome de… iríamos dizer: uma superstição de integridade
territorial do país (Itália).
Em terceiro lugar, quisemos
demonstrar de modo peremptório que espécie nenhuma de ambição terrestre
inspira o- Vigário de Jesus Cristo, mas unicamente a consciência de que não é possível não pedir, pois uma certa, soberania territorial é a condição universalmente reconhecida como Indispensável a todo autêntico poder de jurisdição.
Por conseguinte, um mínimo de
território que baste para o exercício da jurisdição, o território sem o
qual esta não poderia subsistir… Parece-nos, em suma, ver as coisas tais
como elas se realizavam na pessoa de São Francisco: este tinha apenas o
corpo estritamente necessário para poder deter a alma unida a si. O
mesmo se deu com outros santos: seu corpo estava reduzido ao estrito
necessário para servir à alma, para continuar a vida humana e, com a
vida, sua atividade benfazeja. Tornar-se-á claro a todos, esperamo-lo,
que o Sumo Pontífice não possui como território material senão o que lhe
é indispensável para o exercício de um poder espiritual confiado a
homens em proveito de homens. Não hesitamos em dizer que Nos comprazemos
neste estado de coisas; comprazemo-Nos por ver o domínio material
reduzido a limites tão restritos que… os homens o devem considerar como
que espiritualizado pela missão espiritual imensa, sublime e realmente
divina que ele é destinado a sustentar e favorecer» (trecho da alocução publicada pelo «Osservatore Romano» de 13 de fevereiro de 1929).
3. As palavras acima definem bem a mente da Igreja a respeito do poder temporal,
de que não quis abrir mão durante os sessenta anos em que dele esteve
despejada. Em última análise, vê-se que o Papa considera a sua soberania
territorial como o corpo imprescindível ao exercício das atividades de
uma alma ou como condição indispensável para o cumprimento de sua missão
religiosa; assim como a alma neste mundo não age normalmente sem corpo,
assim a tarefa espiritual da Igreja seria impedida, caso lhe faltasse
tal suporte temporal.
A comparação ilustra fielmente a
verdade. Tenha-se em vista que a Igreja, por definição, exerce
autoridade não apenas sobre os corpos e o comportamento exterior dos
homens, mas também sobre o setor mais íntimo e importante dos
indivíduos: sobre as almas; e exerce-a independentemente de fronteiras
nacionais, abrangendo centenas de milhões de fiéis do mundo inteiro:
onde quer que esteja comprometido o espírito do homem, mesmo nos planos
aparentemente mais indiferentes à religião, como o esporte, o cinema, a
medicina, o comércio, a Igreja tem que estar aí presente, a fim de
orientar a conduta das almas que assim entram em contato com o mundo
material.
Tal autoridade é realmente colossal. Em
consequência, os filhos da Igreja e os homens que compreendem o que
essa autoridade significa, não podem deixar de desejar que tanto poder
não sofra influência de alguma força estranha, não se torne joguete nas
mãos de soberanos políticos, mais ou menos arbitrários. Por isto, cedo
ou tarde havia de aflorar à consciência dos cristãos a ideia de que o
governo e o Chefe Supremo da Igreja devem ser independentes de qualquer
soberano político nacional, devem enfim ser tão livres quanto qualquer
governo deste mundo. Em caso contrário, estaria frustrada a sua missão.
Esta última conclusão, a história se
encarregou de a comprovar. Com efeito, não faltaram no decurso dos
séculos tentativas das autoridades civis que visavam submeter o soberano
Pontífice à jurisdição do monarca de tal ou tal país (que ótimo jogo
não seria utilizar a autoridade moral dos Papas em favor de interesses
nacionais!). Quando o conseguiram, a tarefa religiosa da Igreja se viu
enormemente prejudicada. Foi o que se deu, por exemplo, durante o
chamado «Exílio de Avinhão»: de 1309 e 1376, os monarcas franceses
obtiveram que os Papas residissem em Avinhão (França), onde, carecendo
de soberania temporal, ficaram sujeitos à influência do governo civil.
Nesse período, os Pontífices foram perdendo parte da sua autoridade
perante a opinião pública internacional; os cristãos de fé (o rei Carlos
IV da Alemanha, o poeta Petrarca, Sta. Brígida, nobre viúva sueca, Sta.
Catarina de Sena) se alarmavam, percebendo que, se a situação se
prolongasse por muito tempo, o Papado deixaria de ter o prestígio
sobrenatural e católico (universal) que deve ter. Basta recordar que o
Pontífice João XXII (1316-1334) entrou em conflito com o rei Luís IV da
Baviera, animado de pretensões cesaropapistas; excomungado pelo Papa, o
monarca respondeu que João XXII servia aos interesses dos Valois de
França; por isto não hesitou em criar um antipapa (Nicolau V), alegando
que a França tinha «seu» Papa.
Tais ideias e fatos evidenciam quão
necessária à missão religiosa da Igreja é a soberania política (por
muito limitada que seja) de que os Pontífices têm tradicionalmente
usufruído e que ainda recentemente reivindicaram (diga-se mesmo sem
temor de exagero: o interesse comum dos fiéis jamais permitiria abrissem
mão de tal direito).
4. Mas que dizer do cerimonial de que o Papa se cerca?
Note-se logo que o fato de ser o
Pontífice soberano de um pequeno território acarreta certo aparato em
torno de sua pessoa. Tal cerimonial, porém, é concebido como homenagem
deferida não à pessoa do Pontífice como tal, mas à autoridade que a
pessoa representa. Aos olhos da fé, não há dúvida, o Chefe visível da
Igreja significa algo de muito grande (é o Vigário de Jesus Cristo);
quem o compreende, não pode deixar de querer exprimir essa consciência
por gestos de apreço. Muitas das demonstrações de reverência em uso na
corte pontifícia devem ter surgido do espontâneo afeto dos cristãos; os
católicos as entendem como profissão de fé no Cristo e na Igreja. Por
este motivo mesmo, pode-se dizer que os Papas, nem a título de
humildade, têm o direito de se lhes furtar de todo. O próprio Jesus, que
habitualmente não tinha onde repousar a cabeça (cf. Lc 9,58), não
recusou as homenagens dos que O aclamavam quando entrou em Jerusalém,
poucos dias antes de morrer: permitiu que tecessem de vestes e ramos a
via pela qual passava, montado em um jumentinho; permitiu que, com
cantos nos lábios, os hebreus O aclamassem Rei e Filho de Davi,
professando seu entusiasmo pelo Messias (cf. Mt 21,1-11).
O cerimonial de que foi alvo Jesus,
como o cerimonial pontifício, não impede simplicidade interior e
desapego de espírito. Se houve Papas que deram importância pessoal e
excessiva a esse aparato, constituem casos contingentes, que não
derrogam à legitimidade do princípio geral.
5. Quanto às propaladas «riquezas» do Vaticano, é preciso dizer que os rumores a seu respeito ultrapassam de muito a realidade.
A Cidade do Vaticano é, do ponto de
vista territorial, a mínima do mundo. Quando após 1870 se discutia a
«Questão Romana», diziam muitos que, em caso de restauração da soberania
temporal, um Estado do tamanho da República de São Marinho (60,57 km2)
seria suficiente para os Pontífices; ora o Estado Pontifício ressurgiu
com 0,44 km- apenas — o que no século passado parecia incrível! Esso
Estado constitui a simples carcaça de uma alma e tem por exclusiva
função possibilitar o exercício das atividades da respectiva alma ou da
Igreja.
As obras de arte que se encontram no
Vaticano são, em grande parte, a expressão da fé de pintores e
arquitetos cristãos, que quiseram glorificar a Deus mediante o seu
talento. Os Papas — alguns com prodigalidade talvez excessiva — os
incentivaram, porque a Igreja só pode favorecer as artes que contribuam
para a exaltação do Criador
Os objetos contidos nos Museus do
Vaticano foram, em grande parte, doados aos Pontífices por cristãos
sinceros (reis, cruzados, viajantes, exploradores, etc.), em testemunho
de fé. Pertencem ao patrimônio do gênero humano; os Papas não veem
motivo para não os conservar para o bem da cultura universal.
Não há razão, pois, para que o mundo se
detenha cobiçosamente sobre as apregoadas riquezas materiais do
Vaticano. Volte, antes, a sua atenção para os imensos tesouros
espirituais que daquele recanto territorial emanam para o gênero humano.
Queiram-no ou não os homens, é ainda do Vaticano que se faz ouvir a
palavra da Verdade e da Vida em meios às teorias mórbidas e à confusão
ideológica de nossos tempos.
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