Com este tema enlaça-se o da “libertação”: o Deus libertador
propõe-nos a transformação em homens novos, livres da escravidão do egoísmo e
do pecado, para que em nós se manifeste a vida em plenitude, a vida de Deus.
O Evangelho contém um convite a uma transformação radical
da existência, a uma mudança de mentalidade, a um recentrar a vida de forma que
Deus e os seus valores passem a ser a nossa prioridade fundamental. Se isso não
acontecer, diz Jesus, a nossa vida será cada vez mais controlada pelo egoísmo
que leva à morte.
A segunda
leitura avisa-nos
que o cumprimento de ritos externos e vazios não é importante; o que é
importante é a adesão verdadeira a Deus, a vontade de aceitar a sua proposta de
salvação e de viver com Ele numa comunhão íntima.
A primeira
leitura fala-nos do
Deus que não suporta as injustiças e as arbitrariedades e que está sempre presente
naqueles que lutam pela libertação. É esse Deus libertador que exige de nós uma
luta permanente contra tudo aquilo que nos escraviza e que impede a
manifestação da vida plena.
1º leitura: Ex. 3,1-8a.13-15 - AMBIENTE
A primeira parte do livro do Êxodo (Ex. 1-18) apresenta-nos um
conjunto de “tradições” sobre a libertação do Egito: narra-se a iniciativa de
Jahwéh, que escutou os gemidos dos escravos hebreus e teve compaixão deles (cf.
Ex. 2,23-24)
O texto que nos é proposto como primeira leitura apresenta-nos o
chamamento de Moisés, convidado a ser o rosto visível da libertação que Jahwéh
vai levar a cabo.
Algum tempo antes, Moisés deixara o Egito e encontrara abrigo no
deserto do Sinai, depois de ter morto um egípcio que maltratava um hebreu (o
caminho do deserto era o caminho normal dos opositores à política do faraó,
como o demonstram outras histórias da época que chegaram até nós); acolhido por
uma tribo de beduínos, Moisés casou e refez a sua vida, numa experiência de
calma e de tranquilidade bem merecidas, após o incidente que lhe arruinara os
sonhos de uma carreira no aparelho administrativo egípcio (cf. Ex. 2,11-22).
Ora, é precisamente nesse oásis de paz que Jahwéh Se revela, desinquieta Moisés
e envia-o em missão ao Egito.
MENSAGEM
A afirmação “Jahwéh tirou Israel do Egito” será a primitiva
profissão de fé de Israel. É o fato fundamental da fé israelita. Ora, é essa
descoberta que está no centro desta leitura.
O texto que nos é proposto divide-se em duas partes. Na primeira
(vs. 1 - 8), temos o relato da vocação de Moisés. O contexto é o das teofanias
(manifestações de Deus): o “anjo do Senhor”, o fogo (vs. 2 - 3), a onipotência,
a santidade e a majestade de Deus (vs. 4 - 5), a apresentação de Deus, o
sentimento de “temor” que o homem experimenta diante do divino (vs. 6); e Deus
manifesta-Se para “comprometer” Moisés, enviando-o em missão (vs. 7-8) e
fazendo dele o instrumento da libertação.
Fica claro que o chamamento de Moisés é uma iniciativa do Deus
libertador, apostado em salvar o seu Povo. Deus age na história humana através
de homens de coração generoso e disponível, que aceitam os seus desafios.
Na segunda parte (vs. 13-15), apresenta-se a revelação do nome de
Deus (uma espécie de “sinal” que confirma que Moisés foi chamado por Deus e
enviado por Ele em missão): “Eu sou (ou serei) ‘aquele que sou’ (ou que
serei)”. Este nome acentua a presença contínua de Deus na vida do seu Povo, uma
presença viva, ativa e dinâmica, no presente e no futuro, como libertação e salvação.
Os israelitas descobriram, desta forma, que Jahwéh esteve no meio
daquela tentativa humana de libertação e conduziu o processo, de forma a que um
povo vítima da opressão passasse a ser livre e feliz. Para a fé de Israel,
Jahwéh não ficou de braços cruzados diante da opressão; mas iniciou um longo
processo de intervenção na história que se traduziu em libertação e vida para
um povo antes condenado à morte.
Para Israel, o Êxodo tornar-se-á, assim, o modelo e paradigma de
todas as libertações. A partir desta experiência, Israel descobriu a pedagogia
do Deus libertador e soube que Jahwéh está vivo e atuante na história humana,
agindo no coração e na vida de todos os que lutam para tornar este mundo
melhor. Israel descobriu – e procurou dizer-nos isso também a nós – que, no
plano de Deus, aquilo que oprime e destrói os homens não tem lugar; e que
sempre que alguém luta para ser livre e feliz, Deus está com essa pessoa e age
nela. Na libertação do Egito, os israelitas – e, através deles, toda a
humanidade – descobriram a realidade do Deus salvador e libertador.
ATUALIZAÇÃO
· A humanidade geme, hoje, num
violento esforço de libertação política, cultural e econômica: os povos lutam
para se libertarem do colonialismo, do imperialismo, das ditaduras; os pobres
lutam para se libertarem da miséria, da ignorância, da doença, das estruturas
injustas; os marginalizados lutam pelo direito à integração plena na sociedade;
os operários lutam pela defesa dos seus direitos e do seu trabalho; as mulheres
lutam pela defesa da sua dignidade; os estudantes lutam por um sistema de
ensino que os prepare para desempenhar um papel válido na sociedade… Convém
termos consciência que, lá onde alguém está a lutar por um mundo mais justo e
mais fraterno, aí está Deus – esse Deus que vive com paixão o sofrimento dos
explorados e que não fica de braços cruzados diante das injustiças.
· Deus age na nossa vida e na nossa
história através de homens de boa vontade, que se deixam desafiar por Deus e
que aceitam ser seus instrumentos na libertação do mundo. Diante dos
sofrimentos dos irmãos e dos desafios de Deus, como respondo: com o comodismo
de quem não está para se chatear com os problemas dos outros? Com o egoísmo de
quem acha que não é nada consigo? Com a passividade de quem acha que já fez
alguma coisa e que agora é a vez dos outros? Ou com uma atitude de profeta, que
se deixa interpelar por Deus e aceita colaborar com Ele na construção de um
mundo mais justo e mais fraterno?
2º leitura: 1Cor. 10,1-6.10-12 - AMBIENTE
No mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado.
Os animais eram oferecidos aos deuses e imolados nos templos. Uma parte do
animal era queimada e outra parte pertencia aos sacerdotes. No entanto, havia
sempre sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras
encontravam-se à venda nas bancas dos mercados, eram compradas pela população e
entravam na cadeia alimentar. No entanto, tal situação não deixava de suscitar
algumas questões aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las – como toda a
gente fazia – era, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos.
Isso era lícito? É essa questão que inquieta os cristãos de Corinto.
A esta questão, Paulo responde em 1Cor. 8-10. Concretamente, a
resposta aparece em vinte versículos (cf. 1Cor. 8,1-13 e 10,22-29): dado que os
ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente. Contudo, deve-se evitar
escandalizar os mais débeis: se houver esse perigo, evite-se comer dessa carne.
Paulo aproveita este ponto de partida para um desenvolvimento que
vai muito além da questão inicial: comer ou não comer carne imolada aos ídolos
não é importante; o importante é não voltar a cair na idolatria e nos vícios
anteriores; o importante é esforçar-se seriamente por viver em comunhão com
Deus.
MENSAGEM
A título de exemplo, Paulo apresenta a história do Povo de Deus do
Antigo Testamento. Os israelitas foram todos conduzidos por Deus (a nuvem),
passaram todos pela água libertadora do Mar Vermelho, alimentaram-se todos do
mesmo maná e da mesma água do rochedo “que era Cristo” (Paulo inspira-se numa
antiga tradição rabínica segundo a qual o rochedo de Nm. 20,8 seguia Israel na
sua caminhada pelo deserto; e, para Paulo, este rochedo é o símbolo de Cristo,
pré-existente, já presente na caminhada para a liberdade dos hebreus do Antigo
Testamento); mas isso não evitou que a maior parte deles ficasse prostrada no
deserto, pois o seu coração não estava verdadeiramente com Deus e cederam à
tentação dos ídolos.
Assim também os coríntios, embora tenham recebido o batismo e
participado da eucaristia, não têm a salvação garantida: não bastam os ritos,
não basta a letra.
Apesar do cumprimento das regras, os sacramentos não são mágicos:
não significam nada e não realizam nada se não houver uma adesão verdadeira à
vontade de Deus.
Aos “fortes” e “auto-suficientes” de Corinto, Paulo recorda: o
fundamental, na vivência da fé, não é comer ou não carne imolada aos ídolos;
mas é levar uma vida coerente com as exigências de Deus e viver em verdadeira
comunhão com Deus.
ATUALIZAÇÃO
· O que é essencial na nossa vivência
cristã? O cumprimento de ritos externos que nos marcam como cristãos aos olhos
do mundo (ou dos nossos superiores)? Ou é uma vida de comunhão com Deus, vivida
com coerência e verdade, que depois se transforma em gestos de amor e de
partilha com os nossos irmãos? O que é que condiciona as minhas atitudes: o
“parecer bem” ou o “ser” de verdade?
· Os sacramentos não são ritos mágicos
que transformam o homem em pessoa nova, quer ele queira quer não. Eles são a
manifestação dessa vida de Deus que nos é gratuitamente oferecida, que nós
acolhemos como um dom, que nos transforma e que nos torna “filhos de Deus”. É
nessa perspectiva que encaramos os momentos sacramentais em que participamos? É
isto que procuramos transmitir quando orientamos encontros de preparação para
os sacramentos?
Evangelho: Lc. 13,1-9 - AMBIENTE
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas.
13 1 Neste mesmo tempo contavam alguns o que tinha acontecido a certos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios.
2 Jesus toma a palavra e lhes pergunta: “Pensais vós que estes galileus foram maiores pecadores do que todos os outros galileus, por terem sido tratados desse modo?
3 Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo.
4 Ou cuidais que aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, foram mais culpados do que todos os demais habitantes de Jerusalém?
5 Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo”.
6 Disse-lhes também esta comparação: “Um homem havia plantado uma figueira na sua vinha, e, indo buscar fruto, não o achou”.
7 Disse ao viticultor: ‘Eis que três anos há que venho procurando fruto nesta figueira e não o acho. Corta-a; para que ainda ocupa inutilmente o terreno?’
8 Mas o viticultor respondeu: ‘Senhor, deixa-a ainda este ano; eu lhe cavarei em redor e lhe deitarei adubo.
9 Talvez depois disto dê frutos. Caso contrário, cortá-la-ás’”.
Palavra da Salvação.
13 1 Neste mesmo tempo contavam alguns o que tinha acontecido a certos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios.
2 Jesus toma a palavra e lhes pergunta: “Pensais vós que estes galileus foram maiores pecadores do que todos os outros galileus, por terem sido tratados desse modo?
3 Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo.
4 Ou cuidais que aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, foram mais culpados do que todos os demais habitantes de Jerusalém?
5 Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo”.
6 Disse-lhes também esta comparação: “Um homem havia plantado uma figueira na sua vinha, e, indo buscar fruto, não o achou”.
7 Disse ao viticultor: ‘Eis que três anos há que venho procurando fruto nesta figueira e não o acho. Corta-a; para que ainda ocupa inutilmente o terreno?’
8 Mas o viticultor respondeu: ‘Senhor, deixa-a ainda este ano; eu lhe cavarei em redor e lhe deitarei adubo.
9 Talvez depois disto dê frutos. Caso contrário, cortá-la-ás’”.
Palavra da Salvação.
O Evangelho de hoje situa-nos, já, no contexto da “viagem” de
Jesus para Jerusalém (cf. Lc. 9,51 - 19,28). Mais do que um caminho geográfico,
é um caminho espiritual, que Jesus percorre rodeado pelos discípulos. Durante
esse percurso, Jesus prepara-os para que entendam e assumam os valores do Reino
(mesmo quando as palavras de Jesus se dirigem às multidões, como é o caso do
episódio de hoje, são os discípulos que rodeiam Jesus os primeiros
destinatários da mensagem). Pretende-se que, terminada esta caminhada, os
discípulos estejam preparados para continuar a obra de Jesus e para levar a sua
proposta libertadora a toda a terra.
O texto que hoje nos é proposto apresenta um convite veemente à
conversão ao Reino. Destina-se à multidão, em geral, e aos discípulos que
rodeiam Jesus, em particular.
MENSAGEM
O texto apresenta duas partes distintas, embora unidas pelo tema
da conversão. Na primeira parte (cf. Lc. 13,1-5), Jesus cita dois exemplos
históricos que, no entanto, não conhecemos com exatidão (assassínio de alguns
patriotas judeus por Pilatos e a queda de uma torre perto da piscina de Siloé).
Flávio Josefo, o grande historiador judeu do séc. I, narra como Pilatos matou
alguns judeus que se haviam revoltado em Jerusalém. Trata-se do exemplo citado
por Jesus? Não sabemos. Também não sabemos nada sobre a queda da torre de Siloé
que, segundo Jesus, matou dezoito pessoas… Apesar disso, a conclusão que Jesus
tira destes dois casos é bastante clara: aqueles que morreram nestes desastres
não eram piores do que os que sobreviveram. Refuta, desta forma, a doutrina
judaica da retribuição segundo a qual o que era atingido por alguma desgraça
era culpado por algum grave pecado. No caso presente, esta doutrina levava à
seguinte conclusão: “nós somos justos, porque nos livramos da morte nas
circunstâncias nomeadas”. Em contrapartida, Jesus pensa que, diante de Deus,
todos os homens precisam de se converter. A última frase do vs. 5 (“se não vos
arrependerdes perecereis todos do mesmo modo”) deve ser entendida como um
convite à mudança de vida; se ela não ocorrer, quem vencerá é o egoísmo que
conduz à morte.
Na segunda parte (cf. Lc. 13,6-9), temos a parábola da figueira.
Serve para ilustrar as oportunidades que Deus concede para a conversão. O
Antigo Testamento tinha utilizado a figueira como símbolo de Israel (cf. Os.
9,10), inclusive como símbolo da sua falta de resposta à aliança (cf. Jr. 8,13)
(uma ideia semelhante aparece na alegoria da vinha de Is. 5,1 - 7). Deus
espera, portanto, que Israel (a figueira) dê frutos, isto é, aceite
converter-se à proposta de salvação que lhe é feita em Jesus; dá-lhe, até,
algum tempo (e outra oportunidade), para que essa transformação ocorra. Deus
revela, portanto, a sua bondade e a sua paciência; no entanto, não está
disposto a esperar indefinidamente, pactuando com a recusa do seu Povo em
acolher a salvação. Apesar do tom ameaçador, há no cenário de fundo desta
parábola uma nota de esperança:
Jesus confia em que a resposta final de Israel à sua missão seja
positiva.
ATUALIZAÇÃO
· A proposta principal que Jesus
apresenta neste episódio chama-se “conversão” (“metanoia”). Não se trata de
penitência externa, ou de um simples arrependimento dos pecados; trata-se de um
convite à mudança radical, à reformulação total da vida, da mentalidade, das
atitudes, de forma que Deus e os seus valores passem a estar em primeiro lugar.
É este caminho a que somos chamados a percorrer neste tempo, a fim de
renascermos, com Jesus, para a vida nova do Homem Novo. Concretamente, em que é
que a minha mentalidade deve mudar? Quais são os valores a que eu dou
prioridade e que me afastam de Deus e das suas propostas?
· Essa transformação da nossa existência
não pode ser adiada indefinidamente. Temos à nossa disposição um tempo
relativamente curto: é necessário aproveitá-lo e deixar que em nós cresça, o
mais cedo possível, o Homem Novo. Está em jogo a nossa felicidade, a vida em
plenitude… Porquê adiar a sua concretização?
· Uma outra proposta convida-nos a
cortar definitivamente da nossa mentalidade a ligação direta entre pecado e
castigo. Dizer que as coisas boas que nos acontecem são a recompensa de Deus
para o nosso bom comportamento e que as coisas más são o castigo para o nosso
pecado, equivale a acreditarmos num deus mercantilista e chantagista que,
evidentemente, não tem nada a ver com o nosso Deus.
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P.
José Ornelas Carvalho
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