domingo, 21 de fevereiro de 2016

2º DOMINGO DA QUARESMA - A TRANSFIGURAÇÃO DE JESUS.

 
As leituras deste domingo convidam-nos a refletir sobre a nossa “transfiguração”, a nossa conversão à vida nova de Deus; nesse sentido, são-nos apresentadas algumas pistas.
A primeira leitura apresenta-nos Abraão, o modelo do crente. Com Abraão, somos convidados a “acreditar”, isto é, a uma atitude de confiança total, de aceitação radical, de entrega plena aos desígnios desse Deus que não falha e é sempre fiel às promessas.
A segunda leitura convida-nos a renunciar a essa atitude de orgulho, de auto-suficiência e de triunfalismo, resultantes do cumprimento de ritos externos; a nossa transfiguração resulta de uma verdadeira conversão do coração, construída dia a dia sob o signo da cruz, isto é, do amor e da entrega da vida.
O Evangelho apresenta-nos Jesus, o Filho amado do Pai, cujo êxodo (a morte na cruz) concretiza a nossa libertação. O projeto libertador de Deus em Jesus não se realiza através de esquemas de poder e de triunfo, mas através da entrega da vida e do amor que se dá até à morte. É esse o caminho que nos conduz, a nós também, à transfiguração em Homens Novos.
 

1ª leitura: Gn. 15,5-12.17-18 - AMBIENTE

A primeira leitura de hoje faz parte das chamadas “tradições patriarcais” (Gn. 12-36). São “tradições” que misturam “mitos de origem” (descreviam a “tomada de posse” de um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais” (narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nômades que circularam pela Palestina e reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.
Os clãs referenciados nas “tradições patriarcais” – nomeadamente os de Abraão, Isaac e Jacob – tinham os seus sonhos e esperanças. O denominador comum desses sonhos era a esperança de encontrar uma terra fértil e bem irrigada, bem como possuir uma família forte e numerosa que perpetuasse a “memória” da tribo e se impusesse aos inimigos. O deus aceite pelo grupo era o potencial concretizador desse ideal.
É neste “ambiente” que este texto nos coloca. Diante de Deus, Abraão lamenta-se (cf. Gn. 15,2-3) porque a sua vida está a chegar ao fim e o seu herdeiro será um servo – Eliezer (conhecemos contratos do séc. XV a. C. onde se estipula, em caso de falta de filhos, a adoção de escravos que, por sua vez, se comprometiam a dar ao seu senhor uma sepultura conveniente. Parece ser a esse costume que o texto alude). Qual será a resposta de Deus ao lamento de Abraão?
MENSAGEM
A primeira parte deste texto começa com Deus a responder a Abraão e a garantir-lhe uma descendência numerosa “como as estrelas do céu” (v. 5). Na sequência, o narrador deixa Abraão a contemplar em silêncio o céu estrelado e volta-se para o leitor, comunicando-lhe os seus próprios juízos teológicos (v. 6): Abraão acreditou em Jahwéh e, por isso, o Senhor considerou-o como justo. A (usa-se o verbo “‘aman”, que significa “estar firme”, “ser leal”, “acreditar plenamente”) de que aqui se fala traduz uma atitude de confiança total, de aceitação radical, de entrega plena aos desígnios de Deus; a justiça é um conceito relacional, que exprime um comportamento correto no que diz respeito a uma relação comunitária existente: aqui, significa o reconhecimento de que Abraão teve um comportamento correto na sua relação com Jahwéh, ao confiar totalmente em Deus e ao aceitar os seus planos sem qualquer dúvida ou discussão.
Há ainda o complemento habitual da promessa: a garantia de uma terra (v. 7). Os dois temas – descendência e posse da terra – andam associados, nestes casos.
A segunda parte do texto apresenta Deus a fazer os preparativos de um misterioso cerimonial. Trata-se de um rito de conclusão de uma aliança, conhecido sob esta ou outra forma semelhante em numerosos povos antigos: cortavam-se os animais em dois e colocavam-se as duas metades frente a frente; quem subscrevia a aliança passava entre as duas metades de animais e pronunciava contra si próprio uma espécie de maldição, para o caso de ser responsável pela quebra do pacto.
Seguindo o modo como entre os homens se garantia a máxima firmeza contratual, o catequista bíblico acentua a ideia de um compromisso solene e irrevogável que Deus assume com Abraão. A promessa de Deus fica assim totalmente garantida.
Repare-se, ainda, num outro pormenor: Deus não exigiu nada a Abraão, em troca, nem Abraão teve que passar no meio dos animais mortos (só Deus passou, no “fogo ardente”). A promessa de Deus a Abraão é, pois, totalmente gratuita e incondicional.
ATUALIZAÇÃO
Apesar da contínua reafirmação das promessas, Abraão está velho, sem filhos, sem a terra sonhada e a sua vida parece condenada ao fracasso. Seria natural que Abraão manifestasse o seu desapontamento e a sua frustração diante de Deus; no entanto, a resposta de Abraão é confiar totalmente em Deus, aceitar os seus projetos e pôr-se ao serviço dos desígnios de Jahwéh. É esta mesma confiança total que marca a minha relação com Deus? Estou sempre disposto – mesmo em situações que eu não compreendo – a entregar-me nas mãos de Deus e a confiar nos seus desígnios?
O Deus que se revela a Abraão é um Deus que se compromete com o homem e cujas promessas são garantidas, gratuitas e incondicionais. Diante disto, somos convidados a construir a nossa existência com serenidade e confiança, sabendo que no meio das tempestades que agitam a nossa vida Ele está lá, acompanhando-nos, amando-nos e sendo a rocha segura a que nos podemos agarrar quando tudo o resto falhou.
 

2ª leitura: Fl. 3,17 - 4,1 - AMBIENTE

Na prisão (em Éfeso?), Paulo agradece aos Filipenses a preocupação manifestada (eles até enviaram dinheiro e um membro da comunidade para ajudar Paulo no cativeiro), dá notícias, exorta-os à fidelidade e põe-nos de sobreaviso em relação aos falsos pregadores do Evangelho de Jesus. Estamos no ano 56/57, provavelmente.
O texto que nos é proposto como segunda leitura faz parte de um longo desenvolvimento (cf. Fl. 3,1 - 4,1), no qual Paulo avisa os Filipenses para que tenham cuidado com “os cães”, os “maus obreiros”, os “falsos circuncidados” (cf. Fl. 3,2).
Quem são estes, a quem Paulo se refere de uma forma tão pouco delicada? Muito provavelmente, são esses cristãos de origem judaica (”judaizantes”) que se consideravam os únicos perfeitos e detentores da verdade, que exigiam aos cristãos o cumprimento da Lei de Moisés e que, dessa forma, lançavam a confusão nas comunidades cristãs do mundo helênico. As duras palavras de Paulo resultam da sua revolta diante daqueles que, com a sua intolerância, com o seu orgulho e auto-suficiência, confundiam os cristãos e punham em causa o essencial da fé (o Evangelho não é o cumprimento de ritos externos, mas a adesão à proposta gratuita de salvação que Deus nos faz em Jesus).
MENSAGEM
Os Filipenses têm diante de si dois possíveis e muito diferentes exemplos a seguir.
Um é o de Paulo, que se considera um atleta de fundo, que já começou a sua corrida, mas tem consciência de que ainda não atingiu a meta; outro é o desses pregadores “judaizantes” que alardeiam participar já, de forma plena e definitiva, no triunfo de Cristo. Paulo recusa este triunfalismo e não duvida em pedir aos Filipenses que não imitem o exemplo de orgulho desses pregadores, mas o exemplo do próprio Paulo.
Aos Filipenses e a todos os cristãos, Paulo avisa que em nenhum caso devem considerar-se como atletas já vitoriosos e coroados de glória, mas como atletas em plena competição, esperando alcançar a meta e a vitória. A salvação não está consumada; encontra-se ainda em processo de gestação. É um processo em que o cristão vai amadurecendo progressivamente, sob o signo da cruz de Cristo.
Quanto a esses, “cujo deus é o ventre” (Paulo visa aqui, com alguma ironia, as observâncias alimentares dos “judaizantes”), que põem o “orgulho na sua vergonha” (sem dúvida, a circuncisão, sinal da pertença ao “povo eleito”) e “colocam o seu coração nas coisas terrenas” (alguns pensam que Paulo se refere, aqui, a certas práticas libertinas), esses esqueceram o essencial e estão condenados à perdição (v. 19).
O nosso destino definitivo, segundo Paulo, não é um corpo corruptível e mortal, mas um corpo transfigurado pela ressurreição. Como garantia de que será assim, temos Jesus Cristo, Senhor e Salvador.
ATUALIZAÇÃO
Neste tempo de transformação e renovação, somos convidados pela Palavra de Deus a ter consciência de que a nossa caminhada em direção ao Homem Novo não está concluída; trata-se de um processo construído dia a dia sob o signo da cruz, isto é, numa entrega total por amor que subverte os nossos esquemas egoístas e comodistas.
Considerar-se (como os “judaizantes” de que Paulo fala) como alguém que já atingiu a meta da perfeição pela prática de alguns ritos externos (as normas alimentares e a circuncisão, para os “judaizantes”, ou as práticas de jejum e abstinência, para os cristãos) é orgulho e auto-suficiência: significa que ainda não percebemos onde está o essencial – na mudança do coração. Só a transformação radical do coração nos conduzirá a essa vida nova, transfigurada pela ressurreição.
 

EVANGELHO: Lc. 9,28b-36 - AMBIENTE

Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas.
9 28 Passados uns oitos dias, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e subiu ao monte para orar.
29 Enquanto orava, transformou-se o seu rosto e as suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura.
30 E eis que falavam com ele dois personagens: eram Moisés e Elias,
31 que apareceram envoltos em glória, e falavam da morte dele, que se havia de cumprir em Jerusalém.
32 Entretanto, Pedro e seus companheiros tinham-se deixado vencer pelo sono; ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois personagens em sua companhia.
33 Quando estes se apartaram de Jesus, Pedro disse: “Mestre, é bom estarmos aqui. Podemos levantar três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias!” Ele não sabia o que dizia.
34 Enquanto ainda assim falava, veio uma nuvem e encobriu-os com a sua sombra; e os discípulos, vendo-os desaparecer na nuvem, tiveram um grande pavor.
35 Então da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho muito amado; ouvi-o!”
36 E, enquanto ainda ressoava esta voz, achou-se Jesus sozinho. Os discípulos calaram-se e a ninguém disseram naqueles dias coisa alguma do que tinham visto.
Palavra da Salvação.

 

Estamos no final da “etapa da Galileia”; durante essa etapa, Jesus anunciou a salvação aos pobres, proclamou a libertação aos cativos, fez os cegos recobrar a vista, mandou em liberdade os oprimidos, proclamou o tempo da graça do Senhor (cf. Lc. 4,16-30). À volta de Jesus já se formou esse grupo dos que acolheram a oferta da salvação (os discípulos). Testemunhas das palavras e dos gestos libertadores de Jesus, eles já descobriram que Jesus é o Messias de Deus (cf. Lc. 9,18-20). Também já ouviram dizer que o messianismo de Jesus passa pela cruz (cf. Lc. 9,21-22) e que os discípulos de Jesus devem seguir o mesmo caminho de amor e de entrega da vida (cf. Lc. 9,23-26); mas, antes de subirem a Jerusalém para testemunhar a erupção total da salvação, recebem a revelação do Pai que, no alto de um monte, atesta que Jesus é o Filho bem amado. Os acontecimentos que se aproximam ganham, assim, novo sentido.
Para o homem bíblico, o “monte” era o lugar sagrado por excelência: a meio caminho entre a terra e o céu, era o lugar ideal para o encontro do homem com o mundo divino.
É, portanto, no monte que Deus Se revela ao homem e lhe apresenta os seus projetos.
MENSAGEM
O relato da transfiguração de Jesus, mais do que uma crônica fotográfica de acontecimentos, é uma página de teologia; aí, apresenta-se uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que através da cruz concretiza um projeto de vida.
O episódio está cheio de referências ao Antigo Testamento. O “monte” situa-nos num contexto de revelação (é “no monte” que Deus Se revela e que faz aliança com o seu Povo); a “mudança” do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex. 34,29); a nuvem indica a presença de Deus conduzindo o seu Povo através do deserto (cf. Ex. 40,35; Nm. 9,18.22;10,34).
Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt. 18,15-18; Mal. 3,22-23). Eles falam com Jesus sobre a sua “morte” (”exodon” – “partida”) que ia dar-se em Jerusalém. A palavra usada por Lucas situa-nos no contexto do “êxodo”: a morte próxima de Jesus é, pois, vista por Lucas como uma morte libertadora, que trará o Povo de Deus da terra da escravidão para a terra da liberdade.
A mensagem fundamental é, portanto, esta: Jesus é o Filho amado de Deus, através de quem o Pai oferece aos homens uma proposta de aliança e de libertação. O Antigo Testamento (Lei e profetas) e as figuras de Moisés e Elias apontam para Jesus e anunciam a salvação definitiva que, n’Ele, irá acontecer. Essa libertação definitiva dar-se-á na cruz, quando Jesus cumprir integralmente o seu destino de entrega, de dom, de amor total. É esse o “novo êxodo”, o dia da libertação definitiva do Povo de Deus.
E o “sono” dos discípulos e as “tendas”? O “sono” é simbólico: os discípulos “dormem” porque não querem entender que a “glória” do Messias tenha de passar pela experiência da cruz e da entrega da vida; a construção das “tendas” (alusão à “festa das tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas, no deserto?) parece significar que os discípulos queriam deter-se nesse momento de revelação gloriosa, de festa, ignorando o destino de sofrimento de Jesus.
ATUALIZAÇÃO
O fato fundamental deste episódio reside na revelação de Jesus como o Filho amado de Deus, que vai concretizar o plano salvador e libertador do Pai em favor dos homens através do dom da vida, da entrega total de Si próprio por amor. É dessa forma que se realiza a nossa passagem da escravidão do egoísmo para a liberdade do amor. A “transfiguração” anuncia a vida nova que daí nasce, a ressurreição.
Os três discípulos que partilham a experiência da transfiguração recusam-se a aceitar que o triunfo do projeto libertador do Pai passe pelo sofrimento e pela cruz. Eles só concebem um Deus que Se manifesta no poder, nas honras, nos triunfos; e não entendem um Deus que Se manifesta no serviço, no amor que se dá. Qual é o caminho da Igreja de Jesus (e de cada um de nós, em particular): um caminho de busca de honras, de busca de influências, de promiscuidade com o poder, ou um caminho de serviço aos mais pobres, de luta pela justiça e pela verdade, de amor que se faz dom? É no amor e no dom da vida que buscamos a vida nova aqui anunciada?
Os discípulos, testemunhas da transfiguração, parecem também não ter muita vontade de “descer à terra” e enfrentar o mundo e os problemas dos homens. Representam todos aqueles que vivem de olhos postos no céu, mas alheados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para o renovar e transformar. No entanto, a experiência de Jesus obriga a continuar a obra que Ele começou e a “regressar ao mundo” para fazer da vida um dom e uma entrega aos homens nossos irmãos. A religião não é um “ópio” que nos adormece, mas um compromisso com Deus que Se faz compromisso de amor com o mundo e com os homens.
 
 
 
 
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho

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