A liturgia do 26º domingo do tempo comum apresenta várias sugestões para
que os crentes possam purificar a sua opção e integrar, de forma plena e total,
a comunidade do Reino. Uma das sugestões mais importantes (que a primeira
leitura apresenta e que o Evangelho recupera) é a de que os crentes não
pretendam ter o exclusivo do bem e da verdade, mas sejam capazes de reconhecer
e aceitar a presença e a ação do Espírito de Deus através de tantas pessoas boas
que não pertencem à instituição Igreja, mas que são sinais vivos do amor de
Deus no meio do mundo.
A primeira leitura, recorrendo a um episódio da marcha do Povo de Deus
pelo deserto, ensina que o Espírito de Deus sopra onde quer e sobre quem quer,
sem estar limitado por regras, por interesses pessoais ou por privilégios de
grupo. O verdadeiro crente é aquele que, como Moisés, reconhece a presença de
Deus nos gestos proféticos que vê acontecer à sua volta.
No Evangelho temos uma instrução, através da qual Jesus procura ajudar
os discípulos a situarem-se na órbita do Reino. Nesse sentido, convida-os a
constituírem uma comunidade que, sem arrogância, sem ciúmes, sem presunção de
posse exclusiva do bem e da verdade, procura acolher, apoiar e estimular todos
aqueles que atuam em favor da libertação dos irmãos; convida-os também a não
excluírem da dinâmica comunitária os pequenos e os pobres; convida-os ainda a
arrancarem da própria vida todos os sentimentos e atitudes que são
incompatíveis com a opção pelo Reino.
A segunda leitura convida os crentes a não colocarem a sua confiança e a
sua esperança nos bens materiais, pois eles são valores perecíveis e que não
asseguram a vida plena para o homem. Mais: as injustiças cometidas por quem faz
da acumulação dos bens materiais a finalidade da sua existência afastá-lo-ão da
comunidade dos eleitos de Deus.
1ª leitura: Nm. 11,25-29 - Ambiente
O livro dos Números (assim chamado na versão grega, pelo fato de o livro
começar com uma lista de recenseamento onde são dados os números de membros de
cada tribo do Povo de Deus) apresenta um conjunto de tradições – sem grande
preocupação de coerência e de lógica – sobre a estadia no deserto dos hebreus
libertados do Egito. São tradições de origem diversa, que os teólogos das escolas
jahwista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos. No seu estado
atual, o livro está dividido em três partes. A primeira narra os últimos dias
da estadia do Povo de Deus no Sinai (cf. Nm. 1,1-10,10); a segunda apresenta,
em várias etapas, a caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à planície de
Moab (cf. Nm. 10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos filhos de
Israel instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra
Prometida (cf. 11,1-36,13). Mais do que uma crônica de viagem do Povo de Deus
desde o Sinai, até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro
de catequese. Pretende mostrar que a essência de Israel é ser um Povo reunido à
volta de Jahwéh e da Aliança. Com algum idealismo, os autores do Livro dos
Números vão descrevendo como, por ação de Jahwéh, esse grupo informe de nómadas
libertado do Egito foi ganhando progressivamente uma consciência nacional e
religiosa, até chegar a formar a “assembléia santa de Deus”. Ao longo do
percurso geográfico pelo deserto, Israel vai fazendo também uma caminhada
espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para
adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O autor mostra como, por
ação de Deus (que está sempre presente no meio do Povo), Israel vai
progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se, alargando os
horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto
e mais santo. O episódio que hoje nos é proposto acontece pouco depois da partida
do Sinai. Num lugar chamado Tabera (cf. Nm. 11,3), o Povo revoltou-se por não
ter comida em abundância e murmurou contra Jahwéh. Moisés, cansado e
desiludido, queixou-se ao Senhor de não conseguir aguentar o fardo da condução
deste Povo rebelde (cf. Nm. 11,11-15); então, Jahwéh propôs a Moisés escolher
setenta anciãos que, depois de ungidos pelo Espírito de Deus, ajudariam Moisés
na tarefa de conduzir o Povo pelo deserto (cf. Nm 11,16-24). É precisamente
neste ponto que começa o nosso texto.
Mensagem
Os “anciãos” (em hebraico: “tzequenîm”) são uma instituição no
universo político e social de Israel. São os “cabeças de família” que formavam,
em cada cidade, uma espécie de “conselho” e que presidiam à comunidade. O nosso
texto faz remontar a Moisés e ao deserto a instituição dos anciãos. Na
perspectiva do catequista bíblico, eles recebem o Espírito de Deus para
colaborar na governação do Povo de Deus.
A forma como o nosso autor descreve o dom do Espírito é a seguinte: Deus
tirou “uma parte” do Espírito que estava em Moisés e derramou-o sobre os
setenta anciãos. Na perspectiva do autor, a explicação é esta: Moisés possuía a
plenitude do Espírito enquanto dirigiu sozinho o Povo de Deus; porém, quando a
responsabilidade da governação foi dividida com os setenta anciãos, também o
Espírito que repousava em Moisés foi repartido por todos. A descrição, ainda
que bizarra, dá a idéia, por um lado, da unidade do Espírito e, por outro, da
partilha do mesmo Espírito por todos aqueles que Deus chama a uma missão.
A presença do Espírito de Deus nos anciãos manifesta-se na capacidade de
profetizar. O “profetismo” de que aqui se fala não tem nada a ver com o
“profetismo” dos grandes profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá
mais tarde; mas designa um estado de entusiasmo ou frenesim, de êxtase e
delírio coletivo, destinados a criar um clima de fervor e de exaltação
religiosa. Nesta altura, manifestações deste tipo são vistas como sinais da
presença do Espírito de Deus.
A história tem, contudo, um epílogo inesperado: Eldad e Medad, dois
anciãos que estariam na lista dos setenta escolhidos, mas que não estavam
presentes no momento da recepção do Espírito, começaram também a profetizar.
Josué crê que se trata de um abuso intolerável, que põe em causa as
competências da hierarquia estabelecida e propõe a Moisés que lhe ponha cobro…
A resposta de Moisés é a resposta de um homem livre, magnânimo, de espírito
aberto, que não está preocupado com o controle dos mecanismos de poder, mas com
a vida e a felicidade do seu Povo: “Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me
dera que todo o Povo fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito
sobre eles” (v. 29).
A resposta de Moisés será um anúncio profético do dia do Pentecostes,
quando o Espírito de Deus se derramou sobre a totalidade do Povo da Nova
Aliança (cf. At. 2,16-21).
Atualização
• A comunidade do Povo de Deus é a comunidade do Espírito. O
Espírito não é privilégio dos membros da hierarquia; mas está bem vivo e bem
presente em todos aqueles que abrem o coração aos dons de Deus e que aceitam
comprometer-se com Jesus e com o seu projeto de vida. Mesmo o irmão mais
humilde, mais pobre, menos considerado da nossa comunidade possui o Espírito de
Deus.
•O episódio ensina também que o Espírito de Deus é livre e atua onde
quer e como quer. Não está limitado por fronteiras, nem por regras, nem por
interesses pessoais, nem por privilégios de grupo. Nenhuma Igreja tem o monopólio
do Espírito, nenhuma instituição pode controlá-lo ou acorrentá-lo. Por vezes,
somos testemunhas da ação do Espírito no mundo através de pessoas que não
pertencem à nossa instituição religiosa… Não temos que sentir-nos melindrados
ou ciumentos se Deus age no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa
Igreja; temos é de reconhecer a presença de Deus nos gestos de amor, de paz, de
justiça, de solidariedade, de partilha que todos os dias testemunhamos (mesmo
naqueles que se dizem ateus) e agradecer ao nosso Deus a sua presença, a sua
ação, o seu amor pelos homens e pelo mundo.
•A certeza de que ninguém tem o exclusivo do Espírito obriga-nos a pôr
de lado qualquer atitude de fanatismo, de intransigência ou de intolerância
face às perspectivas diferentes com que somos confrontados. Os preconceitos, os
esquemas egoístas, as condenações à priori, os julgamentos apressados, podem
fazer-nos perder os desafios que o Espírito, pela voz dos irmãos, nos
apresenta.
•Moisés, o líder do processo de libertação que trouxe os hebreus da
terra da escravidão para a Terra da liberdade, foi capaz de reconhecer a sua
debilidade e a sua incapacidade de “fazer tudo” e aceitou a ajuda da
comunidade. Não teve ciúmes, nem inveja, nem medo de perder o controle do
processo, nem dificuldade em aceitar a partilha das tarefas que o Senhor lhe
confiou. Com o seu exemplo, ele ensina os responsáveis das nossas comunidades a
aceitar a ajuda dos irmãos, a partilhar com outros o peso da responsabilidade
de conduzir a comunidade do Povo de Deus. Por vezes, temos a convicção de que
só nós somos capazes de fazer as coisas bem e evitamos aceitar a ajuda dos
outros; por vezes, sentimos que a intervenção de outras pessoas é uma ameaça ao
nosso poder e rejeitamos qualquer ajuda; por vezes, queremos controlar o
caminho da comunidade, porque não estamos dispostos a renunciar aos nossos
sonhos, aos nossos projetos pessoais… Já pensamos que, quando não aceitamos
partilhar responsabilidades, estamos a impedir os outros de crescer? Já
pensamos que, quando somos nós a conduzir todo o processo, sem nos deixarmos
confrontar com perspectivas diferentes, podemos estar a calar os desafios do
Espírito?
2ª leitura: Tg. 5,1-6 - Ambiente
A carta de Tiago termina com dois blocos de exortações onde o autor
recorda aos seus interlocutores alguns dos aspectos que elencou anteriormente e
que, na sua perspectiva, devem ser tidos em séria conta por parte de quem está
interessado em viver a vida cristã autêntica. Para o autor, o acesso à vida
plena depende das opções que o homem faz enquanto caminha nesta terra. O
primeiro bloco (cf. Tg. 4,11-5,6) contém um elenco de atitudes negativas, que
os crentes devem evitar a todo o custo: falar mal dos irmãos (cf. Tg. 4,11-12),
viver no orgulho e na auto-suficiência face a Deus (cf. Tg 4,13-17), viver para
os bens materiais e praticar injustiças contra os pobres (cf. Tg. 5,1-6). O
segundo bloco (cf. Tg. 5,7-20) contém uma lista de atitudes positivas que os
crentes devem assumir enquanto esperam a vinda do Senhor: paciência, perseverança
e firmeza no falar (cf. Tg. 5,7-12), oração (cf. Tg. 5,1-18) e preocupação em
reconduzir ao bom caminho o irmão que anda afastado (cf. Tg. 5,19-20). O texto
que nos é proposto é um grito profético de denúncia dos ricos, do seu orgulho e
auto-suficiência, da sua obsessão pelos bens materiais. Este texto deve ser
colocado no quadro geral de uma época de profundas desigualdades: ao lado de
uma riqueza desmesurada e sem limites, vive e sofre a miséria mais aguda. A
exploração do pobre e a violência contra os humildes eram, na época, fenômenos
demasiado frequentes e que os cristãos conheciam bem.
Mensagem
A primeira parte do nosso texto (vs. 1-3) trata do problema da
acumulação da riqueza. O autor, como numa visão profética, contempla o final
dos tempos e descreve, com violência, a sorte que espera aqueles cujo objetivo
principal na vida foi o acumular bens. Será que os bens, o poder, a
consideração que eles gozaram neste mundo lhes servirá de alguma coisa, quando
chegar o juízo final, o momento em que se joga o destino definitivo do homem?
Obviamente que não. Esses bens nos quais os ricos depositam agora toda a sua
segurança e esperança perderão todo o valor (“as vossas riquezas estão
apodrecidas e as vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa
prata enferrujaram-se…” – vers. 2-3a); ou, pior ainda, serão uma testemunha de
acusação, que denunciará o amor descontrolado dos bens materiais, o orgulho e a
auto-suficiência, as injustiças praticadas contra os pobres. O destino final
dos bens perecíveis é a destruição; e quem tiver os bens materiais como o seu
deus, a sua referência fundamental, não terá acesso à vida plena e eterna (v.
3b.c). Na segunda parte do nosso texto (vers. 4-6), o autor refere-se à origem
desses bens acumulados pelos ricos. Para o autor, não há dúvidas nem
meios-termos: a riqueza provém sempre da exploração dos pobres. Como exemplo, o
autor cita o não pagamento dos salários devidos aos trabalhadores que ceifaram
os campos dos ricos (v. 4). Trata-se de um pecado que a Lei condena de forma
veemente e que Deus castigará duramente (cf. Lv. 19,13; Dt. 24,15). Não pagar o
salário ao trabalhador é condená-lo à morte, bem como a toda a sua família (v.
6). Os luxos e os prazeres dos ricos vivem assim da morte dos pobres.
Naturalmente, Deus não pode pactuar com a injustiça e, por isso, não ficará
indiferente ao sofrimento do pobre e do oprimido. O clamor dos injustiçados
sobe da terra até junto de Deus e faz com que Deus atue. Com ironia mordaz, o
autor compara o rico ao cevado que, engordando, apressa o dia da sua própria
matança (v. 5): os ricos, vivendo no luxo e nos prazeres à custa do sangue dos
pobres, estão a preparar para si próprios um caminho de desgraça e de castigo.
A linguagem do autor da Carta de Tiago é violenta e colorida, bem ao gosto dos
pregadores da época. Para além da veemência das palavras deve ficar, contudo,
esta mensagem: quem vive para os bens materiais e coloca neles o sentido da sua
existência, dificilmente terá disponibilidade para acolher os dons de Deus e para
acolher essa vida plena que Deus quer oferecer aos homens. Por outro lado, Deus
não tolera a exploração, a opressão do pobre; e quem conduzir a sua vida por
caminhos de injustiça, não poderá fazer parte da família de Deus.
Atualização
• O autor da carta de Tiago critica os ricos, em primeiro lugar
porque eles vivem apenas para acumular bens materiais, negligenciando os
verdadeiros valores. Fazem do ouro e da prata os seus deuses e centram toda a
sua existência em valores caducos e perecíveis. No final da sua existência vão
perceber que gastaram a vida a correr atrás de algo que não dá felicidade nem
conduz o homem à vida plena; a sua existência terá sido, então, um dramático
equívoco. O “aviso” do autor da Carta de Tiago conserva uma espantosa
atualidade… A acumulação de bens materiais tornou-se, para tantos homens do
nosso tempo, o único objetivo da vida e o critério único para definir uma vida
de sucesso. Contudo, aqueles que apostam tudo nos bens perecíveis facilmente
constatam como essa opção não responde, em definitivo, à sua sede de felicidade
e de vida plena. O ouro, a conta bancária, o carro de luxo, a casa de sonho,
dão-nos satisfações imediatas e, talvez, um certo estatuto aos olhos do mundo;
mas não saciam a nossa sede de vida eterna. Nós, os cristãos, somos chamados a
testemunhar que a vida verdadeira brota dos valores eternos – esses valores que
Deus nos propõe.
•O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em segundo lugar, porque
frequentemente a riqueza resulta da exploração e da injustiça. Acumular bens à
custa da miséria e da exploração dos irmãos é, na perspectiva do autor do nosso
texto, um crime abominável e que Deus não deixará impune. Não é cristão quem
não paga o salário justo aos seus operários, mesmo que ofereça depois somas
chorudas para a construção de uma igreja; não é cristão quem especula com os
bens de primeira necessidade, mesmo que vá todos os domingos à missa e pertença
a vários grupos paroquiais; não é cristão quem inventa esquemas para não pagar
impostos, mesmo que seja muito amigo do padre da paróquia; não é cristão quem
se aproveita da ignorância e da miséria para realizar negócios altamente
rentáveis, mesmo que pense repartir com Deus os frutos das suas rapinas…
•Uma coisa deve ficar clara: Deus não apóia nunca quem vive fechado em
si próprio, no açambarcamento egoísta desses bens que Deus nos concedeu para
serem postos ao serviço de todos os homens; e qualquer crime cometido contra os
pobres é um crime contra Deus, que afasta o homem da vida plena da comunhão com
Deus.
Evangelho: Mc. 9,38-43.45-47-48 - Ambiente
Naquele tempo, 9 38 João disse-lhe: “Mestre, vimos alguém, que não nos segue, expulsar demônios em teu nome, e lho proibimos”.
39 Jesus, porém, disse-lhe: “Não lho proibais, porque não há ninguém que faça um prodígio em meu nome e em seguida possa falar mal de mim.
40 Pois quem não é contra nós, é a nosso favor.
41 E quem vos der de beber um copo de água porque sois de Cristo, digo-vos em verdade: não perderá a sua recompensa.
42 Mas todo o que fizer cair no pecado a um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que uma pedra de moinho lhe fosse posta ao pescoço e o lançassem ao mar!
43 Se a tua mão for para ti ocasião de queda, corta-a; melhor te é entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para a geena, para o fogo inextinguível
45 Se o teu pé for para ti ocasião de queda, corta-o fora; melhor te é entrares coxo na vida eterna do que, tendo dois pés, seres lançado à geena do fogo inextinguível
47 Se o teu olho for para ti ocasião de queda, arranca-o; melhor te é entrares com um olho de menos no Reino de Deus do que, tendo dois olhos, seres lançado à geena do fogo,
48 ‘onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga’”.
Palavra da Salvação.
39 Jesus, porém, disse-lhe: “Não lho proibais, porque não há ninguém que faça um prodígio em meu nome e em seguida possa falar mal de mim.
40 Pois quem não é contra nós, é a nosso favor.
41 E quem vos der de beber um copo de água porque sois de Cristo, digo-vos em verdade: não perderá a sua recompensa.
42 Mas todo o que fizer cair no pecado a um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que uma pedra de moinho lhe fosse posta ao pescoço e o lançassem ao mar!
43 Se a tua mão for para ti ocasião de queda, corta-a; melhor te é entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para a geena, para o fogo inextinguível
45 Se o teu pé for para ti ocasião de queda, corta-o fora; melhor te é entrares coxo na vida eterna do que, tendo dois pés, seres lançado à geena do fogo inextinguível
47 Se o teu olho for para ti ocasião de queda, arranca-o; melhor te é entrares com um olho de menos no Reino de Deus do que, tendo dois olhos, seres lançado à geena do fogo,
48 ‘onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga’”.
Palavra da Salvação.
Estamos ainda em Cafarnaum (cf. Mc. 9,33), a cidade de pescadores
situada junto do Lago de Tiberíades. Jesus está “em casa” rodeado pelos
discípulos. A ida para Jerusalém está próxima e os discípulos estão conscientes
de que se aproximam tempos decisivos para esse projeto em que estão envolvidos.
Apesar da sua opção inequívoca por Jesus, os discípulos continuam a dar mostras
de não terem ainda conseguido absorver os valores do Reino. Para eles, o
seguimento de Jesus é uma opção que deverá traduzir-se na concretização de
determinados sonhos de poder, de grandeza e de prestígio… Por isso, sentem-se
inquietos e ciumentos quando encontram algo que possa colocar em causa os seus
interesses, a sua autoridade, os seus “privilégios”. Jesus vai, com paciência,
tentando formar os discípulos na lógica do Reino. O texto que a liturgia deste
domingo nos propõe como Evangelho é mais uma instrução que Jesus dirige aos
discípulos no sentido de lhes mostrar os valores que eles devem interiorizar,
se quiserem integrar a comunidade messiânica. Marcos juntou aqui uma série de
“ditos” de Jesus, inicialmente independentes entre si e pronunciados em
contextos diversos. Estes “ditos” apresentam, contudo, exigências várias que os
discípulos de Jesus devem considerar e que, em última análise, definem a
pertença ou a não pertença à comunidade do Reino.
Mensagem
Sendo o Evangelho deste domingo constituído por um conjunto de “ditos”
de Jesus – originariamente independentes uns dos outros e versando questões
diversas – temos vários temas a cruzar o nosso texto. O tema principal (uma vez
que é também o tema da primeira leitura) aparece na primeira parte do
Evangelho… Refere-se à necessidade de a comunidade cristã ser uma comunidade
aberta, acolhedora, tolerante, capaz de aceitar como sinais de Deus os gestos
libertadores que acontecem no mundo. Nos primeiros versículos deste texto, João
(desta vez o porta-voz do grupo) queixa-se pelo fato de terem encontrado alguém
a “expulsar demônios” em nome de Jesus, embora não pertencesse ao grupo dos
discípulos; considerando um abuso a utilização do nome de Jesus por parte de
alguém que não fazia parte da comunidade messiânica, os discípulos procuraram
impedi-l’O de atuar (vs. 38-41). A atitude dos discípulos mostra, antes de
mais, arrogância, sectarismo, intransigência, intolerância, ciúmes, mesquinhez,
pretensão de monopolizar Jesus e a sua proposta, presunção de serem os donos
exclusivos do bem e da verdade… Mas, por detrás da reação dos discípulos, deve
estar também uma grande preocupação com a concretização dos projetos pessoais
de prestígio e grandeza que quase todos eles alimentavam. Pouco tempo antes,
eles tinham estado a discutir uns com os outros acerca de quem seria o maior e
de quem iria herdar os postos mais importantes no Reino que, com Jesus, ia
nascer (cf. Mc. 9,33-37); agora, eles estão inquietos e preocupados, porque
apareceu alguém de fora do grupo que pretende atuar em nome de Jesus e que
pode, num futuro próximo, disputar-lhes os lugares de relevo na estrutura
política do Reino. Jesus procura levar os discípulos a ultrapassar esta visão
sectária e egoísta da missão. Na perspectiva de Jesus, quem luta pela justiça e
faz obras em favor do homem, está do lado de Jesus e vive na dinâmica do Reino,
mesmo que não esteja formalmente dentro da estrutura eclesial. A comunidade de
Jesus não pode ser uma comunidade fechada, exclusivista, monopolizadora, que
amua e sente ciúmes quando alguém de fora faz o bem; nem pode sentir-se
atingida nos seus privilégios e direitos pelo fato de o Espírito de Deus atuar
fora das fronteiras da Igreja… A comunidade de Jesus deve ser uma comunidade
que põe, acima dos seus interesses, a preocupação com o bem do homem; e deve
ser uma comunidade que sabe acolher, apoiar e estimular todos aqueles que atuam
em favor da libertação dos irmãos. Na segunda parte do nosso texto (vs. 42-48),
temos outros “ditos” de Jesus que abordam outros temas. Constituem também
indicações aos discípulos sobre as atitudes a assumir para integrar plenamente a
comunidade do Reino. Nesses “ditos”, são usadas imagens fortes, expressivas,
hiperbólicas, bem ao gosto dos pregadores da época, destinadas a impressionar
profundamente os ouvintes. Não são expressões para traduzir à letra; mas são
expressões que pretendem marcar a necessidade de fazer escolhas acertadas, de
optar com radicalidade pelos valores do Reino. O primeiro desses “ditos” é um
aviso àqueles que “escandalizam” os “pequeninos” (v. 42). Na nossa cultura,
“escandalizar” é protagonizar um mau exemplo ou um fato revoltante que melindra
ou fere a susceptibilidade daqueles que testemunham essa ação. Na linguagem de
Marcos, no entanto, “escandalizar” tem um significado um tanto diferente… O
verbo grego “scandalidzô” aqui utilizado define, em Marcos, a ação de desistir
de seguir Jesus, de não ter coragem para assumir a proposta que Jesus veio
fazer (cf. Mc. 4,17; 8,35.38). Os “pequeninos” de que Jesus fala são os membros
da comunidade que estão numa situação de dependência, de debilidade, de
necessidade… Os membros da comunidade do Reino devem, portanto, abster-se de
qualquer atitude que possa afastar alguém (especialmente os pequenos, os
débeis, os pobres) da adesão a Jesus e ao caminho que Ele veio propor. Fazer
algo que afaste uma dessas pessoas de Cristo e da comunidade é algo
verdadeiramente inadmissível e impensável (a quem fizer isso, “melhor seria que
lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao
mar” – v. 42). O segundo “dito” de Jesus (vs. 43-48) refere-se à absoluta necessidade
de arrancar da própria vida todos os sentimentos e atitudes que são
incompatíveis com a opção por Cristo e pela sua proposta. Quando Jesus fala em
cortar a mão (a mão é, nesta cultura, o órgão da ação, através do qual se
concretizam os desejos que nascem no coração) ou de cortar o pé ou de arrancar
o olho que é ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada
aos desejos), está a sublinhar, com toda a veemência, a necessidade de atuar,
lá onde as ações más do homem têm origem e eliminar na fonte as raízes do mal.
Estando em jogo o destino último do homem, não se pode protelar ou adiar
“cortes” importantes nas atitudes de egoísmo e de auto-suficiência que afastam
os homens de Deus e da vida plena. Há ainda, neste segundo “dito”, referências
sucessivas a um castigo na “Geena”, “onde o verme não morre e o fogo não se
apaga”, para aqueles que recusarem cortar com as atitudes e os sentimentos
incompatíveis com o seguimento de Jesus. A palavra “Geena” vem do hebraico “Ge
Hinnon” (“Vale do Hinnon”). Refere-se a um vale situado a sudoeste de
Jerusalém, onde eram enterrados os mortos e onde, dia e noite, era queimado o
lixo produzido pelos habitantes da cidade. Era considerado, portanto, um lugar
maldito, impuro, tenebroso, que convinha evitar. Jesus usa aqui a imagem do “Ge
Hinnon”, para falar de uma vida perdida, frustrada, destruída, maldita, sem
sentido. Quem não for capaz de cortar com o egoísmo, o orgulho, a
auto-suficiência, é como se, em lugar de viver num lugar livre e feliz, estivesse
condenado a viver no “Ge Hinnon”.
Atualização
•O Evangelho deste domingo apresenta-nos um grupo de discípulos ainda
muito atrasados na aprendizagem do “caminho do Reino”. Eles ainda raciocinam em
termos de lógica do mundo e têm dificuldade em libertar-se dos seus interesses
egoístas, dos seus esquemas pessoais, dos seus preconceitos, dos seus sonhos de
grandeza e poder… Eles não querem entender que, para seguir Jesus, é preciso
cortar com certos sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a radicalidade
que a opção pelo Reino exige. As dificuldades que estes discípulos apresentam
no sentido de responder a Jesus não nos são estranhas: também fazem parte da
nossa vida e do caminho que, dia a dia, percorremos… Assim, a instrução que,
neste texto, Jesus dirige aos seus discípulos serve-nos também a nós. As
propostas de Jesus destinam-se aos discípulos de todas as épocas; pretendem
ajudar-nos a purificar a nossa opção e a integrar, de forma plena, a comunidade
do Reino.
•Antes de mais, Jesus mostra aos discípulos que a comunidade do Reino
não pode ser uma seita arrogante, fechada, intolerante, fanática, que se arroga
a posse exclusiva de Deus e das suas propostas. Tem de ser uma comunidade que
sabe qual o seu papel e a sua missão, mas que reconhece que não tem o exclusivo
do bem e da verdade e que é capaz de se alegrar com os gestos de bondade e de
esperança que acontecem à sua volta, mesmo quando esses gestos resultam da ação
de não crentes ou de pessoas que não pertencem à instituição Igreja. O
verdadeiro discípulo não tem inveja do bem que outros fazem, não sente ciúmes
se Deus atua através de outras pessoas, não pretende ter o monopólio da verdade
nem ter o exclusivo de Jesus. O verdadeiro discípulo esforça-se, cada dia, por
testemunhar os valores do Reino e alegra-se com os sinais da presença de Deus
em tantos irmãos com outros percursos religiosos, que lutam por construir um
mundo mais justo e mais fraterno.
•Os discípulos de que o Evangelho de hoje nos fala estão preocupados com
a ação de alguém que não é do grupo, pois temem ver postos em causa os seus
sonhos pessoais de poder e de grandeza. Por detrás dessa preocupação dos
discípulos não está o bem do homem (aquilo que, em última análise, devia
“mover” os membros da comunidade do Reino), mas a salvaguarda de certos
interesses egoístas. Nas nossas comunidades cristãs ou religiosas, há pessoas
capazes de gestos incríveis de doação, de entrega, de serviço aos irmãos; mas
há também pessoas cuja principal preocupação é proteger o espaço que
conquistaram e continuar a manter um estatuto de poder e de prestígio… Quando
afastamos (com o pretexto de defender a pureza da fé, os interesses da
moralidade, ou tranquilidade da comunidade) aqueles que desafiam a comunidade a
purificar-se e a procurar novos caminhos para responder aos desafios de Deus,
estaremos a proteger os interesses de Deus ou os nossos projetos, os nossos
esquemas interesseiros, as nossas apostas pessoais?
•No nosso texto, Jesus exige dos discípulos o corte radical com os
valores, os sentimentos, as atitudes que são incompatíveis com a opção pelo
Reino. O discípulo de Jesus nunca está acomodado, instalado, conformado; mas
está sempre atento e vigilante, procurando detectar e eliminar da sua
existência tudo aquilo que lhe impede o acesso à vida plena. Naturalmente, a
renúncia ao egoísmo, ao comodismo, ao orgulho, aos esquemas pessoais, à vontade
de poder e de domínio, ao apelo do êxito, ao aplauso das multidões, é um
processo difícil e doloroso; mas é também um processo libertador e gerador de
vida nova. O que é que eu necessito, prioritariamente, de “cortar” da minha
vida, para me identificar mais com Jesus, para merecer integrar a comunidade do
Reino, para ser mais livre e mais feliz?
•O apelo de Jesus à sua comunidade no sentido de não “escandalizar”
(afastar da comunidade do Reino) os pequenos, faz-nos pensar na forma como
lidamos, enquanto pessoas e enquanto comunidades, com os pobres, os que
falharam, os que têm atitudes moralmente reprováveis, aqueles que têm uma fé
pouco consistente, aqueles que a vida marcou negativamente, aqueles que a
sociedade marginaliza e rejeita… Eles encontram em nós a proposta libertadora
que Cristo lhes faz, ou encontram em nós rejeição, injustiça, marginalização,
mau exemplo? Quem vê o nosso testemunho tem razões para aderir a Cristo, ou
para se afastar de Cristo?
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