A liturgia do 24º Domingo do Tempo Comum diz-nos
que o caminho da realização plena do homem passa pela obediência aos projetos
de Deus e pelo dom total da vida aos irmãos. Ao contrário do que o mundo pensa,
esse caminho não conduz ao fracasso, mas à vida verdadeira, à realização plena
do homem.
A primeira leitura apresenta-nos um profeta
anônimo, chamado por Deus a testemunhar a Palavra da salvação e que, para
cumprir essa missão, enfrenta a perseguição, a tortura, a morte. Contudo, o
profeta está consciente de que a sua vida não foi um fracasso: quem confia no
Senhor e procura viver na fidelidade ao seu projeto, triunfará sobre a
perseguição e a morte. Os primeiros cristãos viram neste “servo de Jahwéh” a
figura de Jesus.
No Evangelho, Jesus é apresentado como o Messias
libertador, enviado ao mundo pelo Pai para oferecer aos homens o caminho da
salvação e da vida plena. Cumprindo o plano do Pai, Jesus mostra aos discípulos
que o caminho da vida verdadeira não passa pelos triunfos e êxitos humanos, mas
pelo amor e pelo dom da vida (até à morte, se for necessário). Jesus vai
percorrer esse caminho; e quem quiser ser seu discípulo, tem de aceitar
percorrer um caminho semelhante.
A segunda leitura lembra aos crentes que o
seguimento de Jesus não se concretiza com belas palavras ou com teorias muito
bem elaboradas, mas com gestos concretos de amor, de partilha, de serviço, de
solidariedade para com os irmãos.
Leitura I – Is. 50,5-9a
Leitura do Livro de Isaías
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti
nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face
aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e
cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio e por isso
não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não
ficarei desiludido.
O meu advogado está perto de mim.
Pretende alguém instaurar-me um processo?
Compareçamos juntos.
Quem é o meu adversário?
Que se apresente!
O Senhor Deus vem em meu auxílio.
Quem ousará condenar-me?
Ambiente
O nosso texto pertence ao “Livro da Consolação” do
Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que
os biblistas designam um profeta anônimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua
missão profética na Babilônia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final
do Exílio, entre 550 e 539 a.C..
A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados
judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da libertação e por
comparar a saída da Babilônia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo
da escravidão do Egito (cf. Is. 40-48); depois, anuncia a reconstrução de
Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer
regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is. 49-55).
No meio desta proposta “consoladora” aparecem,
contudo, quatro textos (cf. Is. 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que
fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem
misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Jahwéh”:
ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão
profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no
sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem,
contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o
pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á,
fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.
Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do
profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a
dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta
desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado,
esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações?
É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas
(patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a
representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura
apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus
Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do terceiro
cântico do “servo de Jahwéh”.
Mensagem
O texto dá a palavra a um personagem anônimo,
chamado por Deus a dizer aos homens desanimados palavras de alento e de
esperança (vers. 4); e o profeta acolheu esse chamamento sem resistência, sem
discussão, numa entrega total aos desígnios de Deus (vers. 5).
Por ser fiel ao chamamento de Deus, o profeta
conheceu a prisão, a tortura, o sofrimento (vers. 6). O anúncio fiel das
propostas de Deus para o mundo e para os homens provoca sempre confrontos com
as forças da opressão e da morte… Mas o profeta experimenta o socorro do Senhor
e, fortalecido por esse socorro, pode enfrentar todas as contrariedades e
dores. Ele nada teme, pois confia plenamente no Senhor e sabe que não ficará
desiludido (vers 7-9).
A situação descrita neste poema sugere a de um
prisioneiro que, depois de ter sido torturado e maltratado, espera o julgamento
que irá decidir o seu destino. Confiando plenamente na ajuda do Senhor, ele
espera serenamente o momento em que Deus o irá defender no tribunal,
confundindo os seus adversários.
O que mais impressiona neste texto é a serenidade
com que o profeta, prisioneiro e sofredor, enfrenta o seu destino. Essa
serenidade vem-lhe, não da inconsciência, da insensibilidade ou de uma leviana
indiferença perante a morte, mas de uma total confiança no Deus que não falha e
que não deixa cair aqueles que ama.
Atualização
•Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de
Jahwéh”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha
para interpretar o mistério de Jesus: Ele foi esse “Servo de Deus” que veio ao
mundo para dizer aos homens a Palavra do Pai, que entrou em choque com as
forças da opressão e da injustiça, que foi torturado e maltratado porque a sua
proposta incomodava os poderosos, que ofereceu a sua vida para trazer a
salvação/libertação aos homens… E a história de Jesus – morto pelos homens, mas
que Deus ressuscitou e glorificou – confirma a esperança do “Servo de Jahwéh”:
quem confia em Deus e vive na fidelidade às suas propostas, não sairá
decepcionado. O exemplo de Jesus mostra que uma vida colocada ao serviço dos
projetos de Deus não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera vida
nova.
• Uma das coisas que sobressai nesta “partilha
de vida” que o “Servo de Jahwéh” faz conosco é a forma absoluta como ele se
entrega aos projetos de Deus. Diante do chamamento de Deus, ele não resiste,
não discute, “não recua um passo”; mas assume, com total obediência e
fidelidade, os desafios que Deus lhe faz, mesmo quando tem de percorrer um
caminho de sofrimento e de morte. Para nós que vivemos envolvidos pela cultura
da facilidade e do comodismo, para nós que temos medo de arriscar, para nós que
preferimos fechar-nos no nosso “cantinho” protegido, arrumado e seguro, o
“Servo de Jahwéh” constitui uma poderosa interpelação… É preciso abraçar, com
coragem e coerência o projeto que Deus nos confia, mesmo quando esse projeto se
cumpre no meio da oposição do mundo; é preciso deixarmo-nos desafiar por Deus e
acolher, com generosidade, as propostas que Ele nos faz; é preciso assumirmos o
papel que Deus nos chama a desempenhar e empenharmo-nos na transformação do
mundo.
• Outra das coisas que sobressai nesta
“partilha de vida” que o “Servo de Jahwéh” faz conosco é a sua total confiança
em Deus. Para ele, Deus é, efetivamente, essa “rocha segura” que se mantém
sempre firme e a que o crente se pode agarrar, mesmo quando tudo o resto parece
cair. A certeza da fidelidade de Deus, da sua presença, do seu amor deve
permitir-nos (como permitiu ao “Servo”) encarar a vida com serenidade e
confiança. O crente que confia em Deus sente-se seguro e protegido, como uma criança
ao colo da sua mãe. Dessa forma, o crente poderá viver livre do medo, com o
coração em paz, e aceitando tranquilamente os desafios que Deus lhe faz.
• O “Servo” sofredor que põe a sua vida,
integralmente, ao serviço do projeto de Deus e da salvação dos homens
mostra-nos o caminho: a vida, quando é posta ao serviço da libertação dos
pobres e dos oprimidos, não é perdida mesmo que pareça, em termos humanos,
fracassada e sem sentido. Temos a coragem de fazer da nossa vida uma entrega
radical ao projeto de Deus e à libertação dos nossos irmãos? O que é que ainda
entrava a nossa aceitação de uma opção deste tipo? Temos consciência de que, ao
escolher este caminho, estamos a gerar vida nova, para nós e para todos aqueles
com quem nos cruzamos nos caminhos deste mundo?
Salmo responsorial – Salmo 114 (116)
Refrão 1: Andarei na presença do Senhor sobre
a terra dos vivos.
Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na
presença do Senhor.
Refrão 3: Aleluia.
Amo o senhor, porque ouviu a voz da minha súplica.
Ele me atendeu no dia em que O invoquei.
Apertaram-me os laços da morte, caíram sobre mim as
angústias do além, vi-me na aflição e na dor. Então invoquei o Senhor: «Senhor,
salvai a minha alma».
Justo e compassivo é o Senhor, o nosso Deus é
misericordioso.
O Senhor guarda os simples: estava sem forças e o
Senhor salvou-me.
Livrou da morte a minha alma, das lágrimas os meus
olhos, da queda os meus pés.
Andarei na presença do Senhor,
sobre a terra dos vivos.
Leitura II – Tiago 2,14-18
Leitura da Epístola de São Tiago
Meus irmãos:
De que serve a alguém dizer que tem fé, se não tem
obras?
Poderá essa fé obter-lhe a salvação?
Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir e
lhes faltar o alimento de cada dia, e um de vós lhe disser: «Ide em paz.
Aquecei-vos bem e saciai-vos», sem lhes dar o
necessário para o corpo, de que lhes servem as vossas palavras?
Assim também a fé sem obras está completamente
morta.
Mas dirá alguém: «Tu tens a fé e eu tenho as
obras».
Mostra-me a tua fé sem obras, que eu, pelas obras,
te mostrarei a minha fé.
Ambiente
Continuamos a reflexão dessa “Carta de Tiago” que
nos tem acompanhado nos últimos domingos. Trata-se, segundo parece, de uma
carta enviada aos cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano,
sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria, o Egito ou a Ásia
Menor. O objetivo fundamental do autor é exortar os crentes para que não percam
os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de
Cristo. O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg. 2,1-26). Aí, o
autor trata dois temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem
qualquer tipo de discriminação ou de acepção de pessoas (cf. Tg. 2,1-13); a fé
expressa-se, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de
ações concretas em favor do homem (cf. Tg. 2,14-26). No geral, este capítulo
convida os crentes a assumir uma fé operativa, que se traduz num compromisso
social e comunitário.
Mensagem
O nosso texto refere-se à relação entre a fé e as
obras. A tese do autor da Carta de Tiago é que a fé sem obras não serve para
nada (vers. 14.17).
O tema da relação entre a fé e as obras foi objeto
de muitas discussões, sobretudo a partir do séc. XVI. Paulo, na Carta aos
Romanos, considera que “é pela fé que o homem é justificado, independentemente
das obras da Lei” (Rom. 3,28); e esta afirmação de Paulo serviu a Lutero para
fundamentar a sua teologia da salvação pela fé: a salvação não depende das
ações do homem, mas é um dom gratuito e imerecido que Deus, na sua infinita
misericórdia, oferece ao homem. Contudo, servindo-se da Carta de Tiago, muitos
outros teólogos defendiam que o homem precisava de realizar ações concretas
para chegar à salvação, pois a fé sem obras não vale nada.
Na verdade, o texto da Carta de Tiago não nasceu no
contexto de uma polemica que contrapunha a fé às obras. O autor da Carta de
Tiago nunca esteve interessado em dizer que as obras são importantes e que a fé
não tem qualquer valor… O que ele quer dizer é que a fé tem de traduzir-se em
ações concretas de compromisso com o mundo e com os homens. Se isso não
acontecer, essa fé é apenas uma declaração de boas intenções, mas que não passa
de uma farsa sem valor e sem conteúdo.
A adesão a Jesus e ao seu projeto (fé) significa
que o homem está disposto a acolher essa vida nova e plena que Deus,
gratuitamente e sem condições, lhe oferece (salvação). Essa vida, interiorizada
e assumida, tem de transparecer em gestos de amor, de solidariedade, de
fraternidade, de serviço, de partilha, de perdão. A vivência da fé tem,
portanto, de se traduzir na vida do dia a dia, especialmente na forma como se
vive a relação com esses irmãos com quem nos cruzamos nos caminhos do mundo. Se
isso não acontece, quer dizer que a fé (adesão à proposta de vida que Deus,
gratuitamente, faz) é uma mentira.
Os bonitos discursos que fazemos, os conselhos
muito sábios que damos, as teorias bem elaboradas que apresentamos, as
reflexões muito piedosas que impingimos, não passam de belas palavras que podem
não significar nada. Quando um irmão tem fome, ou não tem que vestir, ou está a
sofrer, é preciso ir ao seu encontro e manifestar-lhe, com gestos concretos, o
nosso amor, a nossa solidariedade, a nossa fraternidade. A nossa religião tem
de manifestar-se na vida e tem de transparecer nos nossos gestos.
Atualização
•O que é ser cristão? O nosso compromisso cristão é
algo que se vive a nível da teoria, ou do compromisso vital? O que caracteriza
um cristão não é o conhecimento de belas fórmulas que expressam uma determinada
ideologia, nem o cumprimento exato de ritos vazios e estéreis, nem uma
assinatura feita no livro de registros de batismo da paróquia, mas é a adesão a
Cristo. Ora, aderir a Cristo (fé), significa conformar, a cada instante, a
própria vida com os valores de Cristo, seguir Cristo a par e passo no caminho
do amor a Deus e da entrega total aos irmãos. Não se pode fugir a isto: a nossa
caminhada cristã não é um processo teórico e abstrato concretizado num reino de
belas palavras; mas é um compromisso efetivo com Cristo que tem de se traduzir,
a cada instante, em gestos concretos em favor dos irmãos.
• Que gestos são esses? São os mesmos gestos
que Cristo realizou e que o tornaram, aos olhos dos seus concidadãos, um sinal
de Deus. Ora, Cristo lutou pela justiça e pela verdade, denunciou tudo aquilo
que escravizava o homem e o impedia de ser feliz, foi ao encontro dos
marginalizados e manifestou-lhes o amor de Deus, realizou gestos de serviço e
de partilha, distribuiu o perdão e a paz, ofereceu a sua própria vida para
salvar os seus irmãos. Assim, quem segue a Cristo tem de lutar, objetivamente,
contra as estruturas que geram injustiça e opressão; tem de acolher e amar
aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita; tem de denunciar uma sociedade
construída sobre esquemas de egoísmo e de mostrar, com o seu testemunho, que só
a partilha e o amor tornam o homem feliz; tem de quebrar a espiral da violência
e do ódio e propor a tolerância e o amor…
• Por vezes há uma profunda dicotomia, nas
nossas comunidades cristãs, entre a fé e a vida. O nosso compromisso religioso
traduz-se em liturgias soleníssimas, em procissões suntuosas, na construção de
igrejas esplendorosas, em rituais fascinantes… e mais nada. Depois, na vida da
comunidade, há desunião, há conflito, há falta de solidariedade, há indiferença
para com as necessidades do irmão, há críticas destrutivas, há palavras que
ferem e afastam os outros, há gestos de arrogância, há falta de amor… De acordo
com os ensinamentos da Carta de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não
se traduzir em gestos concretos de amor e de fraternidade?
• Por vezes, há uma profunda dicotomia, nas
nossas vidas pessoais, entre a fé e a vida. O nosso compromisso cristão
traduz-se na participação certa nas eucaristias dominicais, na oferta de
chorudas quantias para as obras da igreja, na participação destacada em
manifestações públicas de religiosidade, na pertença a movimentos eclesiais… e
mais nada. Depois, na vida do dia a dia, praticamos injustiças, pactuamos com
esquemas de corrupção, tratamos com pouca caridade aqueles que vivem ao nosso
lado, passamos indiferentes diante das necessidades e dores dos irmãos,
marginalizamos aqueles de quem não gostamos, demitimo-nos das nossas responsabilidades
na construção de um mundo novo e melhor… De acordo com os ensinamentos da Carta
de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não se traduzir em gestos
concretos de amor e de fraternidade?
Aleluia – cf. Gal. 6,14
Aleluia. Aleluia.
Toda a minha glória está na cruz do Senhor, por
quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.
Evangelho – Mc. 8,27-35
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São
Marcos.
Naquele tempo, Jesus partiu com os seus discípulos
para as povoações de Cesareia de Filipe.
No caminho, fez-lhes esta pergunta: «Quem dizem os
homens que Eu sou?»
Eles responderam: «Uns dizem João Baptista; outros,
Elias; e outros, um dos profetas».
Jesus então perguntou-lhes: «E vós, quem dizeis que
Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o
Messias».
Ordenou-lhes então severamente que não falassem
d’Ele a ninguém.
Depois, começou a ensinar-lhes que o Filho do homem
tinha de sofrer muito, de ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e
pelos escribas;
de ser morto e ressuscitar três dias depois.
E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.
Então, Pedro tomou-O à parte e começou a
contestá-l’O.
Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os
discípulos, repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás, porque não compreendes
as coisas de Deus, mas só as dos homens».
E, chamando a multidão com os seus discípulos,
disse-lhes: «Se alguém quiser seguir-Me,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Na
verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;mas quem perder a vida, por
causa de Mim e do Evangelho,salvá-la-á».
Ambiente
O texto que nos é hoje proposto é um texto central
no Evangelho segundo Marcos. Apresenta-nos os últimos versículos da primeira
parte (cf. Mc. 8,27-30) e os primeiros versículos da segunda parte (cf. Mc.
8,31-35) deste Evangelho.
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf.
Mc. 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o
Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais
catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a
acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a
fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de
descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina, em Mc.
8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é,
evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter
acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.
Depois, vem a segunda parte do Evangelho segundo
Marcos (cf. Mc. 8,31-16,8). Nesta segunda parte, o objetivo do catequista
Marcos é explicar que Jesus, além de ser o Messias libertador, é também o
“Filho de Deus”. No entanto, Jesus não veio ao mundo para cumprir um destino de
triunfos e de glórias humanas, mas para oferecer a sua vida em dom de amor aos
homens. Ponto alto desta “catequese” é a afirmação do centurião romano junto da
cruz (que Marcos convida, implicitamente, os seus cristãos a repetir):
“realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc. 15,39).
Cesareia de Filipe – o quadro geográfico onde o
Evangelho de hoje nos coloca – era uma cidade situada no Norte da Galileia,
perto das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias). Tinha sido
construída por Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande) no ano 2 ou 3 a.C.,
em honra do imperador Augusto.
Mensagem
O nosso texto apresenta, portanto, duas partes bem
distintas. Na primeira, Pedro dá voz à comunidade dos discípulos e constata que
Jesus é o Messias libertador que Israel esperava; na segunda, Jesus explica aos
discípulos que a sua missão messiânica deve ser entendida à luz da cruz (isto
é, como dom da vida aos homens, por amor).
A primeira parte do nosso texto (vers. 27-30)
começa com Jesus a pôr uma dupla questão aos discípulos: o que é que as pessoas
dizem d’Ele e o que é que os próprios discípulos pensam d’Ele?
A opinião dos “homens” vê Jesus em continuidade com
o passado (“João Baptista”, “Elias”, ou “algum dos profetas”). Não captam a
condição única de Jesus, a sua novidade, a sua originalidade. Reconhecem apenas
que Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao mundo com uma missão –
como os profetas do Antigo Testamento… Mas não vão além disso. Na perspectiva
dos “homens”, Jesus é apenas um homem bom, justo, generoso, que escutou os
apelos de Deus e que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos
outros homens antes d’Ele (vers. 28). É muito, mas não é o suficiente:
significa que os “homens” não entenderam a novidade de Jesus, nem a profundidade
do seu mistério.
A opinião dos discípulos acerca de Jesus vai muito
além da opinião comum. Pedro, porta-voz da comunidade dos discípulos, resume o
sentir da comunidade do Reino na expressão: “Tu és o Messias” (vers. 29). Dizer
que Jesus é o “Messias” (o Cristo) significa dizer que Ele é esse libertador
que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe
oferecer a salvação definitiva.
A resposta de Pedro estava correta. No entanto,
podia prestar-se a graves equívocos, numa altura em que o título de Messias
estava conotado com esperanças político-nacionalistas. Por isso, os discípulos
recebem ordens para não falarem disso a ninguém. Era preciso clarificar,
depurar e completar a catequese sobre o Messias e a sua missão, para evitar perigosos
equívocos. É isso que Jesus vai fazer, logo de seguida.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 31-35), há
duas questões. A primeira (vers. 31-33) é a explicação dada pelo próprio Jesus
de que o seu messianismo passa pela cruz; a segunda (vers. 34-35) é uma
instrução sobre o significado e as exigências de ser discípulo de Jesus.
Jesus começa, portanto, por anunciar que o seu
caminho vai passar pelo sofrimento e pela morte na cruz (vers. 31-33). Não é
uma previsão arriscada: depois do confronto de Jesus com os líderes judeus e
depois que estes rejeitaram de forma absoluta a proposta do Reino, é evidente
que o judaísmo medita a eliminação física de Jesus. Jesus tem consciência
disso; no entanto, não se demite do projeto do Reino e anuncia que pretende continuar
a apresentar, até ao fim, os planos do Pai.
Pedro não está de acordo com este final e opõe-se,
decididamente, a que Jesus caminhe em direção ao seu destino de cruz. A
oposição de Pedro (e dos discípulos, pois Pedro continua a ser o porta-voz da
comunidade) significa que a sua compreensão do mistério de Jesus ainda é muito
imperfeita. Para ele, a missão do “messias, Filho de Deus” é uma missão
gloriosa e vencedora; e, na lógica de Pedro – que é a lógica do mundo – a
vitória não pode estar na cruz e no dom da vida.
Jesus dirige-se a Pedro com alguma dureza, pois é
preciso que os discípulos corrijam a sua perspectiva de Jesus e do plano do Pai
que Ele vem realizar. O plano de Deus não passa por triunfos humanos, nem por
esquemas de poder e de domínio; mas o plano do Pai passa pelo dom da vida e
pelo amor até às últimas consequências (de que a cruz é a expressão mais
radical). Ao pedir a Jesus que não embarque nos projetos do Pai, Pedro está a
repetir essas tentações que Jesus experimentou no início do seu ministério (cf.
Mc. 1,13); por isso, Jesus responde a Pedro: “Vai-te, Satanás”. As palavras de
Pedro pretendem desviar Jesus do cumprimento dos planos do Pai; e Jesus não
está disposto a transigir com qualquer proposta que O impeça de concretizar,
com amor e fidelidade, os projetos de Deus.
Depois de anunciar o seu destino (que será
cumprido, em obediência ao plano do Pai, no dom da própria vida em favor dos
homens), Jesus convida os seus discípulos a seguir um percurso semelhante… Quem
quiser ser discípulo de Jesus, tem de “renunciar a si mesmo”, “tomar a cruz” e
seguir Jesus no caminho do amor, da entrega e do dom da vida.
O que é que significa, exatamente, renunciar a si
mesmo? Significa renunciar ao seu egoísmo e auto-suficiência, para fazer da
vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não pode viver fechado em si
próprio, preocupado apenas em concretizar os seus sonhos pessoais, os seus
projetos de riqueza, de segurança, de bem estar, de domínio, de êxito, de
triunfo… O cristão deve fazer da sua vida um dom generoso a Deus e aos irmãos.
Só assim ele poderá ser discípulo de Jesus e integrar a comunidade do Reino.
O que é que significa “tomar a cruz” de Jesus e
segui-l’O? A cruz é a expressão de um amor total, radical, que se dá até à
morte. Significa a entrega da própria vida por amor. “Tomar a cruz” é ser capaz
de gastar a vida – de forma total e completa – por amor a Deus e para que os
irmãos sejam mais felizes.
No final desta instrução, Jesus explica aos
discípulos as razões pelas quais eles devem abraçar a “lógica da cruz”.
Convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas
ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos, não fracassou; mas
ganhou a vida eterna, a vida verdadeira que Deus oferece a quem vive de acordo
com as suas propostas (vers. 35).
Atualização
•Quem é Jesus? O que é que “os homens” dizem de
Jesus? Muitos dos nossos conterrâneos vêem em Jesus um homem bom, generoso,
atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo diferente; outros
vêem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma proposta de vida
“interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores; alguns vêem em
Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança nos corações das
multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as multidões deixaram
de se interessar pelo fenômeno; outros, ainda, vêem em Jesus um revolucionário,
ingênuo e inconsequente, preocupado em construir uma sociedade mais justa e
mais livre, que procurou promover os pobres e os marginais e que foi eliminado
pelos poderosos, preocupados em manter o “status quo”. Estas visões apresentam
Jesus como “um homem” – embora “um homem” excepcional, que marcou a história e
deixou uma recordação imorredoira. Jesus foi apenas um “homem” que deixou a sua
pegada na história, como tantos outros que a história absorveu e digeriu?
• “E vós, quem dizeis que Eu sou?” É uma
pergunta que deve, de forma constante, ecoar nos nossos ouvidos e no nosso
coração. Responder a esta questão não significa papaguear lições de catequese
ou tratados de teologia, mas sim interrogar o nosso coração e tentar perceber
qual é o lugar que Cristo ocupa na nossa existência… Responder a esta questão
obriga-nos a pensar no significado que Cristo tem na nossa vida, na atenção que
damos às suas propostas, na importância que os seus valores assumem nas nossas
opções, no esforço que fazemos ou que não fazemos para o seguir… Quem é Cristo
para mim? Ele é o Messias libertador, que o Pai enviou ao meu encontro com uma
proposta de salvação e de vida plena?
• Frente a frente o Evangelho deste domingo
coloca a lógica dos homens (Pedro) e a lógica de Deus (Jesus). A lógica dos
homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no êxito; garante-nos que a
vida só tem sentido se estivermos do lado dos vencedores, se tivermos dinheiro
em abundância, se formos reconhecidos e incensados pelas multidões, se tivermos
acesso às festas onde se reúne a alta sociedade, se tivermos lugar no conselho
de administração da empresa. A lógica de Deus aposta na entrega da vida a Deus
e aos irmãos; garante-nos que a vida só faz sentido se assumirmos os valores do
Reino e vivermos no amor, na partilha, no serviço, na solidariedade, na
humildade, na simplicidade. Na minha vida de cada dia, estas duas perspectivas
confrontam-se, a par e passo… Qual é a minha escolha? Na minha perspectiva,
qual destas duas propostas apresenta um caminho de felicidade seguro e
duradouro?
• Jesus tornou-se um de nós para concretizar
os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço, do dom da
vida – o caminho da salvação, da vida verdadeira. Neste texto (como, aliás, em
muitos outros), fica claramente expressa a fidelidade radical de Jesus a esse
projeto. Por isso, Ele não aceita que nada nem ninguém O afastem do caminho do
dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e esquecer os planos de Deus é, para
Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita duramente. Que significado e que
lugar ocupam na minha vida os projetos de Deus? Esforço-me por descobrir a
vontade de Deus a meu respeito e a respeito do mundo? Estou atento a esses
“sinais dos tempos” através dos quais Deus me interpela? Sou capaz de acolher e
de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus, mesmo quando elas
são exigentes e vão contra os meus interesses e projetos pessoais?
• Quem são os verdadeiros discípulos de Jesus?
Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em
práticas de piedade, em determinadas obrigações legais, mas que deixou para
segundo plano o essencial: o seguimento de Jesus. A identidade cristã
constrói-se à volta de Jesus e da sua proposta de vida. Que nenhum de nós tenha
dúvidas: ser cristão é bem mais do que ser batizado, ter casado na igreja,
organizar a festa do santo padroeiro da paróquia, ou dar-se bem com o padre…
Ser cristão é, essencialmente, seguir Jesus no caminho do amor e do dom da
vida. O cristão é aquele que faz de Jesus a referência fundamental à volta da
qual constrói toda a sua existência; e é aquele que renuncia a si mesmo e que
toma a mesma cruz de Jesus.
• O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar
que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a auto-suficiência dominem a vida. O
seguidor de Jesus não vive fechado no seu cantinho, a olhar para si mesmo,
indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades
dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens; mas vive para
Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos.
• O que é “tomar a cruz”? É amar até às
últimas consequências, até à morte. O seguidor de Jesus é aquele que está
disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais felizes.
Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a exploração, a
miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a tortura, as
represálias dos poderosos.
P. Joaquim Garrido,
P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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