A liturgia do 25º domingo do comum convida os
crentes a prescindir da “sabedoria do mundo” e a escolher a “sabedoria de
Deus”. Só a “sabedoria de Deus” – dizem os textos bíblicos deste domingo –
possibilitará ao homem o acesso à vida plena, à felicidade sem fim. O Evangelho
apresenta-nos uma história de confronto entre a “sabedoria de Deus” e a
“sabedoria do mundo”. Jesus, imbuído da lógica de Deus, está disposto a aceitar
o projeto do Pai e a fazer da sua vida um dom de amor aos homens; os
discípulos, imbuídos da lógica do mundo, não têm dificuldade em entender essa
opção e em comprometer-se com esse projeto. Jesus avisa-os, contudo, de que só
há lugar na comunidade cristã para quem escuta os desafios de Deus e aceita
fazer da vida um serviço aos irmãos, particularmente aos humildes, aos
pequenos, aos pobres. A segunda leitura exorta os crentes a viverem de acordo
com a “sabedoria de Deus”, pois só ela pode conduzir o homem ao encontro da
vida plena. Ao contrário, uma vida conduzida segundo os critérios da “sabedoria
do mundo” irá gerar violência, divisões, conflitos, infelicidade, morte. A
primeira leitura avisa os crentes de que escolher a “sabedoria de Deus”
provocará o ódio do mundo. Contudo, o sofrimento não pode desanimar os que
escolhem a “sabedoria de Deus”: a perseguição é a consequência natural da sua coerência
de vida.
Sabedoria 2,12.17-20 - AMBIENTE
O “livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os
livros do Antigo Testamento (aparece durante o séc. I a.C.). O seu autor – um
judeu de língua grega, provavelmente nascido e educado na Diáspora (Alexandria?)
– exprimindo-se em termos e concepções do mundo helênico, faz o elogio da
“sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio”
no mais-além e descreve (com exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes
diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Jahwéh).
Estamos em Alexandria (Egito), num meio fortemente helenizado. As outras
culturas – nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme
colônia judaica residente na cidade conhece mesmo, sobretudo nos reinados de
Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura
perseguição. Os sábios helênicos procuram demonstrar, por um lado, a
superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua
proposta de vida… Os judeus são encorajados a deixar a sua fé, a
“modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helênica. É
neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria decide defender os
valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se
aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na
imoralidade), convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos;
dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a
aderir a Jahwéh, o verdadeiro e único Deus… Para uns e para outros, o autor
pretende deixar este ensinamento fundamental: só Jahwéh garante a verdadeira
“sabedoria” e a verdadeira felicidade. O texto que nos é proposto faz parte da
primeira parte do livro (cf. Sb. 1-5). Aí, o autor reflete longamente e em
pormenor sobre o destino dos “justos” e o destino dos “ímpios”. Na secção que
vai de Sb. 1,16-2,24, o autor do Livro da Sabedoria apresenta o quadro da vida
dos “ímpios”. Depois de apresentar os raciocínios dos “ímpios” (cf. Sb.
1,16-2,9) e as suas reações de desprezo face aos “justos” (cf. Sb. 2,10-20), o
sábio autor desta reflexão partilha com os seus leitores a sua própria crítica
às atitudes incoerentes dos “ímpios” (cf. Sb. 2,21-24). Mostrando o sem sentido
da conduta dos “ímpios”, ele pretende dizer aos seus concidadãos que vale a
pena ser “justo” e manter-se fiel aos valores tradicionais da fé de Israel.
MENSAGEM
Esses “ímpios” de que fala o sábio autor do nosso
texto são, certamente, os pagãos hostis, que zombavam dos costumes e dos
valores religiosos judaicos e que levavam uma vida de corrupção e de
imoralidade; mas são também, com toda a certeza, os judeus apóstatas, que se
tinham deixado contaminar pela cultura grega, que haviam abandonado as
tradições dos antepassados e que consideravam a religião judaica um conjunto de
tradições obscurantistas, impróprias da “modernidade”.
A vida desses “justos” que assumiram os valores de
Deus e que, mesmo no meio da hostilidade geral, procuram preservar os seus
valores e viver de forma coerente com a sua fé, constitui um incômodo e uma
dura interpelação para os “ímpios”. A coerência, a honestidade, a verticalidade
e a fidelidade dos “justos” constituem um permanente espinho que magoa os
“ímpios” e que não os deixa sentirem-se em paz com a sua consciência. A reação
dos “ímpios” apresenta-se sempre em forma de perseguição, de ciladas, de
ultrajes, de torturas e, em último caso, de assassínios. Trata-se de uma
realidade que os justos de todas as épocas conhecem bem. A vida dos “justos”
estará, então, condenada ao fracasso? Valerá a pena enfrentar a perseguição e
conservar-se fiel a Deus e às suas propostas? O texto que nos é hoje proposto
como primeira leitura não responde a estas questões; no entanto, o autor do
Livro da Sabedoria dirá, mais à frente, que a fidelidade do justo será
recompensada e que a sua vida desembocará nessa vida plena e definitiva que
Deus reserva para aqueles que seguem os seus caminhos.
ATUALIZAÇÃO
• Por detrás do confronto entre o “ímpio” e o
“justo”, está o confronto entre a “sabedoria do mundo” e a “sabedoria de Deus”.
Trata-se de duas realidades em permanente choque de interesses e diante das
quais temos, tantas vezes, de fazer a nossa opção. Para mim, qual destas duas
realidades faz mais sentido? Por qual delas costumo optar?
• O que é a “sabedoria do mundo”? A “sabedoria do
mundo” é a atitude de quem, fechado no seu orgulho e auto-suficiência, resolve
prescindir de Deus e dos seus valores, de quem vive para o “ter”, de quem põe
em primeiro lugar o dinheiro, o poder, o êxito, a fama, a ambição, os valores
efêmeros. Trata-se de uma “sabedoria” que, em lugar de conduzir o homem à sua
plena realização, o torna vazio, frustrado, deprimido, escravo. Pode
apresentar-se com as cores sedutoras da felicidade efêmera, com as exigências
da filosofia da moda, com a auréola brilhante da intelectualidade, ou com o
brilho passageiro dos triunfos humanos; mas nunca dará ao homem uma felicidade
duradoura.
• O que é a “sabedoria de Deus”? A “sabedoria de
Deus” é a atitude daqueles que assumiram e interiorizaram as propostas de Deus
e se deixam conduzir por elas. Atentos à vontade e aos desafios de Deus,
procuram escutá-l’O e seguir os seus caminhos; tendo como modelo de vida Jesus
Cristo, vivem a sua existência no amor e no serviço aos irmãos; comprometem-se
com a construção de um mundo mais fraterno e lutam pela justiça e pela paz.
Trata-se de uma “sabedoria” que nem sempre é entendida pelos homens e que,
tantas vezes, é considerada um refúgio para os simples, os incapazes, os pouco
ambiciosos, os vencidos, aqueles que nunca moldarão o edifício social. Parece,
muitas vezes, apenas gerar sofrimento, perseguição, incompreensão, dor,
fracasso. No entanto, trata-se de uma “sabedoria” que leva o homem ao encontro
da verdadeira felicidade, da verdadeira realização, da vida plena.
• Quem escolhe a “sabedoria de Deus”, não tem uma
vida fácil. Será incompreendido, caluniado, desautorizado, perseguido,
torturado… Contudo, o sofrimento não pode desanimar os que escolhem a
“sabedoria de Deus”: a perseguição é a consequência natural da sua coerência de
vida. Não devemos ficar preocupados quando o mundo nos persegue; devemos ficar
preocupados quando somos aplaudidos e adulados por aqueles que escolheram a
“sabedoria do mundo”.
2ª leitura – Tiago 3,16-4,3 - AMBIENTE
Depois de convidar os crentes à autenticidade e
coerência da fé (cf. Tg. 1,2-27) e de os exortar a expressar a fé em atitudes
concretas (cf. Tg. 2,1-24), o autor da carta de Tiago elenca, na terceira parte
desta carta (cf. Tg 3,1-4,10), uma série de aspectos particulares que precisam
da atenção e do cuidado dos crentes. Estes aspectos particulares tratados na
terceira parte da carta são, certamente, questões e situações que incomodavam
as comunidades cristãs de origem judaica a quem a carta se dirige (e que não
estão circunscritas à Palestina, mas espalhadas por todo o mundo greco-romano,
sobretudo nas regiões próximas da Palestina, como a Síria, o Egito ou a Ásia
Menor). O primeiro aspecto particular a que o autor se refere é ao cuidado a
ter com a língua (cf. Tg. 3,1-12); o segundo refere-se à necessidade de os
crentes rejeitarem a “sabedoria do mundo” e de acolherem a “sabedoria que vem
do alto” (cf. Tg. 3,13-18); o terceiro é uma análise sobre a origem das
discórdias que envenenam a vida das comunidades cristãs (cf. Tg. 4,1-10). O
texto que nos é proposto junta alguns versículos do segundo com alguns
versículos do terceiro ponto. O objetivo do autor da carta de Tiago continua a
ser, também nesta terceira parte, purificar a existência cristã e exortar os
crentes para que não percam os valores cristãos autênticos.
MENSAGEM
A primeira parte do nosso texto (cf. Tg. 3,16-18)
exorta os crentes a viverem de acordo com a “sabedoria de Deus”. A “sabedoria
do mundo” gera inveja, contendas, falsidade (cf. Tg. 3,14), rivalidade,
desordem e toda a espécie de más ações (cf. Tg. 3,16). Acaba por destruir a
vida da própria pessoa e por impedir a comunhão dos irmãos. Trata-se de uma
“sabedoria” incompatível com as exigências da adesão a Cristo. Ao contrário, a
“sabedoria de Deus” é “pura, pacífica, compreensiva e generosa, cheia de
misericórdia e boas obras, imparcial e sem hipocrisia” (Tg. 3,17). São sete as
“qualidades” da “sabedoria” aqui enumeradas: dado que o número sete significa
“perfeição”, “plenitude”, o autor da Carta de Tiago está, assim, a propor aos
crentes um caminho de perfeição, de realização total, de vida plena. Se o
cristão quer viver em paz (isto é, em comunhão) com Deus, deve acolher a
“sabedoria de Deus” e atuar de acordo com ela em cada passo da sua existência.
Na segunda parte do nosso texto (cf. Tg. 4,1-3), o
autor da Carta analisa as causas da situação de conflito e de discórdia que se
nota em muitas das comunidades cristãs e que é incompatível com as exigências
do compromisso com Cristo. Esse quadro resulta do fato de os crentes não terem
ainda interiorizado a proposta de Cristo… Em lugar de fazerem da sua vida, como
Cristo, um dom de amor aos irmãos, e de traduzirem esse amor em gestos
concretos de partilha, de serviço, de solidariedade, de fraternidade, estes
crentes vivem fechados no seu egoísmo e no seu orgulho. O seu coração está
dominado pela cobiça, pela inveja, pela vontade de se sobrepor aos outros… E
essas “paixões” más traduzem-se naturalmente, a nível da relação comunitária,
em atitudes de luta, de inveja, de rivalidade, de ciúme, de arrogância, de ira.
Vivem de acordo com a “sabedoria do mundo” e não de acordo com a “sabedoria de
Deus”. Naturalmente, a sua oração não é escutada por Deus… O que eles pedem a
Deus não é para satisfazer as suas necessidades materiais, mas para satisfazer
as suas “paixões”, o seu orgulho, a sua cobiça, a sua vontade de se sobrepor
aos outros irmãos. Uma oração que assenta em bases egoístas não pode ser
escutada por Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Batismo é, para todos os crentes, o momento da
opção por Cristo e pela proposta de vida nova que Ele veio apresentar; é o
momento em que os crentes escolhem a “sabedoria de Deus” e passam a conduzir a sua
vida pelos critérios de Deus. A partir desse momento, a vida dos crentes deve
ser expressão da vida de Deus, dos valores de Deus, do amor de Deus. Num mundo
que se constrói, tantas vezes, à margem de Deus, os cristãos devem ser os
rostos dessa vida nova que Deus quer oferecer ao mundo. Estou consciente desta
realidade? Tenho vivido de forma coerente com os compromissos que assumi no dia
do meu batismo? Os valores que conduzem a minha vida são os valores que brotam
da “sabedoria de Deus”?
• No entanto, muitos batizados continuam a conduzir
a sua vida de acordo com a “sabedoria do mundo”. Passam, com indiferença, ao
lado dos desafios que Deus faz, instalam-se no egoísmo e na auto-suficiência,
vivem para o “ter”, deixam que a sua existência seja dirigida por critérios de
ambição e de ganância, recusam-se a fazer da sua vida uma partilha generosa com
os irmãos… O autor da Carta de Tiago avisa: cuidado, pois a opção pela
“sabedoria do mundo” não é um caminho para a realização plena do homem; só gera
infelicidade, desordem, guerras, rivalidades, conflitos, morte. Nós, os
cristãos, temos de estar permanentemente num processo de conversão para que a
“sabedoria do mundo” não ocupe todo o nosso coração e não nos impeça de atingir
a vida plena.
• Quando pautamos a nossa vida pela “sabedoria do
mundo”, isso tem consequências nas relações que estabelecemos com aqueles que
caminham ao nosso lado. A ambição, a inveja, o orgulho, a competição, o
egoísmo, criam divisões e destroem a comunidade. As nossas comunidades cristãs
(ou religiosas) dão testemunho da “sabedoria de Deus” ou da “sabedoria do
mundo”? As rivalidades, os ciúmes, as críticas destrutivas, a indiferença, as
palavras que magoam, as lutas pelo poder, as tentativas de afirmação pessoal à
custa do irmão, são compatíveis com a “sabedoria de Deus” que escolhemos no dia
do nosso batismo?
• Uma palavra para o tema da oração, abordado no
último versículo do nosso texto… Quando o nosso coração está cheio da
“sabedoria do mundo”, a nossa oração não faz sentido; torna-se um monólogo
egoísta, uma pedinchice de coisas que se destinam a satisfazer as nossas
“paixões”, as nossas ambições, os nossos interesses pessoais. Antes de falar
com Deus, precisamos de mudar o nosso coração, de reequacionar os nossos
valores e as nossas prioridades, de aprender a ver o mundo e a vida com os
olhos de Deus. Só então a nossa oração fará sentido: será um diálogo de amor e
de comunhão, através do qual escutamos Deus, percebemos os seus planos,
acolhemos essa vida que Ele nos quer oferecer.
Evangelho – Mc 9,30-37 - AMBIENTE
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos.
9 30 Tendo partido dali, Jesus e seus discípulos atravessaram a Galiléia. Não queria, porém, que ninguém o soubesse.
31 E ensinava os seus discípulos: “O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens, e matá-lo-ão; e ressuscitará três dias depois de sua morte”.
32 Mas não entendiam estas palavras; e tinham medo de lho perguntar.
33 Em seguida, voltaram para Cafarnaum. Quando já estava em casa, Jesus perguntou-lhes: “De que faláveis pelo caminho?”
34 Mas eles calaram-se, porque pelo caminho haviam discutido entre si qual deles seria o maior.
35 Sentando-se, chamou os Doze e disse-lhes: “Se alguém quer ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos”.
36 E tomando um menino, colocou-o no meio deles; abraçou-o e disse-lhes:
37 “Todo o que recebe um destes meninos em meu nome, a mim é que recebe; e todo o que recebe a mim, não me recebe, mas aquele que me enviou”.
Palavra da Salvação.
9 30 Tendo partido dali, Jesus e seus discípulos atravessaram a Galiléia. Não queria, porém, que ninguém o soubesse.
31 E ensinava os seus discípulos: “O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens, e matá-lo-ão; e ressuscitará três dias depois de sua morte”.
32 Mas não entendiam estas palavras; e tinham medo de lho perguntar.
33 Em seguida, voltaram para Cafarnaum. Quando já estava em casa, Jesus perguntou-lhes: “De que faláveis pelo caminho?”
34 Mas eles calaram-se, porque pelo caminho haviam discutido entre si qual deles seria o maior.
35 Sentando-se, chamou os Doze e disse-lhes: “Se alguém quer ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos”.
36 E tomando um menino, colocou-o no meio deles; abraçou-o e disse-lhes:
37 “Todo o que recebe um destes meninos em meu nome, a mim é que recebe; e todo o que recebe a mim, não me recebe, mas aquele que me enviou”.
Palavra da Salvação.
Já dissemos no passado domingo que a preocupação
essencial de Marcos na segunda parte do seu Evangelho (cf. Mc. 8,31-16,8) é
apresentar Jesus como “o Filho de Deus”. No entanto, Marcos tem o cuidado de
demonstrar que Jesus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de
glórias humanas, mas para cumprir a vontade do Pai e oferecer a sua vida em dom
de amor aos homens. É neste contexto que devemos situar os três anúncios feitos
por Jesus acerca da sua paixão e morte (cf. Mc. 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34). O
texto que nos é proposto neste domingo é, precisamente, o segundo desses
anúncios. O grupo já deixou Cesareia de Filipe (onde Jesus, pela primeira vez,
tinha falado da sua paixão e morte, como lemos no Evangelho do passado domingo)
e está agora a atravessar a Galileia. Muito provavelmente, a próxima ida para
Jerusalém está no horizonte dos discípulos e eles têm consciência de que em
Jerusalém se vai jogar a cartada decisiva para esse projeto em que tinham
decidido apostar. Nesta fase, todos acreditam ainda que Jesus irá entrar na
cidade na pele de um Messias político, poderoso e invencível, capaz de libertar
Israel, pela força das armas, do domínio romano. Ao longo dessa “caminhada para
Jerusalém”, Jesus vai catequizando os discípulos, ensinando-lhes os valores do
Reino e mostrando-lhes, com gestos concretos, que o projeto do Pai não passa
por esquemas de poder e de domínio. O nosso texto faz parte de uma dessas
instruções aos discípulos. Será que eles entendem a lógica de Deus e estão
dispostos a embarcar, com Jesus, na aventura do Reino?
MENSAGEM
O texto divide-se em duas partes. Na primeira,
Jesus anuncia a sua próxima paixão, em Jerusalém; na segunda, Jesus ensina aos
discípulos a lógica do Reino: o maior, é aquele que se faz servo de todos. Na
primeira parte (vs. 30-32), Marcos põe na boca de Jesus um segundo anúncio da
sua paixão, morte e ressurreição, com palavras ligeiramente diferentes do
primeiro anúncio (cf. Mc 8,31-33), mas com o mesmo conteúdo. As palavras de
Jesus denotam tranquilidade e uma serena aceitação desses fatos que irão
concretizar-se num futuro próximo. Jesus recebeu do Pai a missão de propor aos
homens um caminho de realização plena, de felicidade sem fim; e Ele vai
fazê-lo, mesmo que isso passe pela cruz. A serenidade de Jesus vem-Lhe da total
aceitação e da absoluta conformidade com os projetos do Pai. Os discípulos
mantêm-se num estranho silêncio diante deste anúncio. Marcos explica que eles
não entendem a linguagem de Jesus e que têm medo de O interrogar (v. 32). As
palavras de Jesus são claras; o que não é claro, para a mentalidade desses
discípulos, é que o caminho do Messias tenha de passar pela cruz e pelo dom da
vida. A morte, na perspectiva dos discípulos, não pode ser caminho para a vitória.
O “não entendimento” é, aqui, o mesmo que discordância: intimamente, eles
discordam do caminho que Jesus escolheu seguir, pois acham que o caminho da
cruz é um caminho de fracasso. Apesar de discordarem de Jesus eles não se
atrevem, contudo, a criticá-l’O. Provavelmente recordam a dura reação de Jesus
quando Pedro, logo a seguir ao primeiro anúncio da paixão, Lhe recomendou que
não aceitasse o projeto do Pai (cf. Mc. 8,32-33).
A segunda parte (vs. 33-37) situa-nos em Cafarnaum,
“em casa” (será a casa de Pedro?). A cena começa com uma pergunta de Jesus:
“Que discutíeis pelo caminho?” (v. 33). O contexto sugere que Jesus sabe
claramente qual tinha sido o tema da discussão. Provavelmente, captou qualquer
coisa da conversa e ficou à espera da oportunidade certa – na tranquilidade da
“casa” – para esclarecer as coisas e para continuar a instrução dos discípulos.
Só neste ponto Marcos informa os seus leitores de que os discípulos tinham
discutido, pelo caminho, “sobre qual deles era o maior” (v. 34). O problema da
hierarquização dos postos e das pessoas era um problema sério na sociedade
palestina de então. Nas assembléias, na sinagoga, nos banquetes, a “ordem” de
apresentação das pessoas estava rigorosamente definida e, com frequência,
geravam-se conflitos inultrapassáveis por causa de pretensas infrações ao
protocolo hierárquico. Os discípulos estavam profundamente imbuídos desta
lógica. Uma vez que se aproximava o triunfo do Messias e iam ser distribuídos
os postos-chave na cadeia de poder do reino messiânico, convinha ter o quadro
hierárquico claro. Apesar do que Jesus lhes tinha dito pouco antes acerca do
seu caminho de cruz, os discípulos recusavam-se a abandonar os seus próprios
sonhos materiais e a sua lógica humana. Jesus ataca o problema de frente e com
toda a clareza, pois o que está em jogo afeta a essência da sua proposta. Na
comunidade de Jesus não há uma cadeia de grandeza, com uns no cimo e outros na
base… Na comunidade de Jesus, só é grande aquele que é capaz de servir e de
oferecer a vida aos seus irmãos (v. 35). Dessa forma, Jesus deita por terra
qualquer pretensão de poder, de domínio, de grandeza, na comunidade do Reino. O
discípulo que raciocinar em termos de poder e de grandeza (isto é, segundo a
lógica do mundo) está a subverter a ordem do Reino. Jesus completa a instrução
aos discípulos com um gesto… Toma uma criança, coloca-a no meio do grupo,
abraça-a e convida os discípulos a acolherem as “crianças”, pois quem acolhe
uma criança acolhe o próprio Jesus e acolhe o Pai (vs. 36-37). Na sociedade
palestina de então, as crianças eram seres sem direitos e que não contavam do
ponto de vista legal (pelo menos enquanto não tivessem feito o “bar mitzvah”, a
cerimônia que definia a pertença de um rapaz à comunidade do Povo de Deus).
Eram, portanto, um símbolo dos débeis, dos pequenos, dos sem direitos, dos
pobres, dos indefesos, dos insignificantes, dos marginalizados. São esses,
precisamente, que a comunidade de Jesus deve abraçar. No contexto da conversa
que Jesus está a ter com os discípulos, o gesto de Jesus significa o seguinte:
o discípulo de Jesus é grande, não quando tem poder ou autoridade sobre os
outros, mas quando abraça, quando ama, quando serve os pequenos, os pobres, os
marginalizados, aqueles que o mundo rejeita e abandona. No pequeno e no pobre
que a comunidade acolhe, é o próprio Jesus (que também foi pobre, débil,
indefeso) que Se torna presente.
ATUALIZAÇÃO
• Os anúncios da paixão testemunham que Jesus,
desde cedo, teve consciência de que a missão que o Pai Lhe confiara ia passar
pela cruz. Por outro lado, a serenidade e a tranquilidade com que Ele falava do
seu destino de cruz mostram uma perfeita conformação com a vontade do Pai e a
vontade de cumprir à risca os projetos de Deus. A postura de Jesus é a postura
de alguém que vive segundo a “sabedoria de Deus”… Ele nunca conduziu a vida ao
sabor dos interesses pessoais, nunca pôs em primeiro lugar esquemas de egoísmo
ou de auto-suficiência, nunca Se deixou tentar por sonhos humanos de poder ou
de riqueza… Para Ele, o fator decisivo, o valor supremo, sempre foi a vontade
do Pai, o projeto de salvação que o Pai tinha para os homens. Nós, cristãos, um
dia aderimos a Jesus e aceitamos percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu.
Que valor e que significado tem, para nós, essa vontade de Deus que dia a dia
descobrimos nos pequenos acidentes da nossa vida? Temos a mesma disponibilidade
de Jesus para viver na fidelidade aos projetos do Pai? O que é que dirige e
condiciona o nosso percurso: os nossos interesses pessoais, ou os projetos de
Deus?
• Neste episódio, os discípulos são o exemplo
clássico de quem raciocina segundo a “sabedoria do mundo”. Quando Jesus fala em
servir e dar a vida, eles não concordam e fecham-se num silêncio amuado; e logo
a seguir, discutem uns com os outros por causa da satisfação dos seus apetites
de poder e de domínio. Aquilo que os preocupa não é o cumprimento da vontade de
Deus, mas a satisfação dos seus interesses próprios, dos seus sonhos pessoais.
A atitude dos discípulos mostra a dificuldade que os homens têm em entender e
acolher a lógica de Deus. Contudo, a reação de Jesus diante de tudo isto é
clara: quem quer seguir Jesus tem de mudar a mentalidade, os esquemas de
pensamento, os valores egoístas e abrir o coração à vontade de Deus, às
propostas de Deus, aos desafios de Deus. Não é possível fazer parte da
comunidade de Jesus, se não estivermos dispostos a realizar este processo.
• O Evangelho de hoje convida-nos a repensar a
nossa forma de nos situarmos, quer na sociedade, quer dentro da própria
comunidade cristã. A instrução de Jesus aos discípulos que o Evangelho deste
domingo nos apresenta é uma denúncia dos jogos de poder, das tentativas de
domínio sobre os irmãos, dos sonhos de grandeza, das manobras para conquistar
honras e privilégios, da busca desenfreada de títulos, da caça às posições de
prestígio… Esses comportamentos são ainda mais graves quando acontecem dentro
da comunidade cristã: trata-se de comportamentos incompatíveis com o seguimento
de Jesus. Nós, os seguidores de Jesus, não podemos, de forma alguma, pactuar
com a “sabedoria do mundo”; e uma Igreja que se organiza e estrutura tendo em
conta os esquemas do mundo não é a Igreja de Jesus.
• Na nossa sociedade, os primeiros são os que têm
dinheiro, os que têm poder, os que frequentam as festas badaladas nas revistas
da sociedade, os que vestem segundo as exigências da moda, os que têm sucesso
profissional, os que sabem colar-se aos valores politicamente corretos… E na
comunidade cristã? Quem são os primeiros? As palavras de Jesus não deixam
qualquer dúvida: “quem quiser ser o primeiro, será o último de todos e o servo
de todos”. Na comunidade cristã, a única grandeza é a grandeza de quem, com
humildade e simplicidade, faz da própria vida um serviço aos irmãos. Na
comunidade cristã não há donos, nem grupos privilegiados, nem pessoas mais
importantes do que as outras, nem distinções baseadas no dinheiro, na beleza,
na cultura, na posição social… Na comunidade cristã há irmãos iguais, a quem a
comunidade confia serviços diversos em vista do bem de todos. Aquilo que nos
deve mover é a vontade de servir, de partilhar com os irmãos os dons que Deus
nos concedeu.
• A atitude de serviço que Jesus pede aos seus
discípulos deve manifestar-se, de forma especial, no acolhimento dos pobres,
dos débeis, dos humildes, dos marginalizados, dos sem direitos, daqueles que
não nos trazem o reconhecimento público, daqueles que não podem retribuir-nos…
Seremos capazes de acolher e de amar os que levam uma vida pouco exemplar, os
marginalizados, os estrangeiros, os doentes incuráveis, os idosos, os difíceis,
os que ninguém quer e ninguém ama?
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