Francisco e João Paulo II nos legaram discursos extraordinários diante do mistério do mal.
Como brincam as paródias literárias, "era uma noite escura e
tempestuosa". 21 de março de 2000, para ser mais preciso: naquela noite,
eu fui do hotel Hilton de Jerusalém até o Centro Notre Dame para
encontrar um funcionário do Vaticano que tinha me prometido um disquete
com os discursos que João Paulo II faria durante a sua épica visita à
Terra Santa.
O disquete foi devidamente entregue e, de volta
ao meu quarto de hotel, fui lendo os discursos com especial atenção para
o que o papa polonês diria quando visitasse o Memorial do Holocausto
no Yad Vashem, evento sobre o qual tinha havido considerável
controvérsia. O texto, que só poderia ter vindo das próprias mãos de
João Paulo II, dava fim àquela tagarelice com quatro frases
perfeitamente trabalhadas:
"Neste lugar de memórias, a mente, o
coração e a alma sentem uma necessidade extrema de silêncio. Silêncio
no qual lembrar. Silêncio no qual tentar dar sentido às lembranças que
vêm à tona. Silêncio porque não há palavras suficientemente fortes para
deplorar a terrível tragédia da Shoah".
Mais tarde, recebi um
telefonema de um amigo israelense, distinto e erudito soldado que
conhecia bem o mundo do poder e que tinha trabalhado para encontrar um
caminho de paz realista em situações onde muita gente só estava
interessada no próximo assassinato. "Eu tinha que lhe contar", disse
ele, "que a minha esposa e eu choramos durante toda a visita do papa ao
Yad Vashem. Foi a sabedoria, a humanidade e a integridade
personificadas. Não faltou nada. E não precisava ser dito mais nada".
A visita de João Paulo II ao Yad Vashem teve um impacto singular por
muitas razões: o fato de ele ter sido o primeiro bispo de Roma a visitar
o Memorial do Holocausto; o fato de ele ter perdido amigos na Shoah; o
fato de muitas das mortes terem ocorrido na sua Polônia natal; a
autoridade moral única que ele tinha conquistado com o seu próprio
testemunho de respeito à liberdade religiosa e a outros direitos humanos
fundamentais, pelos quais ele também tinha sofrido pesadamente.
Ainda assim, com o caráter único da peregrinação de João Paulo II ao
Yad Vashem, a recente visita do papa Francisco à chama eterna do mesmo
Saguão da Lembrança não passou sem irradiar ao mundo a sua própria
ressonância extraordinária. Em um discurso notável, muito pouco relatado
por uma imprensa mundial obcecada com a política do Oriente Médio,
Francisco se atreveu a assumir a voz de Deus no terceiro capítulo do
livro do Gênesis, perguntando à humanidade:
"Adão, onde estás?
Onde estás, ó homem? O que foi que fizeste? (...) Adão, quem és? Não te
reconheço mais... Quem és tu, ó homem? Em que te transformaste? De que
horror foste capaz? O que te fez cair em tais profundidades?
Não foi, certamente, o pó da terra de que foste feito. O pó da terra é
bom: é obra das minhas mãos. Não foi, certamente, o sopro da vida que eu
inspirei dentro de ti. Este sopro vem de mim e é algo bom.
Não, este abismo não é apenas obra das tuas mãos, do teu coração... Quem
foi que te corrompeu? Quem foi que te desfigurou? Quem foi que te levou
a acreditar que és o mestre do bem e do mal? Quem te convenceu de que
tu és Deus? Não apenas torturaste e mataste os teus próprios irmãos e
irmãs, como os sacrificaste a ti mesmo, porque fizeste de ti mesmo um
deus".
O profundo senso que o papa Francisco
tem do mistério do mal continua fugindo ao entendimento daqueles que o
imaginam como um papa inconsistente. A pregação constante do Santo Padre
sobre a misericórdia divina se vincula aos seus lembretes persistentes
de que o maligno age no mundo e que seus efeitos da sua ação estão à
nossa volta. Somente quando reconhecemos isto é que podemos dizer, como
Francisco disse no Yad Vashem:
"Lembra-te de nós na tua
misericórdia. Concede-nos a graça de ter vergonha do que nós, homens,
fizemos; de ter vergonha dessa ingente idolatria, de termos desprezado e
destruído a nossa própria carne, à qual Tu deste a vida com o teu
próprio sopro de vida".
George Weigel
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