quarta-feira, 25 de junho de 2014

A QUEDA DE MOSSUL, MILENAR CIDADE CRISTÃ DO NORTE DO IRAQUE.

Para quem se importa com a história do cristianismo, essa tragédia é quase o fim do mundo.

 

Em 10 de junho, a cidade de Mossul foi tomada pelas forças do grupo extremista ISIS, ou Estado Islâmico do Iraque e do Levante, pela sigla em inglês. Da perspectiva política, esta é uma catástrofe para as esperanças americanas de preservar a estabilidade a duras penas imposta à região, além de um iminente desastre humanitário. Particularmente atingidos são os cristãos locais, que não têm nenhum desejo de viver sob o domínio jihadista. Uma história comovente publicada no jornal britânico The Telegraph anunciou há poucos dias que os "cristãos sitiados do Iraque fazem a derradeira tentativa de resistência na linha de frente de Mossul".

Muito tem sido divulgado a respeito, mas o que tem faltado na mídia é dizer o quanto Mossul é crucialmente importante para a bimilenar história cristã. Embora a destruição da Mossul cristã venha se perfilando há muitos anos, o seu fim já prestes a se tornar um fato ainda é chocante. A melhor maneira de descrever as implicações deste desastre é imaginar a aniquilação de algum grande centro europeu da fé, como Assis.

Mossul foi um antigo centro assírio que continuou a florescer durante a Idade Média. A cidade já registrava a presença cristã no século II d.C. e foi uma base vital para a Igreja do Oriente, a chamada Igreja nestoriana, que fez dela a sua sé metropolitana. Também estiveram presentes na região os chamados monofisitas. Essas igrejas usavam o siríaco, idioma próximo ao dos apóstolos. Aldeias de língua siríaca ainda sobrevivem na área de Mossul.

A cidade esteve no centro de uma rede de mosteiros, alguns dos quais entre os primeiros e mais influentes de todo o movimento monástico. A 50 quilômetros de Mossul, encontramos os mosteiros de Santo Elias e de São Mateus (Mar Mattai), do século IV; os de Rabban Hormizd e Beth Abhe, do VI ou VII, e muitos outros, como o Mar Bihnam, o Mar Gewargis (São Jorge), o Mar Mikhael (São Miguel). Como na Europa Ocidental, essas casas monásticas foram de fundamental importância para a grande tradição da fé e do aprendizado cristão, sem ficar devendo nada a lugares lendários como Monte Cassino. Em seu auge, Mar Mattai foi um dos maiores mosteiros de todo o mundo cristão, abrigando em seus muros milhares de monges.

Existe um registro precioso desse mundo perdido nos escritos de Tomás de Marga, cujo “Livro dos Governadores” compila as vidas de monges siríacos e de homens santos. Tomás menciona dezenas de nomes de pequenas casas religiosas na região de Mossul, a maioria das quais é quase impossível localizar hoje em dia. Os restos de muitas delas, provavelmente, sobrevivem sob mesquitas iraquianas em vilarejos da região. O norte do Iraque já foi tão densamente semeado de mosteiros e de ermidas quanto a Irlanda.

A Igreja do Oriente nunca teve a bênção mista de uma aliança estreita com um poder secular amigável. No século III, a região de Mossul foi governada pela Pérsia e, no VII, foi tomada por comandantes muçulmanos. Durante séculos, no entanto, aquelas igrejas e mosteiros continuaram seguindo o seu bem estabelecido caminho. Nas histórias do imponente polímata Gregório Bar Hebraeus, do século XIII, a região de Mossul ainda se apresentava como um dos centros do universo cristão (o próprio Gregório foi enterrado no Mar Mattai). Quando emissários cristãos da China mongol viajaram pelo Oriente Médio por volta de 1280, visitando os principais centros da fé, Mossul foi, naturalmente, um dos destaques do itinerário.

Após o século XIII, Mossul passou por tempos duríssimos e saiu devastada das guerras mongóis. Mesmo assim, a vida cristã persistiu nas casas religiosas circundantes. Podemos ter uma ideia desta situação com base em inestimáveis e antigos manuscritos cristãos siríacos, como a Caverna dos Tesouros, hoje no Museu Britânico. O manuscrito foi copiado em 1709 pelo erudito sacerdote Homô, filho do sacerdote Daniel, que viveu em Alqosh, perto de Mossul. Sem o trabalho dedicado de estudiosos como ele, o nosso conhecimento do cristianismo oriental antigo seria muito mais pobre.  

A ruína da Mossul cristã é um assunto dos nossos tempos. No início do século XX, o estado terrível da ordem pública no norte da Mesopotâmia tinha reduzido drasticamente a população cristã, enquanto incursões curdas e ataques de bandidos açoitavam reiteradamente os mosteiros e devastavam as suas bibliotecas. A Primeira Guerra Mundial foi outro golpe de quase-morte, com os turcos otomanos infligindo aos cristãos locais a mesma tentativa de genocídio que estavam aplicando contra os armênios. Por volta de 1920, a outrora transcontinental Igreja do Oriente, a Igreja assíria, se viu reduzida a cerca de quarenta mil sobreviventes na área de Mossul.

Mesmo assim, a comunidade assíria reviveu e coexistiu com outras comunidades cristãs, com os caldeus católicos, com os sírio-ortodoxos e com ortodoxos árabes. Os cristãos tinham a esperança de se beneficiar da laicidade do Estado, prometida pelo regime do Baath, de Saddam Hussein. Mossul era a casa do notório ministro das Relações Exteriores de Saddam, que trocou seu nome cristão de batismo, Michael Yuhanna, por um nome de sonoridade mais muçulmana: Tariq Aziz.

Mas não adiantou. A violência islâmica eclodiu após a invasão dos Estados Unidos em 2003 e a campanha do ISIS pode muito bem significar o golpe final. De maneira ainda mais dolorosa para quem conhece a história da região, o artigo que eu mencionei, sobre a tentativa derradeira de resistência dos cristãos, vinha ilustrado por uma imagem do Mar Mattai, hoje reduzido a um santuário para os civis locais.

Para quem se importa com a história cristã, uma tragédia como esta é quase o fim do mundo. 

 

 

 

Philip Jenkins

 

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