A QUEDA DE MOSSUL, MILENAR CIDADE CRISTÃ DO NORTE DO IRAQUE.
Para quem se importa com a história do cristianismo, essa tragédia é quase o fim do mundo.
Em 10 de junho, a cidade de Mossul foi tomada pelas forças do grupo extremista ISIS, ou Estado Islâmico do Iraque
e do Levante, pela sigla em inglês. Da perspectiva política, esta é uma
catástrofe para as esperanças americanas de preservar a estabilidade a
duras penas imposta à região, além de um iminente desastre humanitário.
Particularmente atingidos são os cristãos locais, que não têm nenhum
desejo de viver sob o domínio jihadista. Uma história comovente
publicada no jornal britânico The Telegraph anunciou há poucos dias que
os "cristãos sitiados do Iraque fazem a derradeira tentativa de
resistência na linha de frente de Mossul".
Muito tem sido divulgado a respeito, mas o que tem faltado na mídia é dizer o quanto Mossul é crucialmente importante para a bimilenar história
cristã. Embora a destruição da Mossul cristã venha se perfilando há
muitos anos, o seu fim já prestes a se tornar um fato ainda é chocante. A
melhor maneira de descrever as implicações deste desastre é imaginar a
aniquilação de algum grande centro europeu da fé, como Assis.
Mossul foi um antigo centro assírio que continuou a florescer durante a
Idade Média. A cidade já registrava a presença cristã no século II d.C. e
foi uma base vital para a Igreja do Oriente, a chamada Igreja
nestoriana, que fez dela a sua sé metropolitana. Também estiveram
presentes na região os chamados monofisitas. Essas igrejas usavam o
siríaco, idioma próximo ao dos apóstolos. Aldeias de língua siríaca
ainda sobrevivem na área de Mossul.
A cidade esteve no centro de uma rede de mosteiros,
alguns dos quais entre os primeiros e mais influentes de todo o
movimento monástico. A 50 quilômetros de Mossul, encontramos os
mosteiros de Santo Elias e de São Mateus (Mar Mattai), do século IV; os
de Rabban Hormizd e Beth Abhe, do VI ou VII, e muitos outros, como o Mar
Bihnam, o Mar Gewargis (São Jorge), o Mar Mikhael (São Miguel). Como na
Europa Ocidental, essas casas monásticas foram de fundamental
importância para a grande tradição da fé e do aprendizado cristão, sem
ficar devendo nada a lugares lendários como Monte Cassino. Em seu auge,
Mar Mattai foi um dos maiores mosteiros de todo o mundo cristão,
abrigando em seus muros milhares de monges.
Existe um registro
precioso desse mundo perdido nos escritos de Tomás de Marga, cujo
“Livro dos Governadores” compila as vidas de monges siríacos e de homens
santos. Tomás menciona dezenas de nomes de pequenas casas religiosas na
região de Mossul, a maioria das quais é quase impossível localizar hoje
em dia. Os restos de muitas delas, provavelmente, sobrevivem sob
mesquitas iraquianas em vilarejos da região. O norte do Iraque já foi
tão densamente semeado de mosteiros e de ermidas quanto a Irlanda.
A Igreja do Oriente nunca teve a bênção mista de uma aliança estreita
com um poder secular amigável. No século III, a região de Mossul foi
governada pela Pérsia e, no VII, foi tomada por comandantes muçulmanos.
Durante séculos, no entanto, aquelas igrejas e mosteiros continuaram
seguindo o seu bem estabelecido caminho. Nas histórias do imponente
polímata Gregório Bar Hebraeus, do século XIII, a região de Mossul ainda
se apresentava como um dos centros do universo cristão (o próprio
Gregório foi enterrado no Mar Mattai). Quando emissários cristãos da
China mongol viajaram pelo Oriente Médio por volta de 1280, visitando os
principais centros da fé, Mossul foi, naturalmente, um dos destaques do
itinerário.
Após o século XIII, Mossul passou por tempos duríssimos e saiu devastada das guerras
mongóis. Mesmo assim, a vida cristã persistiu nas casas religiosas
circundantes. Podemos ter uma ideia desta situação com base em
inestimáveis e antigos manuscritos cristãos siríacos, como a Caverna dos
Tesouros, hoje no Museu Britânico. O manuscrito foi copiado em 1709
pelo erudito sacerdote Homô, filho do sacerdote Daniel, que viveu em
Alqosh, perto de Mossul. Sem o trabalho dedicado de estudiosos como ele,
o nosso conhecimento do cristianismo oriental antigo seria muito mais
pobre.
A ruína da Mossul cristã é um assunto dos nossos
tempos. No início do século XX, o estado terrível da ordem pública no
norte da Mesopotâmia tinha reduzido drasticamente a população cristã,
enquanto incursões curdas e ataques de bandidos açoitavam reiteradamente
os mosteiros e devastavam as suas bibliotecas. A Primeira Guerra
Mundial foi outro golpe de quase-morte, com os turcos otomanos
infligindo aos cristãos locais a mesma tentativa de genocídio que
estavam aplicando contra os armênios. Por volta de 1920, a outrora
transcontinental Igreja do Oriente, a Igreja assíria, se viu reduzida a
cerca de quarenta mil sobreviventes na área de Mossul.
Mesmo assim, a comunidade assíria reviveu e coexistiu com outras comunidades cristãs, com os caldeus
católicos, com os sírio-ortodoxos e com ortodoxos árabes. Os cristãos
tinham a esperança de se beneficiar da laicidade do Estado, prometida
pelo regime do Baath, de Saddam Hussein. Mossul era a casa do notório
ministro das Relações Exteriores de Saddam, que trocou seu nome cristão
de batismo, Michael Yuhanna, por um nome de sonoridade mais muçulmana:
Tariq Aziz.
Mas não adiantou. A violência islâmica
eclodiu após a invasão dos Estados Unidos em 2003 e a campanha do ISIS
pode muito bem significar o golpe final. De maneira ainda mais dolorosa
para quem conhece a história da região, o artigo que eu mencionei, sobre
a tentativa derradeira de resistência dos cristãos, vinha ilustrado por
uma imagem do Mar Mattai, hoje reduzido a um santuário para os civis
locais.
Para quem se importa com a história cristã, uma tragédia como esta é quase o fim do mundo.
Philip Jenkins
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