Ao
filho que vier (se Deus quer que venha) ensinarei mesmo somente o AMOR.
Ele, nascido pela violência, testemunhará, perto de mim, que a única
grandeza que honra a pessoa humana, é aquela do PERDÃO.
A Irmã Lucy Veturse, da Bósnia, foi
estuprada por soldados sérvios durante a guerra entre essas etnias da
antiga Iugoslávia, após a queda do comunismo (1990); e ficou grávida.
Embora violentada e humilhada, ela não admitiu o aborto e preferiu ter
que deixar a vida religiosa para criar seu filho, do que abortá-lo.
Eis, a seguir, um resumo da carta
emocionante que ela escreveu à sua Superiora (publicado na revista
Pergunte e Responderemos, Nº 386, 1994, págs. 318 a 321).
Revda. Madre Geral,
Eu sou Lucy Veturse… Há experiências
tão tristes na vida que não podem ser comunicadas para ninguém a não
ser àquele Bom Pastor a quem me consagrei no ano passado com os três
votos religiosos.
O
meu drama não é a humilhação padecida, como mulher, nem a ofensa
insanável feita à minha escolha existencial e vocacional, mas é,
sobretudo a dificuldade de inscrever na minha fé um acontecimento que
certamente faz parte do insondável e misterioso plano d’Aquele que eu
continuarei a considerar sempre o meu Divino Esposo.
Tinha lido, poucos dias antes, o
“Diálogo das Carmelitas” de Bernanos e me tinha sido espontâneo pedir ao
Senhor poder eu mesmo morrer mártir. Ele me tomou na palavra,… mas de
que jeito! Encontro-me atualmente numa angustiante noite escura do
espírito. Ele destruiu o projeto de vida que eu considerava definitivo
para mim. De improviso me inseriu em um novo desígnio que neste momento
é, para mim, ainda a ser descoberto.
No meu caderno de notas tinha escrito, nos anos de minha
adolescência, que nada é meu, eu não pertenço a ninguém, ninguém me
pertence. Alguém, pelo contrário, me apanhou, numa noite que não queria
mais lembrar, me arrancou de mim mesma, pensando tornar-me algo dele.
Era dia quando acordei; o primeiro
pensamento foi mesmo aquele da agonia de Jesus no Horto. Desencadeou-se
em mim uma luta terrível: perguntava-me, de um lado, por que Deus teria
permitido que eu fosse dilacerada e destruída, naquilo mesmo que eu
considerava a razão do meu viver, e, de outro lado, para qual novo
chamado queria Ele que eu me candidatasse.
A custo, levantei-me e, enquanto
auxiliada por irmã Josefina, procurava-me arrumar, escutei do Mosteiro
das Agostinianas, que se situava perto do nosso, o toque do sino de
Sexta. Fiz o sinal da cruz e mentalmente rezei o hino da Liturgia:
“Nesta hora foi nos dada gloriosa salvação, pela morte do Cordeiro, que
na Cruz trouxe o perdão…”
O que é, Madre, o meu sofrimento e a
ofensa padecida em comparação a tudo aquilo que sofreu Aquele pelo qual
eu tinha mil vezes prometido dar a vida? Disse então bem devagar: “Seja
feita a tua vontade, sobretudo agora que não tenho outro apoio senão a
certeza de que Tu, Senhor, estás perto de mim”.
Escrevo, Madre, não para receber da
senhora conforto, mas para que me auxilie a agradecer a Deus por me ter
associado a milhares de minhas compatrícias ofendidas na honra e
forçadas à maternidade indesejada. Minha humilhação junta-se à delas e,
pois que não tenho outra coisa para oferecer para a expiação dos pecados
cometidos pelos anônimos violentadores e para uma pacificação entre as
duas opostas etnias, aceito a desonra padecida e a entrego à
misericórdia de Deus.
Chorei, nestes meses, todas as
minhas lágrimas pelos meus dois irmãos assassinados pelos mesmos
agressores que estão espalhando terror em nossas cidades e pensava que
mais do isso não poderia sofrer. Nem imaginava que a dor pudesse ter bem
outras dimensões…
À porta do nosso convento batiam
cada dia centenas de criaturas famintas, tiritando de frio, com o
desespero nos olhos. Lembro-me que na semana anterior uma moça de
dezoito anos me tinha assim falado: “Felizes vocês que escolheram um
lugar onde a maldade não pode entrar”. Tinha em mãos o livro “As
alegrias do Profeta” e continuou em voz baixa: “Vocês não vão mais
experimentar o que é desonra”.
Refleti demoradamente naquelas
palavras e me convenci de que havia uma parte secreta da dor e do
sofrimento de minha gente que ficava despercebida também a mim, e quase
sentia um sentimento de pudor por ser excluída de sua participação.
Nosso Senhor me admitiu a participar
de seu mistério de vergonha; mais ainda a mim, Religiosa e freira,
concedeu o privilégio de compreender até o fundo a força diabólica do
mal.
Lembro que, quando frequentava em
Roma a Universidade “Auxilium” para a formatura em Letras, uma idosa
docente de Literatura Eslava citava os seguintes versos do poeta Alexei
Mislovich: “Tu não deves morrer, porque tu escolheste ficar do lado da
vida”. Na noite em que fui dilacerada pelos sérvios, por horas seguidas
continuava a repetir para mim mesma aquelas palavras que me pareciam
como um bálsamo para a alma, mesmo no momento em que o desespero parecia
aflorar para me apanhar.
Madre, tudo está para começar… a
senhora me colocou uma clara pergunta: “Que farás da vida que te foi
jogada no seio?”. Percebi que sua voz tremia ao me colocar esta
interrogação.
Eu
já decidi. Se for mãe, o menino será meu e de ninguém mais. Sei que
poderia confiá-lo a outras pessoas, mas ele tem direito, mesmo não sendo
esperado por mim, nem pedido, ao meu amor de mãe. Não se pode arrancar
uma planta de suas raízes. O grão caído no chão precisa de crescer lá
onde o misterioso semeador, mesmo sendo iníquo, o jogou. Realizarei
minha vocação religiosa, mas de outra maneira. Não peço nada à minha
Congregação, que já me deu tudo. Irei embora com meu filho, se Deus
quiser. Voltarei a ser uma moça pobre, retomarei meu velho avental, meus
tamancos, que as mulheres usam nos dias de semana, e irei com minha mãe
a recolher a resina da casca dos pinheiros dos nossos vastos bosques.
Deve mesmo haver alguém que comece a
quebrar a corrente de ódio que deturpa, há tanto tempo, os nossos
países. Ao filho que vier (se Deus quer que venha) ensinarei mesmo
somente o AMOR. Ele, nascido pela violência, testemunhará, perto de mim,
que a única grandeza que honra a pessoa humana, é aquela do PERDÃO.
Irmã Lucy Veturse.
Retirado do livro: “Entrai pela Porta Estreita”. Prof. Felipe Aquino. Ed. Cléofas.
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