O abuso do tempo
Conta-se que certo literato muito ocupado
(e que por acaso produziu pouco), tinha sobre a porta estas legendas
pouco convidativas: “O meu tempo é tão precioso como o teu; se gostas de
perder o teu tempo, pensa no dos outros”. Um importante industrial de
Chicago tinha no escritório um grande cartaz com as seguintes
indicações: “Visitantes, sede breves; o meu tempo é precioso, e eu
respondo adiantadamente a todas as vossas perguntas inúteis…”
“Se estou bem?” – Obrigado.
“Se o tempo está bom?” – Não me interessa.
“Se está calor ou frio?” – Não quero saber.
“Se li o jornal?” – Só leio os câmbios e preços das mercadorias.
“Se minha família está bem?” – Sou solteiro.
“Adeus, adeus!”
Uma “americanice” se dirá. Já há duzentos
anos dizia uma autêntica francesa, Madame du Deffand: “Os que me
visitam, honram-me; os que não me visitam, dão- me prazer.” É claro que o
exagero, por pequeno que seja, neste sentido, mata as relações de
amizade e o encanto das conversas em que nada se diz e algo se aprende.
Quem não procura senão o útil, não se
arriscará a perder o que na vida é mais que o útil? E, o que é pior,
arriscar-se-á a faltar aos mais elementares deveres para com os vivos, e
até para com os mortos.
O autor dos Conselhos de um velho
americano e um jovem francês – livro em que há picantes observações,
algumas das quais mereciam de ser recordadas -, censura os mortos por
matarem os vivos, exigindo-lhes que deixem as ocupações diárias para
assistirem aos seus funerais. Esta é um pouco forte!…
Justa medida
Mas, uma vez estabelecidas as reservas
impostas pelo bom senso, pela religião e pelas justas conveniências, não
se pode impedir os que querem desembaraçar a nossa vida desse nunca
acabar artificial de visitas sem encanto nem finalidade, meramente
protocolares, tão insuportáveis para quem as faz como para quem os
recebe.
Da troca de correspondência, cujo único
benefício evidente é enriquecer as Finanças e os Correios; de todas as
despóticas exigências de modas, seguramente inventadas por quem
desconhece o verdadeiro valor do tempo.
Pode dizer-se que o mundo assenta sobre a
mentira das convenções, admitida por todos. Mas isso merecerá que
alguém se obstine em perpetuar tal mentira? Não creio.
Usar de amável delicadeza por motivo de
verdadeira caridade, está muito bem, e nunca será demais; frio
protocolo, a pretexto de pseudo-obrigações mundanas, sobre isso estamos
conversados. Que ao tempo mais precioso se roubem duas ou três horas
para consolar um sofrimento ou aliviar uma doença, está bem; mas que se
roube tempo – coisa tão valiosa como fecunda – para ir contar bagatelas,
aborrecendo-se e aborrecendo os outros, francamente, para que serve?
Efetivamente, se pensarmos bem, nada
prejudica tanto a atividade útil como essas dissipações. Se, ao menos, a
vida fosse longa! Mas, quando poderemos trabalhar, concentrar-nos, se
inúmeras pessoas e insuportáveis convenções nos roubam o melhor ou uma
parte notável do descanso em silêncio, que torna a vida fecunda?
Quem quiser tirar bom rendimento da sua
atividade, deve saber não perder o tempo. Carlos Peguy tem oito anos. Em
dia de Carnaval passa por debaixo da sua janela, com o ruído que pode
imaginar-se, um cortejo.
De pé, em cima de um pequeno banco, desenhava ele um mapa de
geografia. Convidam-no a ir ver o cortejo que passa na rua. “Isso não me
interessa”, respondeu, “não tenho tempo senão para fazer o mapa da
França”.
Neste episódio descobre-se o homem que,
mais tarde, pôde com verdade declarar: “Sempre levei tudo a sério, e por
isso cheguei longe”. Mas s Carlos Peguy são raros! Não falamos do
talento extraordinário, mas do cuidado de economizar o tempo.
Quando somos jovens, afigura-se que
sempre haverá folgas. Passeamos ou damo-nos à contemplação sem um
objetivo explícito. Não se trata aqui das digressões à La Fontaine, das
quais saíram obras-primas, mas de passeios sem finalidade, fruto da
preguiça e da inércia. No seu regulamento de vida Mons. De Ségur, no
princípio do seu sacerdócio, havia escrito: “Trabalho contínuo; não
facilitar nunca; não estar ocioso no meu quarto”.
Alguns se ocupam com grande maestria a
perder faustosamente o seu tempo. Esses nunca farão nada. “Devo todos os
meus sucessos na vida”, dizia Nelson, “ao fato de sempre e em tudo
andar um quarto de hora adiantado”. Verdadeira fórmula para ficar
vitorioso em Trafalgar!
Quando era embaixador em Paris, Donoso
Cortês lastimava o emprego do seu tempo. Costumava dizer: “Quando Deus
me julgar, nada mais terei a responder-lhe senão isto: fiz visitas”. E,
no entanto, as visitas faziam parte os seus deveres de estado.
Quantos, se tivessem presentes seus
deveres de estados – e os dos outros -, renunciariam à maior partes das
suas “amáveis visitas”! O padre Lancício, de quem já falamos, era um
grande trabalhador.
Gostava tão pouco de perder o seu tempo
que, para recompensar, parece que Deus lhe concedera esta graça: sempre
que tinha necessidade de procurar um pormenor, um texto ou uma
referencia, o livro abria-se por si próprio no lugar desejado.
O comum dos homens não merece semelhante
graça. Estamos reduzidos aos nossos próprios meios. No entanto, para
quem quer emprega-los e economizar o seu tempo, são possíveis
verdadeiros “milagres”. O jesuíta Petau emprega todos os momentos livres
na tradução dos Salmos em versos gregos.
Conta-se que o ilustre chanceler
d’Aguesseau, não encontrando muitas vezes o almoço feito a horas,
apresentou um dia a sua mulher, à maneira de aperitivo, um livro escrito
durante os quartos de hora que teve de esperar para sentar-se à mesa…
Mencionemos alguns episódios mais sérios.
M. Doimier, que saiu do nada e chegou a
desempenhar altos cargos, dá-nos um exemplo característico de sucesso,
devido ao trabalho persistente. Modesto empregado prepara sozinho em
cursos noturnos o seu bacharelado
e depois a licenciatura… O resto é conhecido. Ramsay Mac Donald e Lloyd
George, ambos primeiros-ministro de Inglaterra, foram também
incansáveis trabalhadores.
Lloyd George, ainda jovem, gostava de
estudar Napoleão, admirava a sua lendária resistência à fadiga
intelectual e procurava rivalizar com ele. A sorte não faz tudo.
O trabalho, um trabalho por vezes
violento, ajuda a sorte. Luís XIV, Lyautey e Poincaré – de propósito
juntamos as mais dessemelhantes figuras – foram formidáveis
trabalhadores.
Um dos biógrafos de Luís XIV diz que ele,
quando era novo, trabalhava seis a oito horas por dia nas suas
ocupações de rei, e que, cinquenta e quatro anos mais tarde, trabalhava
ainda mais tempo.
Raymon Poincaré deitava-se às vinte e
três horas, tendo trabalhado no seu gabinete desde as sete da manhã, com
um método que auxiliava a sua rara inteligência e assombrosa memoria.
Quando ainda era presidente da República,
ia certo dia de Paris para Sampigny, de automóvel. O carro, já gasto,
dava constantes solavancos. “É a ultima vez que viajo nele”, diz,
“porque não pude trabalhar nem um só instante”.
Perguntaram-lhe: “Então, contava
trabalhar?”; “Evidentemente, pois nunca, como daquela vez, perdi cinco
horas na minha vida”. Poucos homens trabalharam tão ativamente como os
chefes do bolchevismo, apostados durante vinte ou trinta anos sem perder
um minuto em preparar um golpe de estado, autênticos escravos do
trabalho antes de serem os chefes que se sabe, escreve um dos seus
historiadores: “Nunca os bolchevistas poderiam realizar o esforço
necessário para chegarem ao poder e manter-se nele, se fossem apenas
simples homens de barricada, salteadores, revolucionários, e não
notáveis eruditos, heróis do espirito, trabalhavam normalmente catorze a
dezesseis horas por dia. Tchicherine mandou colocar uma cama no seu
gabinete, e trabalhava desde as cinco horas da tarde até às onze da
manhã – o que deu origem ao seu extremo nervosismo. A loucura de que no
fim da vida foi acometido Lenine, explica-se pelo excesso de um trabalho
obstinado.
Texto retirado do livro: Virtudes Raras, Raul Plus
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