A liturgia do 32º domingo do tempo comum fala-nos do verdadeiro culto,
do culto que devemos prestar a Deus. A Deus não interessam grandes
manifestações religiosas ou ritos externos mais ou menos suntuosos, mas uma
atitude permanente de entrega nas suas mãos, de disponibilidade para os seus
projetos, de acolhimento generoso dos seus desafios, de generosidade para doarmos
a nossa vida em benefício dos nossos irmãos.
A primeira leitura apresenta-nos o exemplo de uma mulher pobre de
Sarepta, que, apesar da sua pobreza e necessidade, está disponível para acolher
os apelos, os desafios e os dons de Deus. A história dessa viúva que reparte
com o profeta os poucos alimentos que tem, garante-nos que a generosidade, a
partilha e a solidariedade não empobrecem, mas são geradoras de vida e de vida
em abundância.
O Evangelho diz, através do exemplo de outra mulher pobre, de outra
viúva, qual é o verdadeiro culto que Deus quer dos seus filhos: que eles sejam
capazes de Lhe oferecer tudo, numa completa doação, numa pobreza humilde e
generosa (que é sempre fecunda), num despojamento de si que brota de um amor
sem limites e sem condições. Só os pobres, isto é, aqueles que não têm o
coração cheio de si próprios, são capazes de oferecer a Deus o culto verdadeiro
que Ele espera.
A segunda leitura oferece-nos o exemplo de Cristo, o sumo-sacerdote que
entregou a sua vida em favor dos homens. Ele mostrou-nos, com o seu sacrifício,
qual é o dom perfeito que Deus quer e que espera de cada um dos seus filhos.
Mais do que dinheiro ou outros bens materiais, Deus espera de nós o dom da
nossa vida, ao serviço desse projeto de salvação que Ele tem para os homens e
para o mundo.
1ª leitura: 1Re. 17,10-16 - AMBIENTE
Encontramos no Livro dos Reis um conjunto de tradições ligadas à vida e
à ação de uma figura central do profetismo bíblico: o profeta Elias. Essas
tradições aparecem, de forma intermitente, entre 1Re. 17,1 e 2Re. 2,12.
Elias (cujo nome significa “o meu Deus é o Senhor” – o que, por si só,
constitui logo um programa de vida) atua no Reino do Norte (Israel) durante o
século IX a.C., num tempo em que a fé jahwista é posta em causa pela
preponderância que os deuses estrangeiros (especialmente Baal) assumem na
cultura religiosa de Israel. Provavelmente, estamos diante de uma tentativa de
abrir Israel a outras culturas, a fim de facilitar o intercâmbio cultural e
comercial… Mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos
círculos religiosos de Israel. O ministério profético de Elias desenvolve-se
sobretudo durante o reinado de Acab (873-853 a.C.), embora a sua voz também se
tenha feito ouvir no reinado de Ocozias (853-852 a.C.).
Elias é o grande defensor da fidelidade a Jahwéh. Ele aparece como o
representante dos israelitas fiéis que recusavam a coexistência de Jahwéh e de
Baal no horizonte da fé de Israel. Num episódio dramático, o próprio profeta
chegou a desafiar os profetas de Baal para um duelo religioso que terminou com
um massacre de quatrocentos profetas de Baal no monte Carmelo (cf. 1 Re. 18).
Esse episódio é, certamente, uma apresentação teológica dessa luta sem tréguas
que se trava entre os fiéis a Jahwéh e os que abrem o coração às influências
culturais e religiosas de outros povos.
Para além da questão do culto, Elias defende a Lei em todas as suas
vertentes (veja-se, por exemplo, a sua defesa intransigente das leis da
propriedade em 1Re. 21, no célebre episódio da usurpação das vinhas de Nabot):
ele representa os pobres de Israel, na sua luta sem tréguas contra uma
aristocracia e uns comerciantes todo-poderosos que subvertiam a seu bel-prazer
as leis e os mandamentos de Jahwéh.
O ciclo de Elias começa com o anúncio, diante do rei Acab, de uma seca
que irá atingir Israel (cf. 1Re. 17,1). Essa seca é apresentada, não tanto como
um castigo pelos pecados do rei, mas sobretudo como uma forma de mostrar que é
Jahwéh (e não Baal, o deus cananeu das colheitas e da fertilidade, cujo culto
era favorecido por Jezabel, a esposa fenícia de Acab) o verdadeiro senhor da
vida que brota, cada ano, nos campos e nos rebanhos. A implacável seca leva,
contudo, Elias para a cidade de Sarepta (hoje Sarafand), uma pequena cidade da
costa fenícia, a cerca de 15 quilómetros a sul de Sídon. É aí que o nosso texto
nos situa.
MENSAGEM
Elias chega a Sarepta e, correspondendo à indicação de Jahwéh, dirige-se
a uma viúva da cidade. Pede-lhe água para beber e um pedaço de pão para comer.
Nesse tempo dramático de fome e de seca, a mulher apenas tem um punhado de
farinha e um pouco de azeite, que se prepara para comer com o filho, antes de
se deitar à espera da morte; mas prepara o pão para Elias… E, por ação de Deus,
durante todo o tempo que Elias aí permaneceu, nem a farinha se acabou na
panela, nem o azeite faltou na almotolia.
Trata-se de uma história de cariz popular que, contudo, apresenta
interessantes ensinamentos…
1. Com ela, o autor deuteronomista sugere que nessa luta entre Jahwéh e
Baal pela supremacia, o Deus de Israel é o vencedor, pois é Ele que dá o trigo
e o azeite de que o Povo se alimenta; mais, Jahwéh atua até em casa do seu
“adversário” e entre os seus súbditos (Baal era o deus mais popular na
Fenícia).
2. O fato de os beneficiários da ação de Jahwéh serem uma viúva e um
órfão (os exemplos clássicos, na Bíblia, dos pobres, dos débeis, dos
desfavorecidos, dos marginalizados) sugere que Jahwéh tem uma especial
predileção pelos fracos, pelos pobres, por aqueles que nada têm, por aqueles
que necessitam especialmente da proteção, da bondade e da misericórdia de Deus.
3. O pão e o azeite que a mulher reparte com o profeta multiplicam-se
milagrosamente. O fato mostra que, quando alguém é capaz de sair do seu egoísmo
e tem disponibilidade para partilhar os dons recebidos de Deus, esses dons
chegam para todos e ainda sobram. A generosidade, a partilha e a solidariedade
não empobrecem, mas são geradoras de vida e de vida em abundância.
4. A história sugere, ainda, que a graça de Deus é universal e se
destina a todos os povos, sem distinção de raças, de fronteiras ou de crenças
religiosas.
ATUALIZAÇÃO
A nossa história – como tantas outras histórias bíblicas – fala-nos da
predilecção de Deus pelos desfavorecidos, pelos débeis, pelos pobres, pelos
explorados, por aqueles que são colocados à margem da vida. Porquê? Porque Deus
vê a história humana na perspectiva da luta de classes e escolhe um lado em
detrimento do outro? Obviamente, não. No entanto, Deus opta preferencialmente
pelos pobres porque, em primeiro lugar, eles vivem numa situação dramática de
necessidade e precisam especialmente da bondade, da misericórdia e da ajuda de
Deus; e, em segundo lugar, porque os pobres – sem bens materiais que os distraiam
do essencial – estão sempre mais atentos e disponíveis para acolher os apelos,
os desafios e os dons de Deus. Os “ricos”, ao contrário, estão sempre
preocupados com os seus bens, com os seus interesses egoístas, com os seus
projectos e preconceitos e não têm espaço para acolher as propostas que Deus
lhes faz. Isto deve lembrar-nos, permanentemente, a necessidade de sermos
“pobres”, de nos despirmos de tudo aquilo que pode atravancar o nosso coração e
que pode impedir-nos de acolher os desafios e as propostas de Deus.
A mulher de Sarepta tinha, apenas, uma quantidade mínima de alimento,
que queria guardar para si e para o seu filho; mas, desafiada a partilhar, viu
esse escasso alimento ser multiplicado uma infinidade de vezes… A história
convida-nos a não nos fecharmos em esquemas egoístas de acumulação e de lucro,
esquecendo os apelos de Deus à partilha e à solidariedade com os nossos irmãos
necessitados. Quando repartimos, com generosidade e amor, aquilo que Deus
colocou à nossa disposição, não ficamos mais pobres; os bens repartidos
tornam-se fonte de vida e de bênção para nós e para todos aqueles que deles
beneficiam.
•A nossa história prova que só Jahwéh dá ao homem vida em abundância. É
um aviso que não podemos ignorar… Todos os dias somos confrontados com
propostas de felicidade e de vida plena que, quase sempre, nos conduzem por
caminhos de escravidão, de dependência, de desilusão. Não é à volta do
dinheiro, do carro, da casa, do cargo que temos na empresa, dos títulos
acadêmicos que ostentamos, das honras que nos são atribuídas que devemos
construir a nossa existência. Só Deus nos dá a vida plena e verdadeira; todos
os outros “deuses” são elementos acessórios, que não devem afastar-nos do
essencial.
2ª leitura: Hb. 9,24-28 - AMBIENTE
No passado domingo, o autor da Carta aos Hebreus apresentava Cristo como
o sumo-sacerdote por excelência, não na linha do sacerdócio levítico, mas na
linha do sacerdócio de Melquisedec… Hoje, passamos a outra secção (cf. Hb.
8,1-9,28), na qual o autor apresenta Cristo como o sacerdote perfeito e explica
em que consiste essa perfeição e quais as suas consequências para a vida dos
fiéis.
Depois de refletir sobre a imperfeição do culto antigo (cf. Hb. 8,1-6),
a imperfeição da antiga Aliança (cf. Hb. 8,7-13) e a ineficácia dos sacrifícios
oferecidos no Templo de Jerusalém (cf. Hb 9,1-10), o autor passa a explicar aos
cristãos a quem a Carta se destina porque é que o sacrifício oferecido por
Cristo é perfeito (cf. Hb. 9,11-14) e como é que, por esse sacrifício, Cristo
se torna o mediador da Nova Aliança (cf. Hb. 9,15-22). No último parágrafo
desta secção (cf. Hb. 9,23-28), o autor tira, para a vida dos fiéis, as
consequências de tudo o que disse atrás, a propósito do sacerdócio perfeito de
Cristo.
Dirigindo-se a cristãos em dificuldade, que já perderam o entusiasmo
inicial e que, diante das dificuldades, correm o risco de renunciar ao
compromisso assumido no dia do Batismo, o autor da Carta procura animá-los e
revitalizar a sua experiência de fé.
MENSAGEM
No final da sua caminhada terrena com os homens, Cristo, o sacerdote
perfeito, entrou no verdadeiro santuário que é o céu – a própria realidade de
Deus, a comunhão com Deus. Vivendo em comunhão com o Pai, Ele continua a
interceder pelos homens e a dispor o coração do Pai em favor dos homens (v.
24).
Mais: enquanto que o sumo-sacerdote da antiga Aliança tinha que entrar
no santuário todos os anos (o autor refere-se ao Dia da Expiação – o “Yom
Kippur” – o único dia do ano em que o sumo-sacerdote entrava no “Santo dos
Santos” do Templo de Jerusalém, a fim de aspergir o “propiciatório” com o
sangue de um animal imolado e obter, assim, o perdão de Deus para os pecados do
Povo), Cristo entrou uma só vez no santuário perfeito, levando o seu próprio
sangue, e obteve a redenção de toda a humanidade – desde a fundação do mundo,
até ao final dos tempos. A entrega de Cristo, o seu sacrifício consumado no dom
da vida, teve uma eficácia total e universal; com ela, Cristo conseguiu a
destruição da condição pecadora do homem. A humanidade fica, a partir desse
instante, definitivamente salva.
Quando Cristo voltar a manifestar-Se, no final dos tempos (parusia), não
será nem para oferecer um novo sacrifício, nem para condenar o homem; mas será
para oferecer a salvação definitiva àqueles que Ele, com o seu sacrifício,
libertou do pecado.
ATUALIZAÇÃO
A idéia de que Cristo nos libertou do pecado com o seu sacrifício domina
este texto. O que é que o autor da Carta aos Hebreus quer dizer com isto?
Cristo veio a este mundo para libertar o homem das cadeias de egoísmo e de
pecado que o prendiam. Nesse sentido, Cristo pediu uma “metanoia”
(transformação radical) do coração, da mente, dos valores, das atitudes do
homem e propôs, com a sua palavra, com o seu exemplo, com a sua vida, que o
homem passasse a percorrer o caminho do amor, da partilha, do serviço, do
perdão, do dom da vida. A sua entrega na cruz é a lição suprema que Ele quis
deixar-nos – a lição do amor que renuncia ao egoísmo e que se faz dom total aos
irmãos, até às últimas consequências. Mais, a sua luta contra o pecado levou-O
a confrontar-Se com as estruturas políticas, sociais ou religiosas geradoras de
injustiça e de opressão; a sua morte, arquitetada pelos detentores do poder (as
autoridades políticas e religiosas do país), foi, também, a consequência da sua
luta contra as estruturas que oprimiam o homem e que geravam egoísmo e morte.
Ele ofereceu, de facto, a sua vida em sacrifício para nos libertar do pecado. A
sua ressurreição revelou que Deus aceitou o seu sacrifício e que não deixará
mais que o pecado roube ao homem a vida. Aderir a Jesus, ser cristão, é
procurar viver, dia a dia, no seguimento de Jesus e fazer da própria vida um
dom de amor aos irmãos; é, também, lutar contra todas as estruturas que geram
injustiça e pecado. Gastar a vida dessa forma é participar da missão de Jesus,
é colaborar com Ele para eliminar o pecado.
As outras leituras deste domingo falam-nos de desapego, de partilha, de
capacidade para “dar tudo”. Cristo, com a entrega total da sua vida a Deus e
aos homens, realizou plenamente esta dimensão. Ele mostrou-nos, com o seu
sacrifício, qual é o dom perfeito que Deus quer e que espera de cada um dos
seus filhos. Mais do que dinheiro ou outros bens materiais, Deus espera de nós
o dom da nossa vida, ao serviço desse projeto de salvação que Ele tem para os
homens e para o mundo.
A certeza de que Jesus Cristo, o sacerdote perfeito, venceu o pecado e
está agora junto de Deus, intercedendo por nós e esperando o momento de nos
oferecer a vida eterna, deve dar-nos confiança e esperança, ao longo da nossa
caminhada diária pela vida. A Palavra de Deus que hoje nos é oferecida
garante-nos que as nossas fragilidades e debilidades não podem afastar-nos da
comunhão com Deus, da vida eterna; e, no final do nosso caminho, Jesus, o nosso
libertador, lá estará à nossa espera para nos oferecer a vida definitiva.
Evangelho: Mc. 12,38-44 - AMBIENTE
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos.
Naquele tempo, 12 38 disse Jesus: “Guardai-vos dos escribas que gostam de andar com roupas compridas, de ser cumprimentados nas praças públicas
39 e de sentar-se nas primeiras cadeiras nas sinagogas e nos primeiros lugares nos banquetes.
40 Eles devoram os bens das viúvas e dão aparência de longas orações. Estes terão um juízo mais rigoroso”.
41 Jesus sentou-se defronte do cofre de esmola e observava como o povo deitava dinheiro nele; muitos ricos depositavam grandes quantias.
42 Chegando uma pobre viúva, lançou duas pequenas moedas, no valor de apenas um quadrante.
43 E ele chamou os seus discípulos e disse-lhes: “Em verdade vos digo: esta pobre viúva deitou mais do que todos os que lançaram no cofre,
44 porque todos deitaram do que tinham em abundância; esta, porém, pôs, da sua indigência, tudo o que tinha para o seu sustento”.
Palavra da Salvação.
Naquele tempo, 12 38 disse Jesus: “Guardai-vos dos escribas que gostam de andar com roupas compridas, de ser cumprimentados nas praças públicas
39 e de sentar-se nas primeiras cadeiras nas sinagogas e nos primeiros lugares nos banquetes.
40 Eles devoram os bens das viúvas e dão aparência de longas orações. Estes terão um juízo mais rigoroso”.
41 Jesus sentou-se defronte do cofre de esmola e observava como o povo deitava dinheiro nele; muitos ricos depositavam grandes quantias.
42 Chegando uma pobre viúva, lançou duas pequenas moedas, no valor de apenas um quadrante.
43 E ele chamou os seus discípulos e disse-lhes: “Em verdade vos digo: esta pobre viúva deitou mais do que todos os que lançaram no cofre,
44 porque todos deitaram do que tinham em abundância; esta, porém, pôs, da sua indigência, tudo o que tinha para o seu sustento”.
Palavra da Salvação.
O nosso texto situa-nos em Jerusalém, nos dias que antecedem a prisão,
julgamento e morte de Jesus. Por esta altura, adensam-se as polêmicas de Jesus com
os representantes do Judaísmo oficial. A cada passo fica mais claro que o
projeto do Reino (proposto por Jesus) é incompatível com a visão religiosa dos
líderes judaicos. Num ambiente carregado de dramatismo, adivinha-se o
inevitável choque decisivo entre Jesus e a instituição judaica e prepara-se o
cenário da cruz.
Jesus tem consciência de que os líderes da comunidade judaica tinham
transformado a religião de Moisés – com os seus ritos, exigências legais,
proibições e obrigações – numa proposta vazia e estéril. Mal-servida e
manipulada pelos seus líderes religiosos, a comunidade judaica tinha-se
transformado numa figueira seca (cf. Mc. 11,12-14. 20-26), onde Deus não
encontrava os frutos que esperava (o culto verdadeiro e sincero, o amor, a
justiça, a misericórdia). O próprio Templo – o espaço onde se desenrolavam
abundantes ritos cultuais e suntuosas cerimônias litúrgicas – tinha deixado de
ser o lugar do encontro de Deus com a comunidade israelita e tinha-se tornado
um lugar de exploração e de injustiça, “um covil de ladrões” (cf. Mc. 11,15-19)
Jesus tem presente tudo isto quando ensina nos átrios do Templo, rodeado
pelos discípulos. À sua volta desenrola-se esse folclore religioso, feito de
ritos externos, de grandes gestos teatrais, frequentemente vazios de conteúdo.
Os “doutores da Lei” (geralmente, do partido dos fariseus; estudavam e
memorizavam as Escrituras e ensinavam aos seus discípulos as regras – ou
“halakot” – que deviam dirigir cada passo da vida dos fiéis israelitas), com as
suas vestes especiais e os traços característicos de quem se julgava com
direito a todas as deferências, honras e privilégios, são mais um elemento no
quadro desse culto de mentira que Jesus tem diante dos olhos.
Em contraponto, Jesus repara no “átrio das mulheres”, onde uma viúva
deposita, no tesouro do Templo, a sua humilde oferta (dons voluntários eram
feitos com frequência, tendo por finalidade, por exemplo, cumprir votos). As
viúvas, no ambiente palestino de então (sobretudo quando não tinham filhos que
as protegessem e alimentassem), eram o modelo clássico do pobre, do explorado,
do débil.
MENSAGEM
O nosso texto compõe-se, portanto, de duas partes. Na
primeira parte (vs. 38-40), Jesus faz incidir a atenção dos seus
discípulos sobre o grupo dos doutores da Lei. Aparentemente, os doutores da Lei
são figuras intocáveis da comunidade, com uma atitude religiosa irrepreensível.
São estimados, admirados e adulados pelo povo, que os tem em alto conceito.
Contudo, o olhar avaliador de Jesus não se detém nas aparências, mas penetra na
realidade das coisas… Uma análise mais cuidada mostra que esses doutores da Lei
são hipócritas e incoerentes: fazem as coisas, não por convicção, mas para
serem considerados e admirados pelo povo; procuram os primeiros lugares,
preocupam-se em afirmar a sua superioridade diante dos outros, exibem uma
devoção de fachada, fazem do cumprimento dos ritos e regras da Lei um
espetáculo para os outros aplaudirem… A sua vida é, portanto, um imenso
repertório de mentira, de incoerência, de hipocrisia… Como se isso não
bastasse, estes doutores da Lei aproveitam-se, frequentemente, da sua posição e
da confiança que inspiram – como intérpretes autorizados da Lei de Deus – para
explorar os mais pobres (aqueles que são os preferidos de Deus); servem-se da
religião para satisfazer a sua avareza, não têm escrúpulos em aproveitar-se
boa-fé das pessoas para aumentar os seus proveitos; exploram as viúvas, que
lhes confiam a administração dos próprios bens, alinham em esquemas de
corrupção e de exploração…
Os doutores da Lei, com os seus comportamentos hipócritas, mostram que
os ritos externos, os gestos teatrais, o cumprimento das regras religiosamente
correctas não chegam para aproximar os homens de Deus e da santidade de Deus.
Ao olhar para a atitude dos doutores da Lei, os discípulos de Jesus têm de
estar conscientes de que este não é o comportamento que Deus pede àqueles que
querem fazer parte da sua família.
Na segunda parte (vs. 41-44), Jesus convida os discípulos a perceber a
essência do verdadeiro culto, da verdadeira atitude religiosa. Em profundo
contraste com o quadro dos doutores da Lei, Jesus aponta aos discípulos a
figura de uma pobre viúva, que se aproxima de um dos treze recipientes situados
no átrio do Templo, onde se depositavam as ofertas para o tesouro do Templo. A
mulher deposita aí duas simples moedas (dois “leptá”, diz o texto grego. O
“leptá” era uma moeda de cobre, a mais pequena e insignificante das moedas
judaicas); contudo, aquela quantia insignificante era tudo o que a mulher
possuía. Ninguém, exceto Jesus, repara nela ou manifesta admiração pelo seu
gesto. Apenas Jesus – que lê os fatos com os olhos de Deus e sabe ver para além
das aparências – percebe naquelas duas insignificantes moedas oferecidas a
marca de um dom total, de um completo despojamento, de uma entrega radical e
sem medida. O encontro com Deus, o culto que Deus quer passa por gestos simples
e humildes, que podem passar completamente despercebidos, mas que são sinceros,
verdadeiros, e expressam a entrega generosa e o compromisso total. O verdadeiro
crente não é o que cultiva gestos teatrais e espampanantes, que impressionam as
multidões e que são aplaudidos pelos homens; mas é o que aceita despojar-se de
tudo, prescindir dos seus interesses e projetos pessoais, para se entregar completa
e gratuitamente nas mãos de Deus, com humildade, generosidade, total confiança,
amor verdadeiro. É este o exemplo que os discípulos de Jesus devem imitar; é
esse o culto verdadeiro que eles devem prestar a Deus.
ATUALIZAÇÃO
Qual é o verdadeiro culto que Deus espera de nós? Qual deve ser a nossa
resposta à sua oferta de salvação? A forma como Jesus aprecia o gesto daquela
pobre viúva não deixa lugar a qualquer dúvida: Deus não valoriza os gestos
espectaculares, cuidadosamente encenados e preparados, mas que não saem do
coração; Deus não se deixa impressionar por grandes manifestações cultuais, por
grandes e impressionantes manifestações religiosas, cuidadosamente preparadas,
mas hipócritas, vazias e estéreis… O que Deus pede é que sejamos capazes de Lhe
oferecer tudo, que aceitemos despojar-nos das nossas certezas, das nossas
manifestações de orgulho e de vaidade, dos nossos projetos pessoais e
preconceitos, a fim de nos entregarmos confiadamente nas suas mãos, com total
confiança, numa completa doação, numa pobreza humilde e fecunda, num amor sem
limites e sem condições. Esse é o verdadeiro culto, que nos aproxima de Deus e
que nos torna membros da família de Deus. O verdadeiro crente é aquele que não
guarda nada para si, mas que, dia a dia, no silêncio e na simplicidade dos
gestos mais banais, aceita sair do seu egoísmo e da sua auto-suficiência e
colocar a totalidade da sua existência nas mãos de Deus.
Como na primeira leitura, também no Evangelho temos um exemplo de uma
mulher pobre (ainda mais, uma viúva, que pertence à classe dos abandonados, dos
débeis, dos mais pobres de entre os pobres), que é capaz de partilhar o pouco
que tem. Na reflexão bíblica, os pobres, pela sua situação de carência,
debilidade e necessidade, são considerados os preferidos de Deus, aqueles que
são objeto de uma especial proteção e ternura por parte de Deus. Por isso, eles
são olhados com simpatia e até, numa visão simplista e idealizada, são
retratados como pessoas pacíficas, humildes, simples, piedosas, cheias de
“temor de Deus” (isto é, que se colocam diante de Deus com serena confiança, em
total obediência e entrega). Este retrato, naturalmente um pouco estereotipado,
não deixa de ter um sólido fundo de verdade: só quem não vive para as riquezas,
só quem não tem o coração obcecado com a posse dos bens (falamos, naturalmente,
do dinheiro, da conta bancária; mas falamos, igualmente, do orgulho, da
auto-suficiência, da vontade de triunfar a todo o custo, do desejo de poder e
de autoridade, do desejo de ser aplaudido e admirado) é capaz de estar
disponível para acolher os desafios de Deus e para aceitar, com humildade e
simplicidade, os valores do Reino. Esses são os preferidos de Deus. O exemplo
desta mulher garante-nos que só quem é “pobre” – isto é, quem não tem o coração
demasiado cheio de si próprio – é capaz de viver para Deus e de acolher os
desafios e os valores do Reino.
A figura dos doutores da Lei está em total contraste com a figura desta
mulher pobre. Eles têm o coração completamente cheio de si; estão dominados por
sentimentos de egoísmo, de ambição e de vaidade, apostam tudo nos bens
materiais, mesmo que isso implique explorar e roubar as viúvas e os pobres… Na
verdade, no seu coração não há lugar para Deus e para os outros irmãos; só há
lá lugar para os seus interesses mesquinhos e egoístas. Eles são a antítese
daquilo que os discípulos de Jesus devem ser; não apreciam os valores do Reino
e, dessa forma, não podem integrar a comunidade do Reino. Podem ter atitudes
que, na aparência, são religiosamente corretas, ou podem mesmo ser vistos como
autênticos pilares da comunidade do Povo de Deus; mas, na verdade, eles não
fazem parte da família de Deus. Nunca é demais refletirmos sobre este ponto:
quem vive para si e é incapaz de viver para Deus e para os irmãos, com verdade
e generosidade, não pode integrar a família de Jesus, a comunidade do Reino.
•Jesus ensina-nos, neste episódio, a não julgarmos as pessoas pelas
aparências. Muitas vezes é precisamente aquilo que consideramos insignificante,
desprezível, pouco edificante, que é verdadeiramente importante e
significativo. Muitas vezes Deus chega até nós na humildade, na simplicidade,
na debilidade, nos gestos silenciosos e simples de alguém em quem nem
reparamos. Temos de aprender a ir ao fundo das coisas e a olhar para o mundo,
para as situações, para a história e, sobretudo, para os homens e mulheres que
caminham ao nosso lado, com o olhar de Deus. É precisamente isso que Jesus faz.
Uma das críticas que Jesus faz aos doutores da Lei é que eles se servem
da religião, da sua posição de intérpretes oficiais e autorizados da Lei, para
obter honras e privilégios. Trata-se de uma tentação sempre presente, ontem
como hoje… Em nenhum caso a nossa fé, o nosso lugar na comunidade, a
consideração que as pessoas possam ter por nós ou pelas funções que
desempenhamos podem ser utilizadas, de forma abusiva, para “levar a água ao
nosso moinho” e para conseguir privilégios particulares ou honras que não nos
são devidas. Utilizar a religião para fins egoístas é um comércio ilícito e
abominável, e constitui um enorme contra-testemunho para os irmãos que nos
rodeiam.
P. Joaquim Garrido,
P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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