No 34º
domingo do tempo comum, celebramos a solenidade de Jesus Cristo, Rei e Senhor
do Universo. A Palavra de Deus que nos é proposta neste último domingo do ano
litúrgico convida-nos a tomar consciência da realeza de Jesus; deixa claro, no
entanto, que essa realeza não pode ser entendida à maneira dos reis deste
mundo: é uma realeza que se concretiza de acordo com uma lógica própria, a
lógica de Deus. O Evangelho, especialmente, explica qual é a lógica da realeza
de Jesus.
A
primeira leitura anuncia que Deus vai intervir no mundo, a fim de eliminar a
crueza, a ambição, a violência, a opressão que marcam a história dos reinos
humanos. Através de um “filho de homem” que vai aparecer “sobre as nuvens”,
Deus vai devolver à história a sua dimensão de “humanidade”, possibilitando que
os homens sejam livres e vivam na paz e na tranquilidade. Os cristãos verão
nesse “filho de homem” vitorioso um anúncio da realeza de Jesus.
Na
segunda leitura, o autor do livro do Apocalipse apresenta Jesus como o Senhor
do tempo e da História, o princípio e o fim de todas as coisas, o “príncipe dos
reis da terra”, Aquele que há-de vir “por entre as nuvens” cheio de poder, de
glória e de majestade para instaurar um reino definitivo de felicidade, de vida
e de paz. É, precisamente, a interpretação cristã dessa figura de “filho de
homem” de que falava a primeira leitura.
O
Evangelho apresenta-nos, num quadro dramático, Jesus a assumir a sua condição
de rei diante de Pontius Pilatus. A cena revela, contudo, que a realeza
reivindicada por Jesus não assenta em esquemas de ambição, de poder, de
autoridade, de violência, como acontece com os reis da terra. A missão “real”
de Jesus é dar “testemunho da verdade”; e concretiza-se no amor, no serviço, no
perdão, na partilha, no dom da vida.
1ª leitura: Dn. 7,13-14 - Ambiente
Já vimos,
no domingo anterior, que o livro de Daniel aparece na primeira metade do século
II a.C., numa época em que o rei selêucida Antíoco IV Epífanes procurava impor,
pela força, a cultura grega ao Povo de Deus. As imposições de Antíoco IV
Epífanes foram, contudo, mal acolhidas e depararam com uma tenaz resistência,
sobretudo por parte dos sectores mais tradicionais do judaísmo. Uns judeus
optaram abertamente pela insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e
dos seus heróicos seguidores); outros, contudo, optaram por fazer frente à
prepotência dos reis helênicos com a sua palavra e os seus escritos.
O Livro
de Daniel surge neste contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos
valores religiosos dos seus antepassados, interessado em defender a sua
religião, apostado em mostrar aos seus concidadãos que a fidelidade aos valores
tradicionais seria recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os inimigos.
Contando a história de um tal Daniel, um judeu exilado na Babilônia, que soube
manter a sua fé num ambiente adverso de perseguição, o autor do livro de Daniel
pede aos seus concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição e que se
mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais. Neste Livro, o autor
garante-lhes que Deus está do lado do seu Povo e que recompensará a sua
fidelidade à Lei e aos mandamentos.
O texto
que nos é proposto integra a segunda parte do Livro de Daniel (Dan. 7,1-12,13).
Aí o autor, recorrendo à “figura” da “visão”, apresenta-nos uma leitura
profética da história, cuja finalidade é transmitir a esperança aos crentes
perseguidos por causa da sua fé e dos seus valores tradicionais.
Na
primeira das “visões” propostas (Dn. 7,1-28), o autor do Livro apresenta
“quatro grandes animais” (o primeiro “era semelhante a um leão”; o segundo era
“semelhante a um urso”; o terceiro era “parecido com uma pantera”; o quarto era
“horroroso, aterrador e de uma força excepcional” e “tinha dez chifres”, embora
lhe tivesse depois nascido um outro “chifre mais pequeno” que “tinha olhos como
homem e uma boca que proferia palavras arrogantes” - Dn. 7,4-8). Esses “quatro
animais” evocam a sucessão dos impérios humanos… O primeiro seria o império
neo-babilónico, o segundo representaria o império dos medos, o terceiro
referir-se-ia ao império persa e o quarto seria o império grego de Alexandre,
do qual os reis selêucidas eram os herdeiros diretos. Os “dez chifres” desse
quarto animal referem-se a uma série de dez reis que se sucederam uns aos
outros; e o décimo primeiro chifre, mais pequeno do que os outros, seria,
seguramente, Antíoco IV Epífanes, o rei perseguidor do Povo de Deus.
Em
paralelo com o quadro histórico destes impérios - todos eles conotados com o
mal, com o imperialismo, com a opressão, com a perseguição ao Povo de Deus - o
autor coloca, numa outra cena, “um ancião” com os cabelos e as vestes brancos
“como a neve; sentado num trono feito de chamas e servido “por milhares e
dezenas de milhares”, esse “ancião” decretou a morte do décimo primeiro
“chifre”, bem como o fim do poderio dos “quatro animais” (Dn. 7,9-12). É
precisamente aqui que começa a cena descrita pelo texto da nossa primeira
leitura: a entronização do “Filho do Homem” (Dn. 7,13-14).
Mensagem
A “visão”
descrita por Daniel desde 7,1 amplia-se, agora, com o aparecimento de um “filho
de homem”. Ao contrário dos “animais” apresentados nos versículos anteriores
(que vêm do mar - na simbólica judaica, o reino do mal, da desordem, do caos, das
forças que se opõe a Deus e à felicidade do homem), esse “filho de homem”
aparece “sobre as nuvens do céu” (v. 13) e tem, portanto, uma origem
transcendente. Ele vem de Deus e pertence ao mundo de Deus.
O “filho
de homem” recebe de Deus um reino com as dimensões do universo (“todos os povos
e nações O serviram” - v. 14) e um poder que não é limitado pelo tempo, nem
pela finitude que caracteriza os reinos humanos (“o seu poder é eterno, não
passará jamais, e o seu reino não será destruído” - v. 14).
Com o
anúncio do aparecimento “sobre as nuvens” desse “filho de homem”, o autor do
Livro de Daniel anuncia aos crentes perseguidos por Antíoco IV Epífanes a
chegada de um tempo em que Deus vai intervir no mundo, a fim de eliminar a
crueza, a voracidade, a ferocidade, a violência (os reinos dos “quatro
animais”), que oprimem os homens; em contrapartida, Deus vai devolver à
história a sua dimensão de “humanidade”, possibilitando que os homens sejam
livres e vivam na paz e na tranquilidade.
Para a
teologia judaica, esse “filho de homem” que há-de chegar para instaurar o
“reino de Deus” sobre a terra será o Messias (o “ungido”) de Deus. A sua
intervenção irá pôr fim à perseguição dos justos e possibilitar a vitória dos
santos sobre as forças da opressão e da morte. É esta esperança que anima os
corações dos crentes na época imediatamente anterior à chegada de Jesus.
De acordo
com vários textos neo-testamentários, Jesus aplicará esta imagem do “filho de
homem que vem sobre as nuvens” à sua própria pessoa. Ao ser interrogado pelo
sumo-sacerdote Caifás, Jesus assumirá claramente que é “o Messias, o Filho de
Deus bendito”, o “Filho do Homem sentado à direita do Poder”, que virá “sobre
as nuvens do céu” (Mc. 14,61-62). A catequese cristã primitiva retomará esta
imagem para sublinhar a glória de Cristo e o poder soberano de Cristo sobre a
história humana (cf. At. 7,55-56). Para os cristãos, Cristo é, efetivamente,
esse “filho de homem” anunciado em Dn. 7, que irá libertar os santos das garras
do poder opressor e instaurar o reino definitivo da felicidade e da paz.
Atualização
O texto
que nos é proposto como primeira leitura na Solenidade de Nosso Senhor Jesus
Cristo, Rei do Universo, aparece inserido numa reflexão mais ampla sobre a
história e sobre os valores sobre os quais são construídos os impérios humanos.
Os reinos construídos pelos homens baseiam-se, frequentemente, num poder
arrogante e são geradores de exploração, de miséria, de violência. Trata-se de
uma realidade que os modernos impérios perpetuam e que, hoje como ontem, marca
a história humana. A humanidade estará, irremediavelmente, condenada a viver
sob o domínio da injustiça e da opressão? Nunca nos libertaremos desse ciclo de
morte? Deus assiste, indiferente e de braços cruzados, a esta dinâmica de
violência e de violação dos direitos mais elementares dos povos e das nações? O
“profeta” autor do Livro de Daniel acredita que o reino do mal não será eterno
e que Deus intervém na história para destruir essas forças de morte que impedem
os homens de alcançar a liberdade, a paz, a vida plena. Numa época em que os
imperialismos, os fundamentalismos, os colonialismos, a cegueira dos líderes
das nações poderosas multiplicam o sofrimento de tantos homens e mulheres, a
profecia de Daniel convida-nos à esperança e à confiança: Deus não abandona o
seu Povo em marcha pela história e saberá derrubar todos os poderes humanos que
impedem a realização plena do homem.
O anúncio
de um “filho de homem” que virá “sobre as nuvens” para instaurar um reino que
“não será destruído” leva-nos a Jesus. Ele veio ao encontro dos homens para
lhes propor uma nova ordem, em que os pobres, os débeis, os fracos, os
marginalizados, aqueles que não podem fazer ouvir a sua voz nos grandes
areópagos internacionais não mais serão humilhados e espezinhados. Jesus
introduziu na história uma nova lógica, substituindo a lógica do orgulho e do
egoísmo, por uma lógica de amor, de serviço, de doação. É verdade que, mais de
dois mil anos depois do nascimento de Jesus, esse reino ainda não se tornou uma
realidade plena na nossa história; contudo, o reino proposto por Jesus está
presente na vida do mundo, como uma semente a crescer ou como o fermento a
levedar a massa. Compete-nos a nós, discípulos de Jesus, fazer com que esse
reino seja, cada vez mais, uma realidade bem viva, bem presente, bem atuante no
nosso mundo.
2ª leitura: Ap. 1,5-8 - Ambiente
“Apocalipse”
significa “manifestação de algo que está oculto”. O nosso “Livro do Apocalipse”
- do qual é retirado o trecho da nossa segunda leitura - é um livro que se
apresenta como uma “revelação” sobre “as coisas que brevemente devem acontecer”
(Ap. 1,1) e que um tal João, exilado na ilha de Patmos (uma pequena ilha do Mar
Egeu) por causa da sua fé, tem por missão comunicar aos seus irmãos na fé.
Estamos
na fase final do reinado do imperador Domiciano (à volta do ano 95). As
comunidades cristãs da Ásia Menor vivem numa grave crise interna, resultante
das heresias, da falta de entusiasmo, da tibieza, da indiferença, do medo de
dar testemunha da própria fé. Por outro lado, há também uma crise que resulta
de causas externas, sobretudo da violenta perseguição que o imperador ordenou
contra os cristãos: muitos seguidores de Jesus eram condenados e assassinados e
outros, cheios de medo, abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do
império. Na comunidade dizia-se: “Jesus é o Senhor”; mas lá fora, quem mandava
mesmo, como senhor todo-poderoso, era o imperador de Roma.
É neste
contexto de crise, de perseguição, de medo e de martírio que vai ser escrito o
Apocalipse. O objetivo do autor é levar os crentes a revitalizarem o seu
compromisso com Jesus e a não perderem a esperança. Nesse sentido, o autor do
livro começa por fazer um convite à conversão (primeira parte – Ap. 1-3);
passa, depois, a apresentar uma leitura profética da história humana, que dá
conta da vitória final de Deus e dos seus fiéis sobre as forças do mal (segunda
parte - Ap. 4-22). Estes conteúdos são apresentados com o recurso sistemático
ao símbolo (como é típico da literatura apocalíptica), o que torna este livro
estranho e difícil mas, ao mesmo tempo, muito belo e interpelante.
O texto
da segunda leitura de hoje apresenta-nos alguns dos primeiros versículos do
Livro do Apocalipse. Trata-se de uma espécie de introdução litúrgica, onde se
apresenta o diálogo litúrgico entre um leitor e a comunidade cristã reunida
para escutar uma proclamação. Neste diálogo, a comunidade é convidada a aceitar
Cristo como o centro da história humana, a razão de ser da comunidade, a
coordenada fundamental à volta da qual se estrutura e organiza toda a vida
cristã.
Mensagem
O leitor
começa por apresentar Jesus à comunidade reunida para celebrar o seu Senhor,
recorrendo a três títulos cristológicos (v. 5a) que deviam fazer parte da
catequese da comunidade joânica: “testemunha fiel”, “primogênito dos mortos”,
“príncipe dos reis da terra”. Jesus é a “testemunha fiel” porque, com a sua
vida, com as suas palavras, com os seus gestos de serviço, de amor e de doação,
com a sua entrega até à morte, testemunhou, de forma perfeita, o que Deus
queria revelar aos homens e mostrou aos homens o rosto do Deus-amor. Jesus é o
“primogênito dos mortos”, porque foi o primeiro a vencer a morte e o pecado e
demonstrou-nos, com essa vitória, que quem vive nos caminhos de Deus não será
vencido pela morte, mas está destinado à vida eterna. Jesus é o “príncipe dos
reis da terra”, porque inaugurou uma nova forma de ser e um reino novo, de vida
e de felicidade sem fim.
Depois de
escutar esta proclamação, a comunidade, reconhecida, louva o seu Senhor:
“àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um
reino de sacerdotes para Deus seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos
dos séculos. Amém” (vs. 5b-6). Os membros da comunidade cristã têm consciência
de que a entrega de Jesus na cruz é expressão do amor sem medida com que Ele
ama todos os homens… Porque ama, Jesus libertou os homens do egoísmo e do
pecado; porque ama, Jesus convidou os homens a integrar um reino novo, de amor
e de paz; porque ama, Jesus associou os homens à sua missão, tornando-os
sacerdotes que oferecem a Deus o culto das suas próprias vidas. Jesus inseriu
os homens numa dinâmica de vida nova, aproximou-os de Deus, convidou-os a
integrar a família de Deus. A comunidade cristã, consciente desta realidade,
manifesta no culto o seu reconhecimento.
A
“liturgia” prossegue com o leitor a recordar à comunidade reunida que Jesus
há-de vir ao encontro dos seus, cheio de poder e majestade, a fim de inaugurar
uma nova era de vida e de paz sem fim (“entre as nuvens” - v. 7. A imagem é
tirada do Antigo Testamento e está associada às manifestações de Deus. No livro
de Daniel - cf. Dn. 7,13 - o “filho de homem” que aparece sobre as nuvens está
associado à vitória de Deus sobre os reinos e os poderes do mundo). Recorda-se,
assim, aos crentes que a última palavra nunca é dos maus e dos perseguidores,
mas sim de Deus. Por outro lado, todos os homens poderão ver o coração
trespassado de Cristo (v. 7a.b) e tomarão consciência de quanto Ele ama os
homens. A vitória de Cristo concretizar-se- á através do seu amor, feito dom a
todos os homens, sem exceção.
A
comunidade manifesta a sua adesão a Cristo e às verdades proclamadas
respondendo: “sim. Amém” (v. 7c).
O leitor
conclui a sua apresentação de Jesus, definindo-O como o princípio e o fim de
todas as coisas (o “alfa” e o “ômega”, a primeira e a última letra do alfabeto
grego), Aquele que é Senhor da História e que abarca a totalidade do tempo
(“Aquele que é, que era e que há-de vir” – v. 8). Os cristãos que participam
nesta “liturgia” percebem, assim, que podem confiar incondicionalmente nesse
Jesus que é a referência fundamental da história humana; e percebem, também,
que são convidados a fazer de Jesus o centro das suas vidas.
Atualização
A figura
de Jesus que é proposta à comunidade pelo autor do nosso texto é a figura do
Senhor do Tempo e da História, princípio e fim de todas as coisas; é a figura
do “príncipe dos reis da terra”, que há-de vir “por entre as nuvens” cheio de
poder, de glória e de majestade para instaurar um reino definitivo de
felicidade, de vida e de paz. Esta imagem de Jesus apela à confiança e à
esperança: sejam quais forem as circunvoluções e as derrapagens da história
humana, o caminho dos homens não será um caminho sem saída, destinado ao
fracasso; mas será um caminho que desembocará inevitavelmente nesse reino novo
de vida e de paz sem fim que Jesus veio anunciar e propor.
A ação de
Jesus como Senhor da História não se concretizará, contudo, numa lógica de poder,
de autoridade, de força, à imagem dos reis da terra. Na sua catequese, o autor
do livro do Apocalipse sublinha o amor de Jesus, manifestado no dom da vida
para libertar os homens do egoísmo e do pecado, para os inserir numa dinâmica
de vida nova, para os integrar na família de Deus. Jesus, o nosso rei, é um rei
que ama os seus com um amor sem limites e que, por amor, ofereceu a sua vida em
favor da liberdade e da realização plena do homem. Neste dia em que celebramos
a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, somos convidados
(com as comunidades a quem o Livro do Apocalipse se destinava) a agradecer pelo
amor de Jesus que nos libertou do egoísmo e da morte; e somos convidados,
também, a ter a mesma atitude de Jesus, substituindo os esquemas de egoísmo, de
poder e de prepotência, pelo amor que se faz doação e serviço aos homens.
Na
apresentação feita pelo autor do Livro do Apocalipse, os crentes são convidados
a ver Jesus como o centro da história e a fazerem d’Ele a coordenada fundamental
à volta da qual se constrói a existência humana, em geral, e a existência
cristã, em particular. Jesus é, efetivamente, o centro da história humana? Que
impacto tem a sua proposta na construção do nosso mundo? Jesus está,
efetivamente, no centro das nossas comunidades cristãs? Ele é a referência
fundamental para os crentes? Os seus valores, os seus ensinamentos condicionam
a vida dos crentes, a sua forma de ver o mundo, os compromissos que eles
assumem com os outros homens?
Evangelho: 18,33b-37 - Ambiente
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo João.
Naquele tempo: 18 33 Pilatos entrou no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: “És tu o rei dos judeus?”
34 Jesus respondeu: “Dizes isso por ti mesmo, ou foram outros que to disseram de mim?”
35 Disse Pilatos: “Acaso sou eu judeu? A tua nação e os sumos sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste?”
36 Respondeu Jesus: “O meu Reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus súditos certamente teriam pelejado para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu Reino não é deste mundo”.
37 Perguntou-lhe então Pilatos: “És, portanto, rei?” Respondeu Jesus: “Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz”.
Palavra da Salvação.
Naquele tempo: 18 33 Pilatos entrou no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: “És tu o rei dos judeus?”
34 Jesus respondeu: “Dizes isso por ti mesmo, ou foram outros que to disseram de mim?”
35 Disse Pilatos: “Acaso sou eu judeu? A tua nação e os sumos sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste?”
36 Respondeu Jesus: “O meu Reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus súditos certamente teriam pelejado para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu Reino não é deste mundo”.
37 Perguntou-lhe então Pilatos: “És, portanto, rei?” Respondeu Jesus: “Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz”.
Palavra da Salvação.
O
Evangelho da solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo,
apresenta-nos uma cena do processo de Jesus diante de Pontius Pilatus, o
governador romano da Judéia. Para trás havia já ficado o frente a frente de
Jesus com os líderes judaicos, nomeadamente com Anás (sogro de Caifás, o
sumo-sacerdote; Anás, apesar de ter deixado o cargo de sumo-sacerdote,
continuava a ser um personagem muito influente e foi ele, provavelmente, quem
liderou o processo contra Jesus - cf. Jo. 18,12-14.19-24).
Pontius Pilatus,
o interlocutor romano de Jesus, governou a Judéia e a Samaria entre os anos 26
e 36. As informações de Flávio Josefo e de Fílon apresentam-no como um
governante duro e violento, obstinado e áspero, culpado de ordenar execuções de
opositores sem um processo legal. As queixas de excessiva crueldade
apresentadas contra ele pelos samaritanos no ano 35 levaram Vitélio, o legado
romano na Síria, a tomar posição e a enviá-lo a Roma para se explicar diante do
imperador. Pontius Pilatus foi deposto do seu cargo de governador da Judéia
logo a seguir.
Curiosamente,
o autor do Quarto Evangelho descreve Pontius Pilatus como um homem fraco,
indeciso e volúvel, uma espécie de marionete habilmente manobrada pelos líderes
judaicos. Esta apresentação - que contradiz os dados deixados pelos
historiadores da época - não deve ter grandes bases históricas: deve ser,
apenas, uma tentativa de livrar os romanos de qualquer culpa no processo de
Jesus. Na época em que o autor do Quarto Evangelho escreve (por volta do ano
100), não era conveniente para os cristãos acusar Roma, afirmando a sua
responsabilidade no processo que levou Jesus à morte. Assim, os escritores
cristãos da época preferiram branquear o papel do poder imperial e, por outro
lado, fazer recair sobre as autoridades judaicas toda a culpa pela condenação
de Jesus.
Mensagem
O
interrogatório de Jesus começa com uma pergunta direta, posta por Pontius
Pilatus (vers. 33b): «Tu és o Rei dos judeus?» Este início de interrogatório
revela qual era a acusação apresentada pelas autoridades judaicas contra Jesus:
Ele tinha pretensões messiânicas; pretendia restaurar o reino ideal de David e
libertar Israel dos opressores. Esta linha de acusação vê em Jesus um agitador
político empenhado em mudar o mundo pela força, que fundamenta as suas
pretensões e a sua ação no poder das armas e na autoridade dos exércitos. Esta
acusação tem fundamento? Jesus aceita-a?
A
resposta de Jesus situa as coisas na perspectiva correta. Ele assume-se como o
messias que Israel esperava e confirma, claramente, a sua qualidade de rei; no
entanto, descarta qualquer parecença com esses reis que Pontius Pilatus conhece
(v. 36). Os reis deste mundo apóiam na força das armas e impõem aos outros
homens o seu domínio e a sua autoridade; a sua realeza baseia-se na prepotência
e na ambição e gera opressão, injustiça e sofrimento… Jesus, em contrapartida,
é um prisioneiro indefeso, traído pelos amigos, ridicularizado pelos líderes
judaicos, abandonado pelo povo; não se impõe pela força, mas veio ao encontro
dos homens para os servir; não cultiva os próprios interesses, mas obedece em
tudo à vontade de Deus, seu Pai; não está interessado em afirmar o seu poder,
mas em amar os homens até ao dom da própria vida… A sua realeza é de uma outra
ordem, da ordem de Deus. É uma realeza que toca os corações e que, em vez de
produzir opressão e morte, produz vida e liberdade. Jesus é rei e messias, mas
não vai impor a ninguém o seu reinado; vai apenas propor aos homens um mundo
novo, assente numa lógica de amor, de doação, de entrega, de serviço.
A
declaração de Jesus causa estranheza a Pontius Pilatus. Ele não consegue
entender que um rei renuncie ao poder e à força e fundamente a sua realeza no
amor e na doação da própria vida. A expressão posta na boca de Pontius Pilatus
«então, Tu és Rei» (v. 37a) parece uma “deixa” de alguém para quem as
declarações do seu interlocutor não são claras e que conserva a porta aberta a
ulteriores explicações… Na sequência, Jesus confirma a sua realeza e define o
sentido e o conteúdo do seu reinado.
A realeza
de que Jesus Se considera investido por Deus consiste em «dar testemunho
da
verdade» (v. 37b). Para o autor do Quarto Evangelho, a “verdade” é a realidade
de Deus. Essa “verdade” manifesta-se nos gestos de Jesus, nas suas palavras,
nas suas atitudes e, de forma especial, no seu amor vivido até ao extremo do
dom da vida. A “verdade” (isto é, a realidade de Deus) é o amor incondicional e
sem medida que Deus derrama sobre o homem, a fim de o fazer chegar à vida
verdadeira e definitiva. Essa “verdade” opõe-se à “mentira”, que é o egoísmo, o
pecado, a opressão, a injustiça, tudo aquilo que desfeia a vida do homem e o
impede de alcançar a vida plena. A “realeza” de Jesus concretiza-se, por um
lado, na luta contra o egoísmo e o pecado que escravizam o homem e que o
impedem de ser livre e feliz; por outro lado, a realeza de Jesus consuma-se na
proposição de uma vida feita amor e entrega a Deus e aos irmãos. Esta meta não
se alcança através de uma lógica de poder e de força (que só multiplicam as
cadeia de mentira, de injustiça, de violência); mas alcança-se através do amor,
da partilha, do serviço simples e humilde em favor dos irmãos. É esse “reino”
que Jesus veio propor; é a esse “reino” que Ele preside.
A
proposta de Jesus provoca uma resposta livre do homem. Quem escuta a voz de
Jesus adere ao seu projeto e se compromete a segui-l’O, renuncia ao egoísmo e
ao pecado e faz da sua vida um dom de amor a Deus e aos irmãos (v. 37c). Passa,
então, a integrar a comunidade do “Reino de Deus”.
Atualização
As
declarações de Jesus diante de Pontius Pilatus não deixam lugar a dúvidas: Ele
é “rei” e recebeu de Deus, como diz a primeira leitura, “o poder, a honra e a
realeza” sobre todos os povos da terra. Ao celebrarmos a Solenidade de Nosso
Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, somos convidados, antes de mais, a
descobrir e interiorizar esta realidade: Jesus, o nosso rei, é princípio e fim
da história humana, está presente em cada passo da caminhada dos homens e
conduz a humanidade ao encontro da verdadeira vida. Os inícios do séc. XXI
estão marcados por uma profunda crise de liderança a nível mundial. Os grandes
líderes das nações são, frequentemente, homens com uma visão muito limitada do
mundo, que não se preocupam com o bem da humanidade e que conduzem as suas
políticas de acordo com lógicas de ambição pessoal ou de interesses
particulares. Sentimo-nos, por vezes, perdidos e impotentes, arrastados para um
beco sem saída por líderes medíocres, prepotentes e incapazes… Esta constatação
não deve, no entanto, lançar-nos no desânimo: nós sabemos que Cristo é o nosso
rei, que Ele preside à história e que, apesar das falhas dos homens, continua a
caminhar conosco e a apontar-nos os caminhos da salvação e da vida.
No
entanto, a realeza de Jesus não tem nada a ver com a lógica de realeza a que o
mundo está habituado. Jesus, o nosso rei, apresenta-Se aos homens sem qualquer
ambição de poder ou de riqueza, sem o apoio dos grupos de pressão que fazem os
valores e a moda, sem qualquer compromisso com as multinacionais da exploração
e do lucro. Diante dos homens, Ele apresenta-se só, indefeso, prisioneiro,
armado apenas com a força do amor e da verdade. Não impõe nada; só propõe aos
homens que acolham no seu coração uma lógica de amor, de serviço, de obediência
a Deus e aos seus projetos, de dom da vida, de solidariedade com os pobres e
marginalizados, de perdão e tolerância. É com estas “armas” que Ele vai
combater o egoísmo, a auto-suficiência, a injustiça, a exploração, tudo o que
gera sofrimento e morte. É uma lógica desconcertante e incompreensível, à luz
dos critérios que o mundo avaliza e enaltece. A lógica de Jesus fará sentido? O
mundo novo, de vida e de felicidade plena para todos os homens nascerá de uma
lógica de força e de imposição, ou de uma lógica de amor, de serviço e de dom
da vida?
Nós, os
que aderimos a Jesus e optamos por integrar a comunidade do Reino de Deus,
temos de dar testemunho da lógica de Jesus. Mesmo contra a corrente, a nossa
vida, as nossas opções, a forma de nos relacionarmos com aqueles com quem todos
os dias nos cruzamos, devem ser marcados por uma contínua atitude de serviço
humilde, de dom gratuito, de respeito, de partilha, de amor. Como Jesus, também
nós temos a missão de lutar – não com a força do ódio e das armas, mas com a
força do amor – contra todas as formas de exploração, de injustiça, de
alienação e de morte… O reconhecimento da realeza de Cristo convida-nos a
colaborar na construção de um mundo novo, do Reino de Deus.
A forma
simples e despretensiosa como Jesus, o nosso Rei, Se apresenta, convida-nos a
repensar certas atitudes, certas formas de organização e certas estruturas que
criamos… A comunidade de Jesus (a Igreja) não pode estruturar-se e organizar-se
com os mesmos critérios dos reinos da terra… Deve interessar-se mais por dar um
testemunho de amor e de solidariedade para com os pobres e marginalizados do
que em controlar as autoridades políticas e os chefes das nações; deve
preocupar-se mais com o serviço simples e humilde aos homens do que com os
títulos, as honras, os privilégios; deve apostar mais na partilha e no dom da
vida do que na posse de bens materiais ou na eficiência das estruturas. Se a
Igreja não testemunhar, no meio dos homens, essa lógica de realeza que Jesus
apresentou diante de Pontius Pilatus, está a ser gravemente infiel à sua
missão.
P. Joaquim Garrido,
P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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