Na liturgia do 5º domingo comum ecoa, com insistência, a preocupação de
Deus no sentido de apontar ao homem o caminho da salvação e da vida definitiva.
A Palavra de Deus garante-nos que a salvação passa por uma vida vivida na
escuta atenta dos projetos de Deus e na doação total aos irmãos.
Na primeira leitura, Jahwéh apresenta a Israel a proposta de uma nova
Aliança. Essa Aliança implica que Deus mude o coração do Povo, pois só com um
coração transformado o homem será capaz de pensar, de decidir e de agir de
acordo com as propostas de Deus.
A segunda leitura apresenta-nos Jesus Cristo, o sumo-sacerdote da nova Aliança, que Se solidariza com os homens e lhes aponta o caminho da salvação. Esse caminho (e que é o mesmo caminho que Jesus seguiu) passa por viver no diálogo com Deus, na descoberta dos seus desafios e propostas, na obediência radical aos seus projetos.
A segunda leitura apresenta-nos Jesus Cristo, o sumo-sacerdote da nova Aliança, que Se solidariza com os homens e lhes aponta o caminho da salvação. Esse caminho (e que é o mesmo caminho que Jesus seguiu) passa por viver no diálogo com Deus, na descoberta dos seus desafios e propostas, na obediência radical aos seus projetos.
O Evangelho convida-nos a olhar para Jesus, a aprender com Ele, a
segui-l’O no caminho do amor radical, do dom da vida, da entrega total a Deus e
aos irmãos. O caminho da cruz parece, aos olhos do mundo, um caminho de
fracasso e de morte; mas é desse caminho de amor e de doação que brota a vida
verdadeira e eterna que Deus nos quer oferecer.
1ª leitura – Jr. 31,31-34 – AMBIENTE
Jeremias, o profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a
sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém
pelos Babilônios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é, em geral, o
reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).
A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de
Josias. Este rei – preocupado em defender a identidade política e religiosa do
Povo de Deus – leva a cabo uma impressionante reforma religiosa, destinada a
banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, neste
período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Jahwéh e à
aliança.
No entanto, em 609 a.C., Josias é morto, em combate contra os egípcios.
Joaquim sucede-lhe no trono. A segunda fase da atividade profética de Jeremias
abrange o tempo de reinado de Joaquim (609-597 a.C.).
O reinado de Joaquim é um tempo de desgraça e de pecado para o Povo, e
de incompreensão e sofrimento para Jeremias. Nesta fase, o profeta aparece a
criticar as injustiças sociais (às vezes fomentadas pelo próprio rei) e a
infidelidade religiosa (traduzida, sobretudo, na busca das alianças políticas:
procurar a ajuda dos egípcios significava não confiar em Deus e, em
contrapartida, colocar a esperança do Povo em exércitos estrangeiros). Jeremias
está convencido de que Judá já ultrapassou todas as medidas e que está iminente
uma invasão babilônica que castigará os pecados do Povo de Deus. É, sobretudo,
isso que ele diz aos habitantes de Jerusalém… As previsões funestas de Jeremias
concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a
Babilônia uma parte da população de Jerusalém.
No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.). A terceira fase
da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este
reinado.
Após alguns anos de calma submissão à Babilônia, Sedecias volta a
experimentar a velha política das alianças com o Egito. Jeremias não está de
acordo que se confie em exércitos estrangeiros mais do que em Jahwéh… Mas, nem
o rei, nem os notáveis prestam qualquer atenção à opinião do profeta.
Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um
exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilônios retiram-se. Nesse
momento de euforia nacional, Jeremias aparece a anunciar o recomeço do cerco e
a destruição de Jerusalém (cf. Jr. 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é
encarcerado (cf. Jr. 37,11-16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jr.
38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor
apossa-se, de fato, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população
para a Babilônia (586 a.C.).
É impossível dizer com segurança o contexto em que apareceu essa
mensagem que o texto que nos é hoje proposto apresenta.
Para alguns comentadores, trata-se de um oráculo que poderia situar-se
na primeira fase da atividade profética de Jeremias (reinado de Josias) e
dirigir-se-ia aos israelitas do Reino do Norte. Seria uma mensagem de
esperança, destinada a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido
a independência e estava sob o domínio assírio.
Para outros, contudo, este texto será da época de Sedecias, algures
entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilônia (597-586
a.C.). É a época em que Jeremias descobre perspectivas teológicas novas e
começa a reflectir sobre um tempo novo que Deus irá oferecer ao seu Povo: após
a catástrofe, será possível recomeçar tudo, pois Deus tem em mente fazer uma
nova Aliança com Judá.
MENSAGEM
Deus está disposto a firmar uma nova Aliança com o seu Povo. Essa
Aliança será, contudo, diferente da Aliança do Sinai.
A Aliança do Sinai foi uma Aliança externa, gravada em tábuas de pedra e
que o Povo nunca interiorizou devidamente. Apresentava leis que o Povo devia
cumprir; mas essas leis eram sempre leis externas, que não atingiram o coração
do Povo nem mudaram substancialmente a sua maneira de ser. Por isso, o Povo de
Deus continuou a trilhar caminhos de infidelidade a Deus, de injustiça, de
auto-suficiência, de pecado. O Povo de Deus aderiu à Aliança do Sinai, mas mais
com a boca do que com o coração. Ora, sem uma adesão efetiva, uma adesão do
coração, era impossível manter a fidelidade aos mandamentos e exigências dessa
Aliança.
Constatada a falência da antiga Aliança, Deus vai seguir outro caminho e
propor uma nova Aliança que se fundamente noutras bases… Em concreto, Deus vai
intervir no sentido de gravar as suas leis e preceitos no coração, no íntimo de
cada membro do Povo. Na antropologia semita, o coração é, além da sede dos
sentimentos, a sede dos pensamentos, dos projetos, das decisões e das ações do
homem; é o centro do ser, onde o homem dialoga consigo mesmo, toma as suas
decisões, assume as suas responsabilidades. Portanto, a iniciativa de Deus irá
possibilitar que as exigências da Aliança sejam interiorizadas por cada membro
do Povo de Deus e que estejam presentes nessa sede onde nascem os pensamentos,
onde se definem os valores, onde se decidem as ações. Com um “coração” assim
transformado (isto é, que pensa, que decide e que age segundo os esquemas e a
lógica de Deus), cada crente poderá viver na fidelidade à Aliança, na
obediência aos mandamentos, no respeito pelas leis, no amor a Jahwéh. Então,
Jahwéh será, efetivamente, o Deus de Israel; Israel será, verdadeiramente, o
Povo que vive de acordo com as propostas de Deus e que testemunha Deus no meio
do mundo.
Com esse novo tipo de relação, Jahwéh não será mais um “desconhecido”
para o seu Povo. Entre Deus e Israel será possível o estabelecimento de uma
relação pessoal de proximidade, de intimidade, de familiaridade. A comunhão com
Jahwéh não será uma lição dificilmente aprendida, mas algo de inato e natural,
que brota de um coração em permanente diálogo com Deus.
Na última frase do nosso texto, Deus anuncia o perdão para as faltas do
seu Povo: um perdão total e sem reservas é o primeiro resultado desta nova
relação que se vai estabelecer entre Deus e o seu Povo. Também nisto se
manifesta o “amor eterno” de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• A primeira leitura do 5º domingo da Quaresma dá-nos conta da eterna
preocupação de Deus com a realização plena do homem. Nessa linha, Jahwéh
propõe-se intervir no sentido de mudar o coração do homem, tornando-o apto para
fazer as escolhas mais corretas. Só com um coração transformado, o homem será
capaz de acolher as propostas de Deus e de conduzir a sua vida de acordo com
esses valores que lhe asseguram a harmonia, a paz, a verdadeira felicidade. Ao
homem pede-se, naturalmente, que acolha o dom de Deus, que se deixe transformar
por Deus, que aceite o desafio de Deus para integrar a comunidade da nova
Aliança. Integrar a comunidade da nova Aliança implica, no entanto, renunciar a
caminhos de fechamento, de auto-suficiência, de recusa, de indiferença face aos
desafios e às propostas de Deus. Estamos dispostos, neste tempo de Quaresma, a
acolher o dom de Deus e a deixar-nos transformar por Ele?
• Fazer parte da comunidade da nova Aliança não tem a ver com o
cumprimento de ritos ou de obrigações externas; mas tem a ver com a adesão
incondicional do coração às propostas de Deus. O que nos faz membros efetivos
da comunidade da nova Aliança não é o ter o nome inscrito no livro de registros
de batismos da nossa paróquia, ou o ter celebrado o casamento na igreja, ou o
ir à missa ao domingo… Mas é o estar atento aos projetos de Deus, interiorizar
as propostas de Deus, conduzir a vida de acordo com os valores de Deus,
testemunhar a vida de Deus nos gestos simples do dia a dia, viver em comunhão
com Deus.
• O projeto de uma nova Aliança entre Deus e o seu Povo concretiza-se em
Jesus: Ele veio ao mundo para renovar os corações dos homens, oferecendo-lhes a
vida de Deus. As outras duas leituras que nos são propostas neste 5º domingo da
Quaresma vão dizer-nos como é que Jesus concretizou este projeto.
2ª leitura – Hb. 5,7-9 - AMBIENTE
A Carta aos Hebreus é um escrito (um sermão) de autor anônimo e cujos
destinatários, em concreto, desconhecemos (o título “aos hebreus” provém das
múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios” que a
obra apresenta). É possível que se dirija a uma comunidade cristã constituída
majoritariamente por cristãos vindos do judaísmo; mas nem isso é totalmente
seguro, uma vez que o Antigo Testamento era um patrimônio comum, assumido por
todos os cristãos – quer os vindos do judaísmo, quer os vindos do paganismo.
Trata-se, em qualquer caso, de cristãos em situação difícil, expostos a
perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé… São, também, cristãos que
facilmente se deixam vencer pelo desalento, que perderam o fervor inicial e que
cedem às seduções de doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos
apóstolos… O objetivo do autor é estimular a vivência do compromisso cristão e
levar os crentes a crescer na fé. Para isso, ele expõe o mistério de Cristo
(apresentado, sobretudo, como “o sacerdote” da Nova Aliança) e recorda a fé
tradicional da Igreja.
O texto que nos é hoje proposto é parte de uma longa reflexão (cf. Hb.
3,1-9,28) sobre o sacerdócio de Cristo. Em concreto, a perícope de Hb. 5,1-10
desenvolve o tema do sacerdócio de Cristo por comparação com o sumo-sacerdote
do Antigo Testamento, apresentando uma série de aspectos semelhantes e opostos.
Na perspectiva do autor deste sermão, o sumo-sacerdote deve ser um homem que,
pela sua humanidade e fragilidade, é capaz de entender os pecados dos seus irmãos
(“pode compadecer-se dos ignorantes e dos que erram, pois também ele está
cercado de fraqueza” – Hb. 5,2); ele oferece sacrifícios, “tanto pelos seus
pecados, como pelos do povo”, a fim de refazer a comunhão entre Deus e o homem
(Hb. 5,3); e é chamado por Deus a desempenhar esta missão, tal como aconteceu
com o sacerdote Aarão (Hb. 5,4).
Estes três elementos estão bem patentes em Cristo, o sumo-sacerdote da
nova Aliança.
MENSAGEM
Cristo, apesar de Filho de Deus, foi um homem que viveu entre os homens
e que experimentou a fragilidade e a debilidade dos homens. Sofreu, chorou,
sentiu angústia e medo diante da morte, como qualquer homem (o autor alude,
provavelmente, à oração de Jesus no Monte das Oliveiras, pouco antes de ser
preso – cf. Mc. 14,36). Por isso, Jesus é o sumo-sacerdote, capaz de
compreender as fraquezas e as fragilidades dos homens. A partir dessa
compreensão, Ele será também capaz de dar-lhes remédio.
O sacerdócio de Jesus realizou-se num permanente diálogo com o Pai. Ele
procurou sempre, através de uma oração intensa, discernir e cumprir a vontade
do Pai. Mesmo nos momentos mais duros e difíceis da sua existência terrena, Ele
escutou o Pai, manteve a sua adesão incondicional ao Pai, manifestou a sua
total disponibilidade para cumprir o projeto de salvação que o Pai queria,
através d’Ele, oferecer aos homens. Desta forma, Jesus, na oração e pela oração
que acompanha a sua vida inteira (e especialmente os momentos dramáticos da
paixão e morte), converteu toda a sua existência numa oferenda ao Pai, num
“sacrifício” de doação ao Pai. Ao fazer da sua vida um dom, uma entrega total,
um “sacrifício”, Ele realizou o projeto de refazer a comunhão entre Deus e os
homens. Com a sua obediência, Ele ensinou os homens a viver em comunhão total
com Deus, a cumprir os projetos de Deus e a amar os irmãos até ao dom total da
vida; com a sua obediência, Ele eliminou o egoísmo e o pecado que afastavam os
homens de Deus. Sendo, pela sua comunhão total com o Pai e com os homens, o
modelo de Homem Novo, Ele tornou-se, para todos aqueles que escutaram a sua
mensagem e que O seguiram, “fonte de salvação eterna” (v. 9).
Jesus Cristo é, portanto, o sumo-sacerdote da nova Aliança. Ele conhece
e entende as fragilidades dos homens e está apto a oferecer-lhes a ajuda
necessária para que possam alcançar a salvação. Cumprindo integralmente o
projeto do Pai, Jesus mostra aos homens que o caminho da salvação está na
comunhão com Deus, na obediência radical aos projetos de Deus e no dom da vida
aos irmãos. Jesus é, assim, um sumo-sacerdote que proporciona eficazmente aos
homens a salvação, levando-os ao encontro de Deus e da vida plena.
ATUALIZAÇÃO
• Antes de mais, o nosso texto recorda-nos a solidariedade de Jesus com
os homens. Ele veio ao nosso encontro, assumiu a nossa humanidade, conheceu as
nossas fragilidades, partilhou as nossas dores, medos e incertezas. Ele
compreendeu os homens e as suas fraquezas, sem nunca os acusar nem condenar,
sem se demitir da sua condição de irmão dos homens. Desta forma, tornou-Se
capaz de Se compadecer da nossa miséria e de nos trazer a ajuda necessária para
que pudéssemos superar a nossa situação de debilidade. A Palavra de Deus que
hoje nos é proposta garante-nos a solidariedade de Cristo em todos os instantes
da nossa existência. Não estamos sozinhos, frente a frente com a nossa
fragilidade e debilidade; Cristo entende-nos, caminha à nossa frente, pega-nos
ao colo quando não conseguimos caminhar. Sobretudo Cristo, o irmão que veio ao
nosso encontro e que caminha conosco, aponta-nos o caminho para essa vida plena
e definitiva que Deus nos quer oferecer.
• Toda a vida de Cristo cumpriu-se num intenso diálogo e numa total
comunhão com o Pai. Através desse diálogo, Ele pôde discernir a vontade do Pai
e conhecer os seus projetos. Pela oração, Ele encontrou forças para obedecer,
para dizer “sim” e para concretizar os planos do Pai, mesmo nos momentos mais
dramáticos da sua existência terrena. O caminho da doação total ao Pai não é um
caminho impossível para os homens (Jesus, tornado homem como nós, demonstrou-o);
mas é um caminho que os homens podem percorrer, apesar das suas fragilidades. É
esse caminho que Jesus, o homem como nós, nos aponta. Temos espaço, na nossa
vida, para dialogar com o Pai, para perceber os seus projetos para nós e para o
mundo, para escutar os desafios que Deus nos faz? A nossa vida cumpre-se na
indiferença para com Deus e para com os seus projetos, ou numa procura sincera
e empenhada da vontade de Deus?
Evangelho – Jo 12,20-33 - AMBIENTE
Naquele tempo, 20havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa. 21Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: “Senhor, gostaríamos de ver Jesus”.
22Filipe combinou com André, e os dois foram falar com Jesus. 23Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. 24Em
verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não
morre, ele continua só um grão de trigo; mas, se morre, então produz
muito fruto. 25Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna. 26Se alguém me quer seguir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará. 27Agora sinto-me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora?’ Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. 28Pai, glorifica o teu nome!”
Então veio uma voz do céu: “Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!”
29A multidão, que aí estava e ouviu, dizia que tinha sido um trovão. Outros afirmavam: “Foi um anjo que falou com ele”.
30Jesus respondeu e disse: “Essa voz que ouvistes não foi por causa de mim, mas por causa de vós. 31É agora o julgamento deste mundo. Agora o chefe deste mundo vai ser expulso, 32e eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a mim”. 33Jesus falava assim para indicar de que morte iria morrer”.
O Evangelho que a liturgia do 5º domingo da Quaresma nos propõe
situa-nos em Jerusalém, aparentemente no próprio dia da entrada solene de Jesus
na cidade santa (cf. Jo 12,12-19). As multidões “que tinham chegado para a
Festa” haviam aclamado Jesus como o rei/messias, encenando um rito de entronização
e aclamando Jesus como “o que vem em nome do Senhor, o rei de Israel” (Jo
12,12-13). De acordo com João, as pessoas colheram ramos de palma e saíram ao
encontro de Jesus um gesto que está ligado, no folclore religioso judaico, à
Festa das Cabanas, a festa que celebrava o tempo em que os israelitas viveram
em tendas, ao longo da caminhada pelo deserto, após a libertação do Egito. O
autor do Quarto Evangelho sugere, assim, que está a chegar ao fim o processo de
libertação definitiva do Povo de Deus. Apresenta-se, assim, uma chave de
leitura para entender a morte próxima de Jesus.
No quadro entram “alguns gregos” que “tinham subido a Jerusalém para
adorar” e que queriam ver Jesus. Aqui, “grego” significa, provavelmente, “não
judeu”. Podem ser prosélitos (estrangeiros convertidos ao judaísmo) ou simples
simpatizantes do judaísmo.
Os “gregos” dirigem-se a Filipe, natural de Betsaida, uma cidade situada
na tetrarquia de Herodes Filipe, já fora do território judeu propriamente dito.
Curiosamente, “Betsaida” significa “lugar de pesca” (o que pode aludir à missão
dos discípulos – ser “pescadores de homens” – Mc 1,17). Filipe vai falar com
André a propósito do pedido e os dois apresentam o caso a Jesus.
A história dos “gregos” que querem “ver Jesus” vai servir de pretexto a
João para uma belíssima catequese sobre o que significa “ver Jesus”.
MENSAGEM
Os “gregos” vieram a Jerusalém “adorar” a Deus no Templo; mas quiseram
encontrar-se com Jesus, conhecer Jesus e o seu projeto, tomar contacto com a
salvação que Ele veio oferecer (queriam “ver Jesus” – v. 21). Com isto, o autor
do Quarto Evangelho sugere que o Templo e o culto antigo já não são mais os
lugares onde o homem encontra Deus e a salvação; agora, quem estiver
interessado em encontrar a verdadeira libertação deve dirigir-se ao próprio
Jesus. Por outro lado, a salvação/libertação que Jesus veio trazer tem um
alcance universal e destina-se a todos os homens – mesmo àqueles que vivem fora
das fronteiras físicas de Israel (“gregos”).
Estes “gregos” não se dirigem diretamente a Jesus, mas aos discípulos.
Haverá aqui, talvez, um aceno à responsabilidade missionária da comunidade de
Jesus, encarregada da missão de levar Jesus a todos os povos da terra. O fato
de Filipe falar primeiro com André e só depois os dois irem contar o que se
passa a Jesus reflete a dificuldade com que as primeiras comunidades cristãs
deram o passo para a evangelização dos pagãos. João quer, provavelmente,
sugerir que a decisão de integrar os pagãos na comunidade de Jesus não é uma
decisão individual, mas uma decisão que a comunidade tomou depois de haver
consultado o Senhor.
Quem vai ao encontro de Jesus, o que é que vai encontrar? Um messias
aclamado pelas multidões, preocupado em gerir a carreira e em manter a todo o
custo o seu clube de fãs, que faz prodígios de equilíbrio para não desagradar
às autoridades constituídas e não arruinar as suas hipóteses de êxito?
No horizonte próximo de Jesus, está apenas a cruz (a “hora”). Ele está
consciente de que vai sofrer uma morte violenta e maldita, e que todos o vão
abandonar como um fracassado. Paradoxalmente, Ele está consciente, também, que
nessa cruz se manifestará a “glória” do Filho do Homem.
A morte de Jesus não é um momento isolado, mas o culminar de um processo
de doação total de Si mesmo, que se iniciou quando “o Verbo Se fez carne e
montou a sua tenda no meio dos homens” (Jo 1,14); é o último ato de uma vida de
entrega total aos projetos de Deus, feita amor até ao extremo. Durante toda a
sua existência terrena, Jesus procurou, em cada palavra e em cada gesto, tornar
o homem livre de todas as opressões, dotá-lo de dignidade, dar-lhe vida em
plenitude. Dessa forma, despoletou o ódio do sistema opressor, interessado em
manter o homem escravo. Sem se assustar com a perspectiva da morte, cumprindo
até ao fim o projeto libertador de Deus em favor do homem, Jesus levou avante a
sua luta pela libertação da humanidade. A sua morte é a consequência do seu
confronto com as forças da morte que dominavam o mundo.
Por outro lado, ao dar a vida por amor, Jesus deixa aos seus discípulos
a última e a suprema lição, a lição final que eles devem aprender. Com a morte
de Jesus na cruz, os discípulos aprendem o amor até ao extremo, o dom total da
vida, a entrega radical aos projetos de Deus e à libertação dos irmãos.
O que é que nasce deste “dom” de Jesus? Nasce uma nova humanidade. É uma
humanidade que Jesus libertou da opressão, da injustiça, dos mecanismos que
geram sofrimento e medo… E é uma humanidade que venceu o egoísmo e que aprendeu
que a vida é para ser dada, sem limites, por amor. Não há dúvida que o dom da
vida dá abundantes frutos de vida. Na cruz de Jesus manifesta-se, portanto, o
projeto libertador de Deus para os homens.
Quem quiser “conhecer” Jesus deve olhar para esse Homem que põe
totalmente a sua vida ao serviço dos projetos de Deus e que morre na cruz para
ensinar aos homens o amor sem limites. Deve aprender essa verdade que, para
Jesus, é evidente: não se pode gerar vida (para si próprio e para os outros),
sem entregar a própria vida. A vida nasce do amor, do amor total, do amor que
se dá até às últimas consequências. Só o amor como dom total é fecundo e
gerador de vida (“em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo caído na
terra não morrer, permanece só; se morrer, produz muito fruto” – v. 24). Quem
se ama a si mesmo e se fecha num egoísmo estéril, quem se preocupa apenas com
defender os seus interesses e perspectivas, perde a oportunidade de chegar à
vida verdadeira, à salvação. O apego egoísta à própria vida levará ao medo de
agir, à dificuldade em comprometer-se, ao silêncio perante a injustiça – em
suma, a uma vida de medo e de opressão, que é infecunda e não vale a pena ser
vivida. Ao contrário, quem é totalmente livre do medo, quem se esquece dos seus
próprios interesses e seguranças e se compromete com a luta pela justiça, pelos
direitos, pela dignidade e liberdade do homem, quem ama tanto os outros que
entrega a sua vida por eles, esse dará frutos de vida e viverá uma vida plena,
que nem a morte calará. É esta vida que tem sentido e que leva o homem à
realização plena.
Jesus viveu esta dinâmica da vida dada por amor, sem medo de enfrentar o
“mundo” – isto é, sem medo de enfrentar esse sistema de opressão e de injustiça
que pensava poder manter os homens escravos através do medo da morte. Jesus
está livre desse medo e, portanto, está livre para amar totalmente. Àqueles que
querem “ver Jesus” e conhecer o seu projeto, Ele propõe o mesmo caminho – o
caminho do amor e da entrega total. Ser discípulo é colaborar com Jesus na
libertação dos homens que ainda são escravos, mesmo que isso signifique
enfrentar as forças de opressão do “mundo” e enfrentar a própria morte (“se
alguém Me quer servir, siga-Me” – v. 26a).
Quem aceitar esta proposta permanece unido a Jesus, entra na comunidade
de Deus (v. 26b). Poderá ser desprezado pelo “mundo”; mas será honrado por Deus
e acolhido como seu filho (v. 26c).
O nosso texto termina com a “voz do céu” que glorifica Jesus (v. 28-32).
É uma forma de mostrar que o caminho de Jesus tem o selo de garantia de Deus. A
“voz do céu” assegura que a forma de viver proposta por Jesus é verdadeira e
que Deus garante a sua autenticidade. Confirma-se, desta forma, aos discípulos
que oferecer a vida por amor não é um caminho de fracasso e de morte, mas um
caminho de glorificação e de vida.
ATUALIZAÇÃO
• A primeira leitura mostrava-nos a preocupação de Deus no sentido de
propor aos homens uma nova Aliança, capaz de gerar um Homem Novo. Como é que
chegamos a essa realidade do Homem Novo, de coração transformado (isto é, com
um coração que pensa, que decide e que age segundo os esquemas e a lógica de
Deus)? O Evangelho responde: é olhando para Jesus, aprendendo com Ele,
seguindo-O no caminho do amor, acolhendo essa vida que Ele nos propõe. Jesus
tem de ser o modelo, a referência, o exemplo de quem quer aceitar o desafio de
Deus e viver na comunidade da nova Aliança. Na verdade, o que é que Jesus
representa, para nós? Uma pequena nota no rodapé da história humana? Um
idealista com boas intenções que fracassou no seu sonho de um mundo melhor? Um
pensador original, mas cujas idéias e perspectivas parecem desfasadas face às
novas realidades do mundo? Ou é o Deus que veio ao encontro dos homens com um
projeto de vida nova, capaz de dar um novo sentido à nossa vida e de nos
encaminhar para a vida plena, para a felicidade sem fim?
• O caminho que Jesus aponta aos homens é o caminho do amor radical, do
dom da vida, da entrega total a Deus e aos irmãos. Este caminho pode parecer,
por vezes, um caminho de fracasso, de cruz; pode ser um caminho que nos coloca
à margem desses valores que o mundo admira e consagra; pode parecer um caminho
de perdedores e de fracos, reservado a quem não tem a coragem de se impor, de
vencer a todo o custo, de conquistar o mundo… No entanto, Jesus garante-nos: a
vida plena e definitiva nasce do dom de si mesmo, do serviço simples e humilde
prestado aos irmãos (sobretudo aos pequenos e aos pobres), da disponibilidade
para nos esquecermos de nós próprios e para irmos ao encontro das necessidades
dos outros, da capacidade para nos solidarizarmos com os irmãos que sofrem, da
coragem com que enfrentamos tudo aquilo que gera sofrimento e morte. Estamos
dispostos a seguir a proposta de Jesus?
• Jesus rejeita absolutamente o caminho da auto-suficiência, do
fechamento em si próprio, do egoísmo estéril, dos valores efêmeros. Na lógica
de Deus, trata-se de um caminho de perdedores, que produz vidas vazias e sem
sentido, sofrimento e frustração, medo e desilusão. Quem vive exclusivamente
para si próprio, quem se preocupa apenas em defender os seus interesses e
perspectivas, quem se apega excessivamente a uma realização pessoal cumprida em
circuitos fechados, “compra” uma existência infecunda e que não vale a pena ser
vivida. Perde a oportunidade de chegar ao Homem Novo, à realização plena, à
vida verdadeira, à salvação. Talvez nesta Quaresma Jesus nos peça que dispamos
o nosso egoísmo e que nos convertamos ao amor…
• É através da comunidade dos discípulos que os homens “vêem Jesus”,
descobrem o seu projeto, encontram esse caminho de amor e de doação que conduz
à vida nova do Homem Novo, à salvação. Isto recorda-nos a nossa
responsabilidade de testemunhas de Jesus e da sua salvação no meio dos homens
do nosso tempo… Aqueles irmãos que se cruzam conosco nos caminhos da vida
descobrem no nosso testemunho o rosto de Jesus? Todos aqueles que vêm ao
encontro de Jesus à procura da vida plena encontram na forma como nos doamos,
como servimos e como amamos a proposta libertadora que, através de nós, Jesus
quer passar a todos os homens?
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