A liturgia do 3º domingo da Quaresma dá-nos conta da eterna preocupação
de Deus em conduzir os homens ao encontro da vida nova. Nesse sentido, a
Palavra de Deus que nos é proposta apresenta sugestões diversas de conversão e
de renovação.
Na primeira leitura, Deus oferece-nos um conjunto de indicações
(“mandamentos”) que devem balizar a nossa caminhada pela vida. São indicações
que dizem respeito às duas dimensões fundamentais da nossa existência: a nossa
relação com Deus e a nossa relação com os irmãos.
Na segunda leitura, o apóstolo Paulo sugere-nos uma conversão à lógica
de Deus… É preciso que descubramos que a salvação, a vida plena, a felicidade
sem fim não está numa lógica de poder, de autoridade, de riqueza, de importância,
mas está na lógica da cruz – isto é, no amor total, no dom da vida até às
últimas consequências, no serviço simples e humilde aos irmãos.
No Evangelho, Jesus apresenta-Se como o “Novo Templo” onde Deus Se
revela aos homens e lhes oferece o seu amor. Convida-nos a olhar para Jesus e a
descobrir nas suas indicações, no seu anúncio, no seu “Evangelho” essa proposta
de vida nova que Deus nos quer apresentar.
1ª leitura – Ex. 20,1-17 – AMBIENTE
O texto que hoje nos é proposto como primeira leitura faz parte de um
conjunto de tradições que referem uma Aliança entre Jahwéh e Israel (cf. Ex.
19-40). Essa Aliança é situada num monte, algures no deserto do Sinai, o mesmo
monte onde Jahwéh se havia revelado a Moisés.
No texto bíblico não temos indicações geográficas suficientes para
identificar o monte da Aliança. Em si, o nome “Sinai” designa uma enorme
península de forma triangular, com mais ou menos 420 km. de extensão norte/sul,
estendendo-se entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho. A norte, junto do
Mediterrâneo, o Sinai apresenta uma faixa arenosa de 25 km de largura; mas à
medida que descemos para sul, o território torna-se mais acidentado, com
montanhas que chegam a atingir 2400 m de altura. A península inteira é um
deserto árido; não há, praticamente, vegetação (exceto em alguns pequenos
oásis) e as comunicações são difíceis. Nesta enorme extensão de areia e rochas,
é difícil situar o “monte da Aliança”. Contudo, uma tradição cristã tardia
(séc. IV d.C.) identifica o “monte” com o GebelMusah (o “monte de Moisés”), um
monte com 2.244 m de altitude, situado a sul da península sinaítica. Embora a
identificação do “monte da Aliança” com este lugar levante problemas, o
GebelMusah é, ainda hoje, um lugar de peregrinação para judeus e cristãos.
A Aliança entre Jahwéh e Israel, celebrada no Sinai, vai ser apresentada
pelos catequistas de Israel através de uma estrutura literária que é muito
semelhante aos formulários jurídicos conhecidos no mundo antigo para apresentar
os acordos políticos entre duas partes, nomeadamente entre um “senhor” e o seu
“vassalo”. Nesses formulários, depois de recordar ao “vassalo” a sua ação, a
sua generosidade, os seus benefícios, o “senhor” apresentava as “cláusulas da
Aliança” – isto é, a lista das obrigações que o “vassalo” assumia para com o
seu “senhor” (obrigações que o “vassalo” devia cumprir fielmente).
De entre as “cláusulas da Aliança” do Sinai, sobressai um bloco
especial, onde são apresentadas as dez obrigações fundamentais que Israel vai
assumir diante do seu Deus: os “dez mandamentos” ou as “dez palavras”. É esse
texto que a nossa primeira leitura nos apresenta. Aí está, verdadeiramente, o
“coração” da Aliança; aí se define o caminho que Israel deve percorrer para ser
o Povo de Deus.
A lista dos “dez mandamentos” é uma lista irregular, com mandamentos
enunciados com brevidade e secura, sem nenhuma justificação (“não matarás”; não
roubarás”) e outros mais desenvolvidos, contendo um comentário explicativo (cf.
Ex. 20,4.17), uma motivação (cf. Ex. 20,7) ou uma promessa (cf. Ex. 20,12). Por
vezes Deus fala em primeira pessoa (cf. Ex. 20,2.5-6); noutras, fala-se de Deus
em terceira pessoa (cf. Ex. 20,7.11.12). Dois mandamentos são formulados
positivamente (cf. Ex. 20,8: “lembra-te”; Ex. 20,12: “honra”); todos os outros
são formulados negativamente (“não matarás”; “não roubarás”). Estas
irregularidades significam que o “decálogo” sofreu, através dos séculos, por
motivos pastorais e catequéticos, retoques, acrescentos, comentários,
modificações.
É provável que Moisés tenha uma certa relação com estas leis que estão
no centro da Aliança entre Deus e o seu Povo; mas o texto, na sua forma atual,
não vem de Moisés. É, certamente, um texto muito trabalhado, que sofreu muitas
elaborações ao longo dos séculos. Ainda que esta lista de preceitos possa
lembrar algumas listas de proibições encontradas na Babilônia e no Egito, ocupa
um lugar à parte no conjunto dos formulários legais dos povos do Crescente
Fértil: é um núcleo legal sóbrio e equilibrado, despojado de tudo aquilo que
nos outros povos é magia, superstição, tabu.
MENSAGEM
O “decálogo” abarca os dois vetores fundamentais da existência humana: a
relação do homem com Deus e a relação que cada homem estabelece com o seu
próximo.
Os primeiros quatro mandamentos dizem respeito à relação que Israel deve
estabelecer com Deus (vs. 3-11). Dois, sobretudo, são de uma tremenda
originalidade (o mandamento que obriga Israel a não ter outro Deus, outro
Senhor, outra referência; e o mandamento que proíbe construir imagens de Deus),
pois não encontram paralelo em nenhuma das religiões antigas que conhecemos.
A questão essencial que sobressai, nestes quatro mandamentos, é esta:
Jahwéh deve ser a referência fundamental da vida do Povo, o centro à volta do
qual se constrói toda a existência de Israel. Nada nem ninguém deve ocupar, no
coração do Povo, o lugar que só a Deus pertence. É preciso que Israel reconheça
que só em Jahwéh está a vida e a salvação (v. 3: “não terás nenhum deus além de
mim”); é necessário que Israel reconheça a absoluta transcendência de Jahwéh –
que não pode ser reproduzida em qualquer criatura feita pelo homem – e não se
prostre perante obras criadas pela mão do homem (v. 4: não farás para ti
qualquer imagem esculpida… não hás-de prostrar-te diante delas, nem
prestar-lhes culto”); é preciso que Israel reconheça que não deve manipular
Deus e usá-l’O em apoio de projetos e interesses puramente humanos (v. 7: “não
hás-de invocar o nome do Senhor teu Deus em apoio do que não tem fundamento”);
é preciso que Israel reconheça que só o Senhor é o dono do tempo e que reserve
espaço para o encontro e o louvor do Senhor (v. 8: “hás-de lembrar-te do dia de
sábado, a fim de o santificares”).
s outros seis mandamentos dizem respeito às relações comunitárias (vs.
12-17). Procuram inculcar o respeito absoluto pelo próximo – a sua vida, os
seus direitos na comunidade, os seus bens. São “a magna carta da liberdade, da
justiça, do respeito pela pessoa e pela sua dignidade”. Recomendam que cada
membro da comunidade reconheça a sua dependência dos outros e aceite a sua
vinculação a uma família e a uma cultura (v. 12: “honra teu pai e tua mãe”);
pedem que cada membro do Povo de Deus respeite a vida do irmão (v. 13: “não
matarás”); recomendam que seja defendida a família e respeitadas as relações
familiares (v. 14: “não cometerás adultério”); exigem que se respeite
absolutamente quer os bens, quer a própria liberdade dos outros membros da
comunidade (v. 15: “não tomarás para ti” – o que pode referir-se a pessoas ou a
coisas. Pode traduzir-se por “não roubarás”, mas também por “não privarás de
liberdade o teu irmão, não o reduzirás à escravidão”); pedem o respeito pelo
bom nome e pela fama do irmão, nomeadamente dando sempre um testemunho
verdadeiro diante do tribunal e garantindo a fiabilidade de uma justiça que é a
base da correta ordem social (v. 16: “não levantarás falso testemunho contra o
teu próximo”); exigem o respeito pelos “bens básicos” que asseguram ao irmão a
sua subsistência e procuram evitar que o coração dos membros da comunidade do
Povo de Deus seja dominado pela cobiça e pelos instintos egoístas (v. 17: “não
cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a mulher dele, nem o criado ou a
criada, o boi ou o jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”).
Porque é que Deus apresentou estas propostas a Israel e lhe recomendou
este caminho? Qual o interesse de Deus em que Israel viva de acordo com as
regras aqui apresentadas? O que é que Deus “tem a ganhar” com a fidelidade do
Povo a estas normas?
A resposta a esta questão está na primeira afirmação do Decálogo: “Eu
sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão”
(v. 2). Jahwéh, o Deus libertador, está interessado em que Israel se liberte
definitivamente da escravidão e se torne um Povo livre e feliz. Os
“mandamentos” são, precisamente, uma contribuição de Deus para isso. Ao colocar
estes “sinais” no percurso do seu Povo, Jahwéh não está a limitar a liberdade
de Israel, mas está a propor ao Povo um caminho de liberdade e de vida plena.
Os mandamentos pretendem ajudar Israel a deixar a escravidão do egoísmo, da
auto-suficiência, da injustiça, do comodismo, das paixões, da cobiça, de
exploração… Os mandamentos nascem do amor de Jahwéh a Israel e procuram indicar
ao Povo o caminho para ser feliz. A resposta do Povo a essa preocupação de Deus
será aceitar as indicações e viver de acordo com esses preceitos. Israel
responderá, assim, ao amor de Deus e será feliz. É essa Aliança que Jahwéh quer
fazer com o seu Povo, é esse o “interesse” de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Os mandamentos que dizem respeito à relação do homem com Deus
sublinham a centralidade que Deus deve assumir no coração e na vida do seu
Povo. Na vida de todos os dias somos, com frequência, seduzidos por outros
“deuses” – o dinheiro, o poder, os afetos humanos, a realização profissional, o
reconhecimento social, os interesses egoístas, as ideologias, os valores da
moda – que se tornam o objetivo supremo, no valor último que condiciona os
nossos comportamentos, as nossas atitudes e as nossas opções. Com frequência,
prescindimos de Deus e instalamo-nos num esquema de orgulho e de
auto-suficiência que coloca Deus e as suas propostas fora da nossa vida. A
Palavra de Deus garante-nos: esse não é um caminho que nos conduza em direção à
vida definitiva e à liberdade plena. Neste tempo de Quaresma, somos convidados
a voltarmo-nos para Deus e a redescobrirmos o seu papel fundamental na nossa
existência… Quais são os “deuses” que nos seduzem mais e que condicionam a
nossa vida, as nossas tomadas de posição, as nossas opções? Que espaço é que
reservamos, na nossa vida, para o verdadeiro Deus?
• Os mandamentos que dizem respeito à nossa relação com os irmãos
convidam-nos a despir esses comportamentos que geram violência, egoísmo,
agressividade, cobiça, intolerância, escravidão, indiferença face às necessidades
dos outros. Tudo aquilo que atenta contra a vida, a dignidade, os direitos dos
nossos irmãos, é algo que gera morte, sofrimento, escravidão, para nós e para
todos os que nos rodeiam e é algo que contribui para subverter os projetos de
vida e de felicidade que Deus tem para nós e para o mundo. O que é que, nos
meus gestos, nas minhas atitudes, nos meus valores, é gerador de injustiça, de
sofrimento, de exploração, de escravidão, de morte, para mim e para todos
aqueles que me rodeiam?
• O que está aqui em jogo não é o respeitar regras “religiosamente
corretas”, o evitar que Deus tenha razões de queixa contra nós, ou o fugir aos
castigos divinos; mas é, antes de mais, o construir a nossa própria felicidade.
É preciso aprendermos a não ver os “mandamentos” de Deus como propostas
reacionárias, descabidas e ultrapassadas, inventados por uma moral obsoleta e
antiquada, que apenas servem para limitar a nossa liberdade ou para impedir a
nossa autonomia; mas é preciso ver os “mandamentos” como “sinais de trânsito”
com os quais Deus, no seu amor e na sua preocupação com a nossa realização
plena, nos ajuda a percorrer os caminhos da liberdade e da vida verdadeira.
2ª leitura – 1Cor. 1,22-25 - AMBIENTE
No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto,
depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca 18 meses (anos
50-52).
Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de
Corinto. De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no entanto,
estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta (cf. 1Cor.
6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1Cor. 1,11-12), sedução da
sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja revestida de um
superficial verniz cristão (cf. 1Cor. 1,19-2,10). Tratava-se de uma comunidade
forte e vigorosa, mas que mergulhava as suas raízes em terreno adverso. Na
comunidade de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em inserir-se num
ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que
estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.
Um dos graves problemas da comunidade cristã de Corinto era a
identificação da experiência cristã com uma escola de sabedoria: os cristãos de
Corinto – na linha do que acontecia nas várias escolas de filosofia que
infestavam a cidade – viam várias figuras proeminentes do cristianismo
primitivo como mestres de uma doutrina e aderiam a essas figuras, esperando
encontrar nelas uma proposta filosófica credível, que os conduzisse à plenitude
da sabedoria e da realização humana. É de crer que os vários adeptos desses
vários mestres se confrontassem na comunidade, procurando demonstrar a
excelência e a superior sabedoria do mestre escolhido. Ao saber isto, Paulo
ficou muito alarmado: esta perspectiva punha em causa o essencial da fé.
Paulo vai esforçar-se, então, por demonstrar aos coríntios que entre os
cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo; e a experiência cristã não
é a busca de uma filosofia coerente, brilhante, elegante, que conduza à
sabedoria, entendida à maneira dos gregos. Quem procura na mensagem cristã um
sistema lógico, coerente, inquestionável à luz da lógica humana, é porque não
percebeu nada do essencial da mensagem cristã, da “loucura da cruz”.
MENSAGEM
Judeus e gregos, cada um à sua maneira, buscam seguranças. Os judeus
procuram milagres que garantam a veracidade da mensagem anunciada; os gregos
procuram as belas palavras, a coerência do discurso, a lógica dos argumentos…
Na verdade, Jesus não Se apresentou como um Deus espetacular, a exibir o seu
poder e as suas qualidades divinas através de gestos estrondosos e milagrosos,
como os judeus estavam à espera; nem Se apresentou como o “mestre” iluminado de
uma filosofia capaz de se impor pelo brilho das suas premissas e pela sua
lógica inatacável, como os gregos gostariam.
A essência da mensagem cristã está na “loucura da cruz” – isto é, na
lógica ilógica de um Deus que veio ao encontro da humanidade, que fez da sua
vida um dom de amor e que aceitou uma morte maldita para ensinar aos homens que
a verdadeira vida é aquela que se coloca integralmente ao serviço dos irmãos,
até à morte. No entanto, foi precisamente dessa forma que Deus apresentou aos
homens o seu projeto de salvação e de vida definitiva. Na cruz de Jesus
manifestou-se, de forma plena, o poder salvador de Deus. Decididamente,
considera Paulo, a lógica de Deus não é exatamente igual à lógica dos homens.
O caminho cristão não é uma busca de sabedoria humana, mas uma adesão a
Cristo crucificado – o Cristo do amor e do dom da vida. Nele manifesta-se de
forma humanamente desconcertante, mas plena e definitiva, a força salvadora de
Deus.
ATUALIZAÇÃO
• O nosso texto convida-nos a descobrir e a interiorizar a lógica de
Deus, que é bem diferente da lógica dos homens. Os homens sentem-se mais
seguros e confortáveis diante de líderes vencedores, que se impõem pela força e
que exibem o seu poder através de gestos espetaculares; e Deus aparece-lhes na
figura de um obscuro carpinteiro galileu, condenado pelas autoridades
constituídas, abandonado por amigos e discípulos, escarnecido pelas multidões,
e morto numa cruz fora dos muros da cidade. Os homens gostam de ser convencidos
por projetos intelectualmente brilhantes, que apresentem argumentos fortes e
uma lógica inquestionável; e Deus oferece-lhes um projeto de salvação que passa
pela morte na cruz, em plena e radical contradição com todos os esquemas
mentais e toda a lógica humana. O apóstolo Paulo sugere-nos uma conversão à
lógica de Deus… É preciso que descubramos que a salvação, a vida plena, a
felicidade sem fim não está numa lógica de poder, de autoridade, de riqueza, de
importância, mas está no amor total, no dom da vida até às últimas
consequências, no serviço simples e humilde aos irmãos.
• A força e a “sabedoria de Deus” manifestam-se na fragilidade, na
pequenez, na obscuridade, na pobreza, na humildade. Sendo assim, não nos
parecem ridículas, descabidas e pretensiosas as nossas poses de importância, de
autoridade, de protagonismo, de êxito humano?
• “Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura
para os gentios”. Aqueles que têm responsabilidade no anúncio do Evangelho
devem anunciar a mensagem com verdade e radicalidade, renunciando à tentação de
a suavizar, de a tornar mais “politicamente correta”, de a tornar menos radical
e interpelativa. Às vezes, o invólucro “brilhante” com que envolvemos a Palavra
torna-a mais atrativa, mas menos questionante e, portanto, menos
transformadora.
Evangelho: Jo 2,13-25 - AMBIENTE
13Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. 14No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados. 15Fez
então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as
ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas.
16E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”
17Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá”.
18Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?”
19Ele respondeu: “Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei”.
20Os judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?”
21Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo. 22Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele.
23Jesus estava em Jerusalém durante a festa da Páscoa. Vendo os sinais que realizava, muitos creram no seu nome. 24Mas Jesus não lhes dava crédito, pois ele conhecia a todos; 25e não precisava do testemunho de ninguém acerca do ser humano, porque ele conhecia o homem por dentro.
O episódio que hoje nos é proposto aparece na “secção introdutória” do
Evangelho de João (cf. Jo 1,19-3,36), onde se diz quem é Jesus e se apresentam
as grandes linhas programáticas do seu ministério.
A cena situa-nos no Templo de Jerusalém. Trata-se desse Templo
majestoso, construído por Herodes para demonstrar as suas boas disposições para
com o culto a Jahwéh e para conseguir a benevolência dos judeus. A construção
do Templo iniciou-se em 19 a.C. e ficou essencialmente pronta no ano 9 d.C.
(embora os trabalhos só tivessem sido dados por concluídos em 63 d.C.). No ano
27 d.C., efetivamente, o Templo estava a ser construído há 46 anos e ainda não
estava terminado, conforme a observação que os dirigentes judeus fizeram a
Jesus (cf. Jo 2,20).
João situa o episódio nos dias que antecedem a festa da Páscoa. Era a
época em que as grandes multidões se concentravam em Jerusalém para celebrar a
festa principal do calendário religioso judaico. Jerusalém, que normalmente
teria à volta de 55.000 habitantes, chegava a albergar cerca de 125.000
peregrinos nesta altura. No Templo sacrificavam-se cerca de 18.000 cordeiros,
destinados à celebração pascal.
Neste ambiente, o comércio relacionado com o Templo sofria um espantoso
incremento. Três semanas antes da Páscoa, começava a emissão de licenças para a
instalação dos postos comerciais à volta do Templo. O dinheiro arrecadado com a
emissão dessas licenças revertia para o sumo-sacerdote. Havia tendas de venda
que pertenciam, diretamente, à família do sumo-sacerdote. Vendiam-se os animais
para os sacrifícios e vários outros produtos destinados à liturgia do Templo.
Havia, também, as tendas dos cambistas que trocavam as moedas romanas correntes
por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o Templo eram pagos em moeda
judaica, pois não era permitido que moedas com a efígie de imperadores pagãos
conspurcassem o tesouro do Templo). Este comércio constituía uma mais valia
para a cidade e sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do
Templo.
Vai ser neste contexto que Jesus vai realizar o seu gesto profético.
MENSAGEM
Os profetas de Israel tinham, em diversas situações, criticado o culto
sacrificial que Israel oferecia a Deus, considerando-o como um conjunto de
ritos estéreis, vazios e sem significado, uma vez que não eram expressão
verdadeira de amor a Jahwéh; tinham, inclusive, denunciado a relação do culto
com a injustiça e a exploração dos pobres (cf. Am 4,4-5; 5,21-25; Os 5,6-7;
8,13; Is 1,11-17; Jr. 7,21-26). As considerações proféticas tinham, de alguma
forma, consolidado a idéia de que a chegada dos tempos messiânicos implicaria a
purificação e a moralização do culto prestado a Jahwéh no Templo. O profeta
Zacarias liga explicitamente o “dia do Senhor” (o dia em que Deus vai intervir
na história e construir um mundo novo, através do Messias) com a purificação do
culto e a eliminação dos comerciantes que estão “no Templo do Senhor do
universo” – Zc. 14,21).
O gesto que o Evangelho deste domingo nos relata deve entender-se neste
enquadramento. Quando Jesus pega no chicote de cordas, expulsa do Templo os
vendedores de ovelhas, de bois e de pombas, deita por terra os trocos dos
banqueiros e derruba as mesas dos cambistas (vs. 14-16), está a revelar-Se como
“o messias” e a anunciar que chegaram os novos tempos, os tempos messiânicos.
No entanto, Jesus vai bem mais longe do que os profetas
vétero-testamentários. Ao expulsar do Templo também as ovelhas e os bois que
serviam para os ritos sacrificiais que Israel oferecia a Jahwéh (João é o único
dos evangelistas a referir este pormenor), Jesus mostra que não propõe apenas uma
reforma, mas a abolição do próprio culto. O culto prestado a Deus no Templo de
Jerusalém era, antes de mais, algo sem sentido: ao transformar a casa de Deus
num mercado, os líderes judaicos tinham suprimido a presença de Deus… Mas, além
disso, o culto celebrado no Templo era algo de nefasto: em nome de Deus esse
culto criava exploração, miséria, injustiça e, por isso, em lugar de potenciar
a relação do homem com Deus, afastava o homem de Deus. Jesus, o Filho, com a
autoridade que Lhe vem do Pai, diz um claro “basta” a uma mentira com a qual
Deus não pode continuar a pactuar: “não façais da casa de meu Pai casa de
comércio” (v. 16).
Os líderes judaicos ficam indignados. Quais são as credenciais de Jesus
para assumir uma atitude tão radical e grave? Com que legitimidade é que Ele se
arroga o direito de abolir o culto oficial prestado a Jahwéh?
A resposta de Jesus é, à primeira vista, estranha: “destruí este Templo
e Eu o reconstruirei em três dias” (v. 19). Recorrendo à figura literária do
“mal-entendido” (propõe-se uma afirmação; os interlocutores entendem-na de
forma errada; aparece, então, a explicação final, que dá o significado exato do
que se quer afirmar), João deixa claro que Jesus não Se referia ao Templo de
pedra onde Israel celebrava os seus ritos litúrgicos (v. 20), mas a um outro
“Templo” que é o próprio Jesus (“Jesus, porém, falava do Templo do seu corpo” –
v. 21). O que é que isto significa? Jesus desafia os líderes que O questionaram
a suprimir o Templo que é Ele próprio, mas deixa claro que, três dias depois,
esse Templo estará outra vez erigido no meio dos homens. Jesus alude,
evidentemente, à sua ressurreição. A prova de que Jesus tem autoridade para
“proceder deste modo” é que os líderes não conseguirão suprimi-l’O. A
ressurreição garante que Jesus vem de Deus e que a sua atuação tem o selo de
garantia de Deus.
No entanto, o mais notável, aqui, é que Jesus Se apresenta como o “novo
templo”. O Templo representava, no universo religioso judaico, a residência de
Deus, o lugar onde Deus Se revelava e onde Se tornava presente no meio do seu
Povo. Jesus é, agora, o lugar onde Deus reside, onde Se encontra com os homens
e onde Se manifesta ao mundo. É através de Jesus que o Pai oferece aos homens o
seu amor e a sua vida. Aquilo que a antiga Lei já não conseguia fazer –
estabelecer relação entre Deus e os homens – é Jesus que, a partir de agora, o
faz.
ATUALIZAÇÃO
• Como é que podemos encontrar Deus e chegar até Ele? Como podemos
perceber as propostas de Deus e descobrir os seus caminhos? O Evangelho deste
domingo responde: é olhando para Jesus. Nas palavras e nos gestos de Jesus,
Deus revela-Se aos homens e manifesta-lhes o seu amor, oferece aos homens a
vida plena, faz-Se companheiro de caminhada dos homens e aponta-lhes caminhos
de salvação. Neste tempo de Quaresma – tempo de caminhada para a vida nova do
Homem Novo – somos convidados a olhar para Jesus e a descobrir nas suas
indicações, no seu anúncio, no seu “Evangelho” essa proposta de vida nova que
Deus nos quer apresentar.
• Os cristãos são aqueles que aderiram a Cristo, que aceitaram integrar
a sua comunidade, que comeram a sua carne e beberam o seu sangue, que se
identificaram com Ele. Membros do Corpo de Cristo, os cristãos são pedras vivas
desse novo Templo onde Deus Se manifesta ao mundo e vem ao encontro dos homens
para lhes oferecer a vida e a salvação. Esta realidade supõe naturalmente, para
os crentes, uma grande responsabilidade… Os homens do nosso tempo têm de ver no
rosto dos cristãos o rosto bondoso e terno de Deus; têm de experimentar, nos
gestos de partilha, de solidariedade, de serviço, de perdão dos cristãos, a
vida nova de Deus; têm de encontrar, na preocupação dos cristãos com a justiça
e com a paz, o anúncio desse mundo novo que Deus quer oferecer a todos os
homens. Talvez o fato de Deus parecer tão ausente da vida, das preocupações e
dos valores dos homens do nosso tempo tenha a ver com o fato de os discípulos
de Jesus se demitirem da sua missão e da sua responsabilidade… O nosso
testemunho pessoal é um sinal de Deus para os irmãos que caminham ao nosso
lado? A vida das nossas comunidades dá testemunho da vida de Deus? A Igreja é
essa “casa de Deus” onde qualquer homem ou qualquer mulher pode encontrar essa
proposta de libertação e de salvação que Deus oferece a todos?
• Qual é o verdadeiro culto que Deus espera? Evidentemente, não são os
ritos solenes e pomposos, mas vazios, estéreis e balofos. O culto que Deus
aprecia é uma vida vivida na escuta das suas propostas e traduzida em gestos
concretos de doação, de entrega, de serviço simples e humilde aos irmãos.
Quando somos capazes de sair do nosso comodismo e da nossa auto-suficiência
para ir ao encontro do pobre, do marginalizado, do estrangeiro, do doente,
estamos a dar a resposta “litúrgica” adequada ao amor e à generosidade de Deus
para conosco.
• Ao gesto profético de Jesus, os líderes judaicos respondem com
incompreensão e arrogância. Consideram-se os donos da verdade e os únicos
intérpretes autênticos da vontade divina. Instalados nas suas certezas e
preconceitos, nem sequer admitem que a denúncia que Jesus faz esteja correta. A
sua auto-suficiência impede-os de ver para além dos seus projetos pessoais e de
descobrir os projetos de Deus. Trata-se de uma atitude que, mais uma vez, nos
questiona… Quando nos barricamos atrás de certezas absolutas e de atitudes
intransigentes, podemos estar a fechar o nosso coração aos desafios e à
novidade de Deus.
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