A liturgia do 4º domingo da Quaresma garante-nos que Deus nos oferece,
de forma totalmente gratuita e incondicional, a vida eterna.
A primeira leitura diz-nos que, quando o homem prescinde de Deus e
escolhe caminhos de egoísmo e de auto-suficiência, está a construir um futuro
marcado por horizontes de dor e de morte. No entanto, diz o autor do livro das
Crônicas, Deus dá sempre ao seu Povo outra possibilidade de recomeçar, de
refazer o caminho da esperança e da vida nova.
A segunda leitura ensina que Deus ama o homem com um amor total,
incondicional, desmedido; é esse amor que levanta o homem da sua condição de
finitude e debilidade e que lhe oferece esse mundo novo de vida plena e de
felicidade sem fim que está no horizonte final da nossa existência.
No Evangelho, João recorda-nos que Deus nos amou de tal forma que enviou
o seu Filho único ao nosso encontro para nos oferecer a vida eterna. Somos
convidados a olhar para Jesus, a aprender com Ele a lição do amor total, a
percorrer com Ele o caminho da entrega e do dom da vida. É esse o caminho da
salvação, da vida plena e definitiva.
1ª leitura – 2Cr. 36,14-16.19-23 – AMBIENTE
O livro das Crônicas é uma obra de um autor anônimo, que pretende
oferecer a história de Israel, desde a criação do mundo, até à época do Exílio.
A tradição judaica atribui a obra a Esdras; mas tal hipótese não é provável. O
livro faz parte de um bloco com alguma unidade (em conjunto com os livros de
Esdras e de Neemias) que se costuma designar como “Obra do cronista”.
Os investigadores e comentadores do livro das Crônicas propõem várias
hipóteses para a datação da obra (as diversas propostas apontam para datas
entre 515 a.C. e 250 a.C.). Recentemente, alguns autores falam de um processo
em várias etapas… À volta de 515 a.C. poderia ter aparecido uma primeira edição
da obra, com a finalidade de legitimar o culto no “segundo Templo” (isto é, no
Templo reconstruído pelos judeus regressados do Exílio na Babilônia); entre 400
e 375 a.C., poderia ter aparecido uma segunda edição, destinada a sublinhar a
autoridade de Esdras como legislador e intérprete da Torah; entre 350 e 300
a.C., poderia ter aparecido uma terceira edição, destinada a animar, a
fortalecer e a consolidar a comunidade judaica frente à hostilidade dos
vizinhos, particularmente dos samaritanos.
O texto que nos é proposto aparece na parte final do segundo volume do
Livro das Crônicas. Neste texto, o Cronista refere dois fatos históricos
separados por quase 50 anos: a queda de Jerusalém nas mãos de Nabucodonosor
(586 a.C.) e a autorização dada pelo rei persa Ciro para o regresso dos
exilados a Jerusalém, após a queda da Babilônia (538 a.C.). Pelo meio, o Povo
de Deus conheceu a dramática experiência do Exílio na Babilônia.
Contudo, o autor está muito mais interessado em dar-nos uma
interpretação teológica dos fatos do que em oferecer-nos uma descrição
pormenorizada dos acontecimentos históricos. Não é um historiador ou um
analista político a falar, mas sim um crente preocupado em ler a história à luz
da fé e em tirar daí as conclusões que se impõem.
MENSAGEM
A destruição de Jerusalém, o incêndio do Templo e a deportação do Povo
de Deus para a Babilônia são vistas pelo Cronista como o resultado lógico dos
pecados da nação. “Os chefes de Judá, os sacerdotes e o Povo multiplicaram as
suas infidelidades” (v. 14); ignoraram os avisos enviados por Deus por
intermédio dos profetas e desdenharam os seus apelos… Então, a ira do Senhor
abateu-se sem remédio sobre o seu Povo (vs. 15-16). O próprio tempo que o
Exílio durou (e que o autor situa num número não muito exato mas simbólico de
70 anos – isto é, de dez vezes sete) é visto como um grande jubileu forçado por
Deus, um tempo de compensação por todos esses sábados (sétimos dias) que o Povo
não respeitou e nos quais não cumpriu as suas obrigações para com Jahwéh. A
“terra de Deus”, martirizada pela injustiça e pelo pecado, deve descansar
durante setenta anos, até que seja renovada e volte a ser de novo a “casa” do
Povo de Deus (v. 21).
Por detrás desta leitura da história, está uma noção um tanto ou quanto
primitiva da justiça de Deus: quando o Povo vive na fidelidade à Aliança e aos
mandamentos, Deus oferece-lhe vida e felicidade; quando o Povo é infiel aos
compromissos assumidos, conhece morte e desgraça.
De qualquer forma, o Cronista está consciente de que o castigo não é a
última palavra de Deus. Os últimos versículos (vs. 22-23 – que são uma versão
resumida de Esd. 1,1-4) apontam no sentido da esperança e de um recomeço. Por
detrás da referência à libertação operada por Ciro e ao édito que autoriza os
habitantes de Judá a regressar à sua terra, está a ideia de um Deus que não
abandona o seu Povo e que continua a dar-lhe, em cada momento da história, a
possibilidade de recomeçar.
ATUALIZAÇÃO
• A teologia da retribuição apresentada pelo Cronista (a fidelidade a
Deus é recompensada com vida e bênção; a infidelidade é castigada com
sofrimento e desgraça) tem, evidentemente, as suas limitações e os seus
perigos. Levada às últimas consequências, pode sugerir que Deus é apenas um
comerciante preocupado em fazer a contabilidade dos débitos e dos créditos do
homem, incapaz de amor e de misericórdia. O Evangelho deste domingo virá,
precisamente, demonstrar os limites desta perspectiva e apresentar um Deus que,
embora abominando o pecado, ama o homem para além de toda a medida e está sempre
disposto a oferecer-lhe a vida e a salvação.
• Embora usando elementos teológicos e formas de expressão típicas de
uma época, o Cronista recorda-nos, no entanto, algo que é indesmentível: quando
o homem prescinde de Deus e escolhe caminhos de egoísmo e de auto-suficiência,
está a construir um futuro marcado por horizontes de dor e de morte. Na
verdade, a nossa experiência de todos os dias mostra como a indiferença do
homem face a Deus e às suas propostas gera violência, opressão, exploração,
exclusão, sofrimento. Na leitura que o Cronista faz da história do seu Povo, há
um convite claro a escutar Deus e a pautar as opções que fazemos pelas
propostas de Deus.
• A perspectiva de que a libertação do cativeiro é comandada por Deus e
de que Deus oferece ao seu Povo a oportunidade de um novo começo, aponta no
sentido da esperança. Cá está: o Deus que nos é proposto é um Deus que abomina
o pecado, mas que dá sempre aos seus filhos a oportunidade de recomeçar, de
refazer tudo, de refazer o caminho da esperança e da vida nova. Neste tempo de
Quaresma, este texto abre-nos horizontes de esperança e convida-nos a embarcar
na apaixonante aventura da vida nova.
2ª leitura – Ef. 2,4-10 - AMBIENTE
A cidade de Éfeso estava situada na costa ocidental da Ásia Menor. Era
uma cidade grande e próspera, capital da Província Romana da Ásia. O seu porto
de mar ligava o interior da Ásia Menor com todas as cidades do Mediterrâneo.
Quando Paulo chegou a Éfeso (cf. At. 19,1), durante a sua terceira
viagem missionária, encontrou alguns cristãos escassamente preparados. Paulo
instruiu-os e formou com eles uma comunidade cristã. De acordo com o Livro dos
Atos dos Apóstolos, Paulo permaneceu na cidade durante um longo período (mais
de dois anos, segundo At. 19,10), ensinando na sinagoga e, depois, na “escola
de Tirano” (At. 19,9). Assim, reuniu à sua volta um número considerável de
pessoas convertidas ao “Caminho” (At. 19,9.23). Ainda de acordo com Lucas, foi
aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. At. 20,17-38),
o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral, antes de ir a Jerusalém,
onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita
entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso. Curiosamente, a carta aos Efésios é
bastante impessoal e não reflete essa relação. Alguns dos comentadores dos
textos paulinos duvidam, por isso, que esta carta venha de Paulo. Outros,
porém, acreditam que o texto que chegou até nós com o nome de “Carta aos
Efésios” é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas
da Ásia Menor – inclusive à comunidade cristã de Éfeso.
Em qualquer caso, a Carta aos Efésios apresenta-se como uma carta
escrita por Paulo, numa altura em que o apóstolo está na prisão (em Roma?). O
seu portador teria sido um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60.
Trata-se de um texto com uma grande riqueza temática, de uma reflexão
amadurecida e completa onde o autor apresenta uma espécie de síntese da
teologia paulina.
O texto que nos é proposto integra a parte dogmática da carta (cf. Ef.
1,3-3,21). Mais concretamente, o texto apresenta-nos uma reflexão sobre o papel
de Cristo na salvação do homem. O ponto de partida do autor da Carta aos
Efésios é a constatação da situação de pecado em que o homem vive e da qual,
por si só, não pode sair. O homem estará, portanto, condenado à escravidão do
pecado e à morte?
MENSAGEM
Deus é rico em misericórdia e ama o homem com um amor imenso. Por isso,
à situação pecadora do homem, Deus responde com a sua graça (v. 4). O amor
salvador e libertador de Deus não é um amor condicional, que só se derrama
sobre o homem se e quando o homem se converte; mas é um amor incondicional, que
atinge o homem mesmo quando ele continua a percorrer caminhos de pecado e de
morte (v. 5).
A esse homem orgulhoso e auto-suficiente, instalado no egoísmo e no
pecado, Deus ofereceu uma nova vida, ressuscitando-o e sentando-o com Cristo no
céu (“nos ressuscitou e nos fez sentar no céu com Cristo Jesus” – v. 6).
Repare-se neste pormenor: o autor da Carta aos Efésios não se refere à
ressurreição do homem e à sua glorificação como uma coisa futura, mas como uma
coisa passada (ele usa o tempo grego do aoristo, que tem significado de
passado). No entanto, essa ação passada afeta o presente e tem implicações no
presente… Unido a Cristo, o cristão já ressuscitou e já foi glorificado; ele
continua a viver na terra, sujeito à finitude e às limitações da vida presente
mas é já, aqui e agora, um cidadão do céu. Na verdade, Deus já introduziu na
débil e frágil natureza humana os dinamismos da vida eterna. A vida do cristão
está, consequentemente, marcada pela dupla condição da fragilidade e da
eternidade. Apesar dos seus limites e da sua debilidade, o cristão tem de
testemunhar e anunciar essa vida nova que Deus já lhe ofereceu nesta terra.
Em toda esta exposição há um elemento incontornável e ao qual o autor da
Carta aos Efésios dá uma grande importância: a gratuidade da ação salvadora de
Deus. A salvação não é uma conquista do homem, nem resulta das obras ou dos
méritos do homem, mas é puro dom de Deus. Portanto, não há aqui lugar para
qualquer sentimento de orgulho ou para qualquer atitude de auto-glorificação. A
salvação é uma oferta gratuita que Deus faz ao homem, mesmo que o homem não a
mereça (v. 9).
Da oferta de salvação que Deus faz ao homem, nasce um homem novo, que
pratica boas obras. As boas obras não são a condição para se receber a
salvação, mas o resultado da ação dessa graça que Deus, no seu amor e na sua
bondade, derrama gratuitamente sobre o homem (v. 10).
ATUALIZAÇÃO
• A vida do homem sobre a terra está marcada pela debilidade, pela
finitude, pelas limitações inerentes à nossa condição humana. A doença, o
sofrimento, o egoísmo, o pecado são realidades que acompanham a nossa
existência, que nos mantêm prisioneiros e que nos roubam a esperança. Parece
que, por nós próprios, nunca conseguiremos superar os nossos limites e alcançar
essa realidade de vida plena, de felicidade total com que permanentemente
sonhamos. Por isso, certos filósofos contemporâneos referem-se à futilidade da
existência, à náusea que acompanha a vida do homem, à inutilidade da busca da
felicidade, ao fracasso que é a vida condenada à morte… Este quadro seria
desesperante se não existisse o amor de Deus. É precisamente isso que o autor
da Carta aos Efésios nos recorda: Deus ama-nos com um amor total,
incondicional, desmedido; e é esse amor que nos levanta da nossa condição, que
nos faz vencer os nossos limites, que nos oferece esse mundo novo de vida plena
e de felicidade sem fim a que aspiramos. Não somos pobres criaturas derrotadas,
condenadas ao fracasso, limitadas por um horizonte sem sentido, mas somos
filhos amados a quem Deus oferece a vida plena, a salvação.
• Na verdade, Deus introduziu na nossa realidade humana dinamismos de
superação e de vida nova que apontam para o homem novo, livre das limitações,
da debilidade e da fragilidade. Aqueles homens e mulheres que acolheram o dom
de Deus são chamados a dar testemunho de um mundo novo, livre do sofrimento, da
injustiça, do egoísmo, do pecado. Por isso, os crentes têm de anunciar e de
construir um mundo mais justo, mais fraterno, mais humano. Eles são
testemunhas, nesta terra, de uma realidade nova de felicidade sem fim e de vida
eterna.
• Muitas vezes, a vida nova de Deus manifesta-se nas nossas palavras,
nos nossos gestos de partilha e de serviço, nas nossas atitudes de tolerância e
de perdão e somos sinais de esperança e de libertação para os irmãos que nos
rodeiam. Convém, no entanto, não esquecer este facto essencial: o mérito não é
nosso, mas sim de Deus. É Deus que age no mundo, que o transforma, que o
recria; nós somos, apenas, os instrumentos frágeis através dos quais Deus
manifesta ao mundo e aos homens o seu amor.
Evangelho: Jo 3,14-21 - AMBIENTE
Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: 14“Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, 15para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna. 16Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna.
17De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele.
18Quem nele crê, não é condenado, mas, quem não crê, já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito.
19Ora, o julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más.
20Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas. 21Mas, quem age conforme a verdade, aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus.
O nosso texto pertence à secção introdutória do Quarto Evangelho (cf. Jo
1,19-3,36). Nessa secção, o autor apresenta Jesus e procura – através dos
contributos dos diversos personagens que vão sucessivamente ocupando o centro
do palco e declamando o seu texto – dizer quem é Jesus.
Mais concretamente, o trecho que nos é proposto faz parte da conversa
entre Jesus e um “chefe dos judeus” chamado Nicodemos (cf. Jo 3,1). Nicodemos
foi visitar Jesus “de noite” (cf. Jo 3,2), o que parece indicar que não se
queria comprometer e arriscar a posição destacada de que gozava na estrutura
religiosa judaica. Membro do Sinédrio, Nicodemos aparecerá, mais tarde, a
defender Jesus, perante os chefes dos fariseus (cf. Jo 7,48-52). Também estará
presente na altura em que Jesus foi descido da cruz e colocado no túmulo (cf.
Jo 19,39).
A conversa entre Jesus e Nicodemos apresenta três etapas ou fases. Na
primeira (cf. Jo 3,1-3), Nicodemos reconhece a autoridade de Jesus, graças às
suas obras; mas Jesus acrescenta que isso não é suficiente: o essencial é
reconhecer Jesus como o enviado do Pai. Na segunda (cf. Jo 3,4-8), Jesus
anuncia a Nicodemos que, para entender a sua proposta, é preciso “nascer de
Deus” e explica-lhe que esse novo nascimento é o nascimento “da água e do
Espírito”. Na terceira (cf. Jo 3,9-21), Jesus descreve a Nicodemos o projeto de
salvação de Deus: é uma iniciativa do Pai, tornada presente no mundo e na vida
dos homens através do Filho e que se concretizará pela cruz/exaltação de Jesus.
O nosso texto pertence a esta terceira parte.
MENSAGEM
No texto que nos é proposto, Jesus começa por explicar a Nicodemos que o
Messias tem de “ser levantado ao alto”, como “Moisés levantou a serpente” no
deserto (a referência evoca o episódio da caminhada pelo deserto quando os
hebreus, mordidos pelas serpentes, olhavam uma serpente de bronze levantada num
estandarte por Moisés e se curavam – cf. Nm. 21,8-9). A imagem do
“levantamento” de Jesus refere-se, naturalmente, à cruz – passo necessário para
chegar à exaltação, à vida definitiva. É aí que Jesus manifesta o seu amor e
que indica aos homens o caminho que eles devem percorrer para alcançar a
salvação, a vida plena (v. 14).
Aos homens é sugerido que acreditem no “Filho do Homem” levantado na
cruz, para que não pereçam mas tenham a vida eterna. “Acreditar” no “Filho do
Homem” significa aderir a Ele e à sua proposta de vida; significa aprender a
lição do amor e fazer, como Jesus, dom total da própria vida a Deus e aos
irmãos (v. 15). É dessa forma que se chega à “vida eterna”.
Depois destas afirmações gerais, o autor do Quarto Evangelho vai entrar
em afirmações mais detalhadas. O que é que significa, exatamente, a cruz de
Jesus? Como é que a cruz gera vida definitiva para o homem?
Jesus, o “Filho único” enviado pelo Pai ao encontro dos homens para lhes
trazer a vida definitiva, é o grande dom do amor de Deus à humanidade. A
expressão “Filho único” evoca, provavelmente, o “sacrifício de Isaac” (cf. Gn.
22,16): Deus comporta-se como Abraão, que foi capaz de desprender-se do próprio
filho por amor (no caso de Abraão, amor a Deus; no caso de Deus, amor aos
homens)… Jesus, o “Filho único” de Deus, veio ao mundo para cumprir os planos
do Pai em favor dos homens. Para isso, encarnou na nossa história humana,
correu o risco de assumir a nossa fragilidade, partilhou a nossa humanidade; e,
como consequência de uma vida gasta a lutar contra as forças das trevas e da
morte que escravizam os homens, foi preso, torturado e morto numa cruz. A cruz
é o último ato de uma vida vivida no amor, na doação, na entrega. A cruz é,
portanto, a expressão suprema do amor de Deus pelos homens. Ela dá-nos a
dimensão do incomensurável amor de Deus por essa humanidade a quem Ele quer
oferecer a salvação (v. 16).
Qual é o objetivo de Deus ao enviar o seu Filho único ao encontro dos
homens? É libertá-los do egoísmo, da escravidão, da alienação, da morte, e
dar-lhes a vida eterna. Com Jesus – o “Filho único” que morreu na cruz – os
homens aprendem que a vida definitiva está na obediência aos planos do Pai e no
dom da vida aos irmãos, por amor.
Ao enviar ao mundo o seu “Filho único”, Deus não tinha uma intenção
negativa, mas uma intenção positiva. O Messias não veio com uma missão
judicial, nem veio excluir ninguém da salvação. Pelo contrário, Ele veio
oferecer aos homens – a todos os homens – a vida definitiva, ensinando-os a
amar sem medida e dando-lhes o Espírito que os transforma em Homens Novos (v.
17).
Reparemos neste fato notável: Deus não enviou o seu Filho único ao
encontro de homens perfeitos e santos; mas enviou o seu Filho único ao encontro
de homens pecadores, egoístas, auto-suficientes, a fim de lhes apresentar uma
nova proposta de vida… E foi o amor de Jesus – bem como o Espírito que Jesus
deixou – que transformou esses homens egoístas, orgulhosos, auto-suficientes e
os inseriu numa dinâmica de vida nova e plena.
Diante da oferta de salvação que Deus faz, o homem tem de fazer a sua
escolha. Quando o homem aceita a proposta de Jesus e adere a Ele, escolhe a
vida definitiva; mas quando o homem prefere continuar escravo de esquemas de
egoísmo e de auto-suficiência, rejeita a proposta de Deus e auto-exclui-se da
salvação. A salvação ou a condenação não são, nesta perspectiva, um prêmio ou
um castigo que Deus dá ao homem pelo seu bom ou mau comportamento; mas são o
resultado da escolha livre do homem, face à oferta incondicional de salvação
que Deus lhe faz. A responsabilidade pela vida definitiva ou pela morte eterna
não recai, assim, sobre Deus, mas sobre o homem (v. 18).
De acordo com a perspectiva de João, também não existe um julgamento
futuro, no final dos tempos, no qual Deus pesa na sua balança os pecados dos
homens, para ver se os há-de salvar ou condenar: o juízo realiza-se aqui e
agora e depende da atitude que o homem assume diante da proposta de Jesus.
Na parte final do nosso texto (vs. 19-21), João repete o tema da opção
pela vida (Jesus) ou pela morte. Ele constata que, por vezes, os homens
rejeitam a proposta de Deus e preferem a escravidão e as trevas (o egoísmo, a
injustiça, o orgulho, a auto-suficiência, tudo o que torna o homem infeliz e
lhe impede o acesso à vida definitiva). Ao contrário, quem pratica as obras do
amor (as obras de Jesus), escolhe a luz, identifica-se com Deus e dá testemunho
de Deus no meio do mundo.
Em resumo: porque amava a humanidade, Deus enviou o seu Filho único ao
mundo com uma proposta de salvação. Essa oferta nunca foi retirada; continua
aberta e à espera de resposta. Diante da oferta de Deus, o homem pode escolher
a vida eterna, ou pode excluir-se da salvação.
ATUALIZAÇÃO
• João é o evangelista abismado na contemplação do amor de um Deus que
não hesitou em enviar ao mundo o seu Filho, o seu único Filho, para apresentar
aos homens uma proposta de felicidade plena, de vida definitiva; e Jesus, o
Filho, cumprindo o mandato do Pai, fez da sua vida um dom, até à morte na cruz,
para mostrar aos homens o “caminho” da vida eterna… O Evangelho deste domingo
convida-nos a contemplar, com João, esta incrível história de amor e a
espantar-nos com o peso que nós – seres limitados e finitos, pequenos grãos de
pó na imensidão das galáxias – adquirimos nos esquemas, nos projetos e no
coração de Deus.
• O amor de Deus traduz-se na oferta ao homem de vida plena e
definitiva. É uma oferta gratuita, incondicional, absoluta, válida para sempre
e que não discrimina ninguém. Aos homens – dotados de liberdade e de capacidade
de opção – compete decidir se aceitam ou se rejeitam o dom de Deus. Às vezes,
os homens acusam Deus pelas guerras, pelas injustiças, pelas arbitrariedades
que trazem sofrimento e morte que pintam as paredes do mundo com a cor do desespero…
O nosso texto, contudo, é claro: Deus ama o homem e oferece-lhe a vida. O
sofrimento e a morte não vêm de Deus, mas são o resultado das escolhas erradas
feitas pelo homem que se obstina na auto-suficiência e que prescinde dos dons
de Deus.
• Neste texto, João define claramente o caminho que todo o homem deve
seguir para chegar à vida eterna: trata-se de “acreditar” em Jesus. “Acreditar”
em Jesus não é uma mera adesão intelectual ou teórica a certas verdades da fé;
mas é escutar Jesus, acolher a sua mensagem e os seus valores, segui-l’O nesse
caminho do amor e da entrega ao Pai e aos irmãos. Passa pelo ser capaz de
ultrapassar a indiferença, o comodismo, os projetos pessoais e pelo empenho em
concretizar, no dia a dia da vida, os apelos e os desafios de Deus; passa por
despir o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência, os preconceitos, para realizar
gestos concretos de dom, de entrega, de serviço que tragam alegria, vida e
esperança aos irmãos que caminham lado a lado conosco. Neste tempo de caminhada
para a Páscoa, somos convidados a converter-nos a Jesus e a percorrer o mesmo
caminho de amor total que Ele percorreu.
• Alguns cristãos vivem obcecados e assustados com esse momento final em
que Deus vai julgar o homem, depois de pesar na balança as suas ações boas e as
suas acções más… João garante-nos que Deus não é um contabilista, a somar os
débitos e os créditos do homem para lhes pagar em conformidade… O cristão não
vive no medo, pois ele sabe que Deus é esse Pai cheio de amor que oferece a
todos os seus filhos a vida eterna. Não é Deus que nos condena; somos nós que
escolhemos entre a vida eterna que Deus nos oferece ou a eterna infelicidade.
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