As leituras do 3º domingo do Advento
garantem-nos que Deus tem um projeto de salvação e de vida plena para propor
aos homens e para os fazer passar das “trevas” à “luz”.
Na primeira leitura, um profeta
pós-exílico apresenta-se aos habitantes de Jerusalém com uma “boa nova” de
Deus. A missão deste “profeta”, ungido pelo Espírito, é anunciar um tempo novo,
de vida plena e de felicidade sem fim, um tempo de salvação que Deus vai
oferecer aos “pobres”.
O Evangelho apresenta-nos João Batista,
a “voz” que prepara os homens para acolher Jesus, a “luz” do mundo. O objetivo
de João não é centrar sobre si próprio o foco da atenção pública; ele está
apenas interessado em levar os seus interlocutores a acolher e a “conhecer”
Jesus, “aquele” que o Pai enviou com uma proposta de vida definitiva e de
liberdade plena para os homens.
Na segunda leitura Paulo explica aos
cristãos da comunidade de Tessalônica a atitude que é preciso assumir enquanto
se espera o Senhor que vem… Paulo pede-lhes que sejam uma comunidade “santa” e
irrepreensível, isto é, que vivam alegres, em atitude de louvor e de adoração,
abertos aos dons do Espírito e aos desafios de Deus.
1ª leitura –
Is. 61,1-2a.10-11 - AMBIENTE
A liturgia deste domingo volta a
propor-nos um texto do Trito-Isaías (capítulos 56-66 do livro do profeta
Isaías). Os capítulos atribuídos a essa figura que se convencionou chamar
Trito-Isaías apresentam-nos um conjunto de textos cuja proveniência não é
totalmente clara… Para alguns, são textos de um profeta anônimo, pós-exílico,
que exerceu o seu ministério em Jerusalém após o regresso dos exilados da
Babilônia, nos anos 537/520 a.C.; para a maioria, trata-se de textos que provêm
de diversos autores pós-exílicos e que foram redigidos ao longo de um arco de
tempo relativamente longo (provavelmente, entre os sécs. VI e V a.C.).
Em qualquer caso, os textos do
Trito-Isaías situam-nos na época posterior ao Exílio e numa Jerusalém em
reconstrução. Para os retornados do Exílio, são tempos difíceis e incertos… A
população da cidade é pouco numerosa, a reconstrução é lenta e modesta, os
inimigos estão à espreita. Por outro lado, os retornados são recebidos com
frieza e hostilidade pelos poucos habitantes de Jerusalém que tinham ficado na
cidade e que não tinham ido para o exílio… Aos poucos, com a reorganização da
vida na cidade, voltam as injustiças dos poderosos sobre os fracos e os pobres,
bem como a corrupção, a venalidade e a prepotência dos chefes. O povo está
desanimado e sem esperança.
Os profetas que desenvolvem a sua
missão nesta fase vão tentar acordar a esperança num futuro de vida plena e de
salvação definitiva. Nesse sentido, vão falar de uma época em que Deus vai
voltar a residir em Jerusalém, oferecendo em cada dia ao seu Povo a vida e a
salvação. Essa “salvação” implicará, não só a reconstrução de Jerusalém e a
restauração das glórias passadas, mas também a libertação dos pobres, dos
oprimidos, dos fracos, dos marginalizados.
O texto que hoje nos é proposto é o
princípio (vs. 1-2) e o fim (vs. 10-11) do capítulo 61 do Livro de Isaías. A
menção do “Senhor Deus” (em hebraico, Jahwéh-Adonai) no versículo 1 e no
versículo 11 confirma que todo este capítulo apresenta uma clara unidade
textual e temática. O capítulo está claramente dividido em três secções. Na
primeira (vs. 1-3a), o profeta expressa o sentido da sua própria vocação; na
segunda (vs. 3b-9), o profeta transmite palavras do Senhor, prometendo a
restauração do Povo, da Aliança e de Jerusalém; na terceira (vs. 10-11), o
profeta apresenta uma declaração de alegria, provavelmente de Jerusalém, em
face da promessa de Deus.
MENSAGEM
A primeira parte do nosso texto (vs.
1-2a) pertence à primeira secção do capítulo. Aí, o profeta apresenta o sentido
da sua vocação e missão. Antes de mais, ele apresenta-se como o “ungido” do
Senhor, sobre quem repousa o Espírito; e é o mesmo Espírito que o move e o
impele para a missão – como acontecia com os juízes e os antigos profetas (cf.
Nm. 11,25-26; 24,2). Embora não se mencione o termo “profeta”, essa missão
apresenta-se como eminentemente profética: ele é enviado por Deus e a missão
tem a ver com o serviço da Palavra.
Em concreto, a missão do profeta
consiste em anunciar uma “boa notícia” (“evangelho”), em curar os corações
feridos, em proclamar a libertação aos prisioneiros, em promulgar “o ano da
graça do Senhor”. O anúncio do “ano da graça” alude aos anos jubilares
(celebrados de cinqüenta em cinqüenta anos – cf. Lv. 25,10-17) e aos anos
sabáticos (celebrados de sete em sete anos). De acordo com a Lei de Deus, eram
anos destinados a restaurar a situação original de justiça e implicavam, por
isso, a libertação dos escravos (cf. Ex. 21,2; Dt. 15,12), o perdão das dívidas
(cf. Dt. 15,1) e a restituição dos bens e propriedades alienados durante esse
período.
Os destinatários dessa mensagem de
esperança são os “pobres”. A categoria “pobres”, no contexto bíblico, é menos
uma categoria sociológica e mais uma categoria espiritual… Os pobres são os
carentes de bens, de dignidade, de liberdade e de direitos, mas que pela sua
especial situação de miséria e de necessidade são considerados os preferidos de
Deus e o objeto de uma especial proteção e ternura de Deus. Por isso, são
olhados com simpatia e até, numa visão simplista e idealista, são retratados
como pessoas pacíficas, humildes, simples, piedosas, cheias de “temor de Deus”
(isto é, que se colocam diante de Jahwéh com serena confiança, em total
obediência e entrega). Representam essa parte do Povo de Deus freqüentemente
maltratada e oprimida pelos poderosos, mas que se entrega com fé, humildade e
confiança nas mãos de Deus e que Deus ama de forma especial.
A missão deste “profeta” é, portanto,
anunciar um tempo novo, de vida plena e de felicidade sem fim, um tempo de
salvação que Deus vai oferecer aos “pobres”.
A segunda parte do texto que nos é
proposto (vs. 10-11) pertence à terceira secção do capítulo. Trata-se da parte
final do oráculo: após o anúncio de salvação apresentado pelo profeta, a cidade
de Jerusalém manifesta o seu regozijo e contentamento porque Deus a vai
revestir de salvação e de justiça, como o noivo que cinge o diadema ou a noiva
que se adorna com suas jóias… A última imagem (“como a terra faz brotar os
gérmenes e o jardim germinar as sementes”) sugere a vida e a fecundidade que
resultarão da ação salvadora e libertadora de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Neste trecho do Trito-Isaías
afirma-se, de forma clara, a existência de um projeto de salvação que Deus tem
para oferecer ao seu Povo, especialmente aos pobres – isto é, a todos aqueles
que vivem numa situação intolerável de carência de bens, de dignidade, de
liberdade, de justiça, de vida. O profeta garante-lhes que Deus os ama, que não
os abandona à sua miséria e sofrimento e que tem um projeto de vida, de
alegria, de felicidade para propor a cada homem ou a cada mulher que a vida
magoou. Esta “boa notícia” deve encher de esperança todos aqueles que não têm
acesso aos bens essenciais (educação, saúde, trabalho, justiça, amor), que não
têm vez nem voz, que são injustiçados e explorados, que são mastigados e
digeridos por um sistema econômico que gera exclusão, alienação e miséria… O
Deus em quem acreditamos, diz o Trito-Isaías, não é um Deus indiferente, que
pactua com o racismo, a exclusão, a violência, a exploração, o terrorismo, o
imperialismo, a prepotência; mas é um Deus que ama cada “pobre” explorado e
injustiçado, que está ao lado dos que sofrem e que dá aos pequenos, aos
marginalizados, aos excluídos a força para vencer o desânimo, a miséria, as
forças da opressão e da morte.
• Como é que Deus atua no mundo? Não é,
normalmente, através de manifestações estrondosas e espetaculares, que deixam a
humanidade abismada e assustada; mas é através dos gestos “banais” desses
profetas a quem Ele confia a missão de lutar contra as forças da opressão e da
morte e a quem Ele chama a testemunhar, no meio dos “pobres”, o amor, a
liberdade, a justiça, a verdade, a vida. Cada crente é um profeta, chamado a
ser testemunha de Deus e sinal vivo do seu amor, da sua justiça e da sua paz.
Como é que eu me situo face a isto? Sinto-me profeta, chamado a testemunhar o
amor, a vida, a liberdade de Deus? Os “pobres”, os oprimidos, os excluídos,
encontram em mim um sinal vivo do amor de Deus? Tenho a coragem de arriscar, de
lutar, de dar a cara para que o mundo seja melhor?
• Os versículos finais do nosso texto
apresentam a reação agradecida e jubilosa do Povo à ação salvadora de Deus… A
descoberta do amor e da presença libertadora de Deus não pode senão conduzir ao
louvor, à adoração, à alegria. Sei ser grato ao Senhor pela sua presença
amorosa, salvadora e libertadora na vida do mundo e na minha vida?
2ª leitura –
1Tes. 5,16-24 - AMBIENTE
Tessalônica era, no século I da nossa
era, a cidade mais importante da Macedônia. Porto marítimo e cidade de intenso
comércio era uma encruzilhada religiosa, na qual os cultos locais coexistiam
lado a lado com todo o tipo de propostas religiosas vindas de todo o
Mediterrâneo.
A cidade foi evangelizada por Paulo
durante a sua segunda viagem missionária, muito provavelmente no Inverno dos
anos 49-50. Paulo chegou a Tessalônica acompanhado de Silvano e Timóteo, depois
de ter sido forçado a deixar a cidade de Filipos. O tempo de evangelização foi
curto – talvez uns três meses; mas foi o suficiente para fazer nascer uma
comunidade cristã numerosa e entusiasta, constituída majoritariamente por
pagãos convertidos. No entanto, a obra de Paulo foi brutalmente interrompida
pela reação da colônia judaica… Os judeus acusaram Paulo de agir contra os decretos
do imperador e levaram alguns cristãos diante dos magistrados da cidade (cf.
At. 17,5-9). Paulo teve de deixar a cidade à pressa, de noite, indo para Bereia
e, depois, para Atenas (cf. At. 17,10-15).
Entretanto, Paulo tinha a consciência
de que a formação doutrinal da comunidade cristã de Tessalônica ainda deixava
muito a desejar. A jovem comunidade, fundada há pouco tempo e ainda
insuficientemente catequizada, estava quase desarmada nesse contexto adverso de
perseguição e de provação (cf. 1Ts. 3,1-10). Preocupado, Paulo enviou Timóteo a
Tessalônica, a fim de saber notícias e encorajar os tessalonicenses na fé (cf.
1Ts. 3,2-5). Quando Timóteo voltou e apresentou o seu relatório, Paulo estava
em Corinto. Confortado pelas informações dadas por Timóteo, o apóstolo decidiu
escrever aos cristãos de Tessalônica, felicitando-os pela sua fidelidade ao
Evangelho. Aproveitou também para esclarecer algumas dúvidas doutrinais que
inquietavam os tessalonicenses e para corrigir alguns aspectos menos exemplares
da vida da comunidade.
A Primeira Carta aos Tessalonicenses é,
com toda a probabilidade, o primeiro escrito do Novo Testamento. Apareceu na
Primavera-Verão do ano 50 ou 51.
O texto que hoje nos é proposto faz
parte das exortações com que Paulo encerra a carta. Depois dos ensinamentos
sobre a segunda vinda do Senhor (cf. 1Tes. 4,13-18) e de um convite veemente a
esperar, vigilantes, esse momento final da história humana (cf. 1Tes. 5,1-11),
Paulo apresenta alguns elementos concretos que os tessalonicenses devem ter sempre
em conta e que devem marcar a existência cristã nesse tempo de espera (cf.
1T.ss 5,12-28).
MENSAGEM
Como é que os cristãos devem, então,
viver esse tempo de espera do Senhor?
No texto que a segunda leitura deste
domingo nos propõe, Paulo não apresenta grandes desenvolvimentos nem reflexões
muito elaboradas… No entanto, o apóstolo apresenta sugestões muito úteis para a
vida cristã e para a construção da comunidade.
Paulo começa por pedir aos
tessalonicenses que vivam alegres e que pautem a sua vida por uma intensa
oração, sobretudo a oração de ação de graças. O cristão é sempre uma pessoa
livre e feliz, consciente da presença salvadora e libertadora de Deus ao seu
lado, que contempla permanentemente esse horizonte último de vida eterna e de
felicidade definitiva que Deus lhe reserva e que, por isso, agradece e louva ao
seu Senhor.
Depois, o apóstolo pede também aos
tessalonicenses que abram o coração ao Espírito e que não desprezem os seus
dons. Esta referência pode significar que as experiências carismáticas
começavam a criar problemas na comunidade… Provavelmente, nem toda a gente
entendia e estava aberta às interpelações que o Espírito fazia através de
alguns membros da comunidade… O novo, o espontâneo, o criativo, chocavam com o
rotineiro, o estabelecido, o pré-fixado. Paulo recomenda aos cristãos de
Tessalônica que saibam tudo analisar com cuidado e discernimento, sem
preconceitos, de coração aberto à novidade de Deus, guardando “o que é bom” e
afastando-se de “toda a espécie de mal”.
Uma comunidade construída de acordo com
estes princípios – que vive a sua existência histórica com alegria e
serenidade, que louva o seu Senhor e que está permanentemente atenta para
discernir e aceitar os dons do Espírito – é uma comunidade “santa” e
irrepreensível, preparada para acolher, em qualquer momento, o Senhor que vem.
ATUALIZAÇÃO
• A existência cristã é uma caminhada
ao encontro do Senhor que vem. Na sua peregrinação pela história, mergulhados
na alegria e na tristeza, no sofrimento e na esperança, os crentes não podem
perder de vista essa meta final que dá sentido a toda a caminhada. O caminho
cristão deve ser percorrido na atenção e na vigilância, procurando viver com
coerência os compromissos assumidos no dia do Batismo e na fidelidade às
propostas de Deus.
• De acordo com a Palavra de Deus que
nos é proposta, esse caminho deve ser percorrido na alegria… O cristão é
alegre, porque sabe para onde caminha e está certo de que no final da caminhada
encontra os braços amorosos de Deus que o acolhem e o conduzem para a
felicidade plena, para a vida definitiva. Nem os sofrimentos, nem as
dificuldades, nem as incompreensões, nem as perseguições podem eliminar essa
alegria serena de quem confia no encontro com o Senhor. É essa alegria serena e
essa paz que marcam a nossa existência e que brilham nos nossos olhos, ou somos
seres derrotados, desiludidos, que se arrastam pela vida mergulhados no
desespero e na solidão, sem rumo e ao sabor da corrente e das marés?
• De acordo com a Palavra de Deus que
nos é proposta, esse caminho deve ser percorrido também num diálogo nunca
acabado com Deus. O crente é alguém que “ora sem cessar” e “dá graças em todas
as circunstâncias” pelos dons de Deus, pela sua presença amorosa, pela salvação
que Deus não cessa de oferecer em cada passo da caminhada. Sabemos encontrar
espaços para o diálogo com Deus? Sabemos sentir-nos gratos por esses dons que,
a cada instante, Deus nos oferece?
• De acordo com a Palavra de Deus que
nos é proposta, esse caminho deve ser percorrido, ainda, numa atitude de permanente
atenção aos dons e aos desafios do Espírito. Sabemos estar atentos às propostas
de Deus, ou deixamo-nos prender num esquema de instalação, de rotina, de
preconceitos que não nos deixam acolher e responder aos desafios e à novidade
de Deus?
Evangelho Jo
1,6-8.19-28 - AMBIENTE
6Surgiu um homem enviado por Deus; seu nome era João. 7Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele. 8Ele não era a luz, mas veio dar testemunho da luz. 19Este foi o testemunho de João, quando os judeus enviaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para perguntar: “Quem és tu?”
20João confessou e não negou. Confessou: “Eu não sou o Messias”.
21Eles
perguntaram: “Quem és então? És tu Elias?” João respondeu: “Não sou”.
Eles perguntaram: “És profeta?” Ele respondeu: “Não”.
22Perguntaram então: “Quem és, afinal? Temos que levar uma resposta para aqueles que nos enviaram. O que dizes de ti mesmo?” 23João declarou: “Eu sou a voz que grita no deserto: ‘Aplainai o caminho do Senhor’” — conforme disse o profeta Isaías.
24Ora, os que tinham sido enviados pertenciam aos fariseus 25e perguntaram: “Por que então andas batizando, se não és o Messias, nem Elias, nem o Profeta?”
26João respondeu: “Eu batizo com água; mas no meio de vós está aquele que vós não conheceis, 27e que vem depois de mim. Eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias”.
28Isto aconteceu em Betânia, além do Jordão, onde João estava batizando.
O Evangelho segundo João começa com uma
composição que se convencionou chamar “prólogo” (cf. Jo 1,1-18). Trata-se,
provavelmente, de um primitivo hino cristão conhecido da comunidade joânica,
que o autor do Quarto Evangelho adaptou e onde se expressa a fé da comunidade
em Cristo, Palavra viva de Deus, enviado ao mundo para concretizar o plano de
salvação que Deus tinha para oferecer aos homens. Os primeiros três versículos
do texto que hoje nos é proposto (cf. Jo 1,6-8) pertencem a esse “prólogo”.
Depois do “prólogo”, o autor do Quarto
Evangelho desenvolve, em várias etapas, a sua catequese sobre Jesus. Na “secção
introdutória” que se segue imediatamente ao “prólogo” (cf. Jo 11,19-3,36), ele
procura dizer quem é Jesus e definir a sua missão, fazendo entrar
sucessivamente em cena várias personagens cuja função é apresentar ao leitor a
figura de Jesus. De entre estas personagens, sobressai a figura de João
Baptista, o “apresentador” oficial de Jesus. Ele aparece no início (cf. Jo 1,19-37)
e no fim (cf. Jo 3,22-36) dessa secção introdutória a dar testemunho sobre
Jesus. O corpo central do texto evangélico que hoje nos é proposto apresenta,
precisamente, um primeiro testemunho que João dá sobre Jesus, diante dos
enviados das autoridades judaicas.
Para percebermos o alcance do diálogo
entre João e os líderes judaicos, é preciso ter em conta o ambiente político,
social e religioso da Palestina do século I… Dominado pelos romanos, humilhado
e impossibilitado de definir o seu destino, afogado em impostos ruinosos,
explorado por uma classe dirigente comodamente instalada nos seus privilégios,
escravizado por um sistema religioso ritual e legalista, o Povo de Deus vivia
na expectativa da chegada do Messias libertador, enviado por Deus para inaugurar
uma nova era de liberdade, de alegria, de felicidade. Muitos israelitas estavam
dispostos a aproveitar qualquer oportunidade de libertação e eram presa fácil
dos falsos messias e dos vendedores de sonhos. As freqüentes aventuras
messiânicas falhadas só aumentavam a violência, a miséria, a pobreza e a
frustração nacional.
A hierarquia religiosa judaica não
gostava demasiado de ouvir falar na chegada do Messias. De fato, um dos
objetivos do Messias, segundo a concepção corrente, deveria ser a reforma das
instituições da hierarquia religiosa judaica, considerada indigna. Não admira,
pois, que as autoridades se inquietassem diante da atividade de João.
MENSAGEM
Na primeira parte do nosso texto (vs.
6-8), apresenta-se João. Dele dizem-se duas coisas: que é “um homem” e que foi
“enviado por Deus”. O agente principal nesta história é, naturalmente, Deus: é
Deus que escolhe esse homem e o envia ao mundo com uma missão concreta. É,
habitualmente, esse o “método” de Deus: chama homens, confia-lhes uma missão e,
através deles, intervém no mundo. A missão de João é “dar testemunho da luz”. A
“luz”, no Quarto Evangelho, representa essa realidade que vem de Deus e com a
qual Deus se propõe construir para os homens um mundo novo de vida definitiva e
de felicidade total. João não atua por sua própria iniciativa, mas em resposta
à escolha divina e para concretizar uma missão que Deus lhe confiou.
Por outro lado, embora enviado por
Deus, João não é “a luz” – isto é, ele não tem a capacidade de eliminar as
trevas que escurecem e desfeiam a vida dos homens, porque não tem a capacidade
de dar vida aos homens. João é apenas “a testemunha” que vem preparar os homens
para acolher esse que vai chegar e que será “a luz/vida”.
Na segunda parte do nosso texto (vs.
19-28), temos o “testemunho” de João. A cena coloca-nos diante de uma comissão
oficial, enviada de Jerusalém para investigar João e constituída por sacerdotes
e levitas (encarregados, entre outras coisas, de vigiar a ortodoxia e a
fidelidade à ordem religiosa judaica). No ambiente de messianismo exacerbado da
época, a figura de João e o seu testemunho resultam inquietantes para os
líderes religiosos judeus…
A comissão investigadora começa por
interrogar João com uma pergunta aparentemente inócua: “quem és tu?”. Os
interrogadores não tomam posição. Limitam-se a esperar que o próprio João
declare a sua posição e as suas intenções. João descarta totalmente a hipótese
de ser o Messias. Também não aceita identificar-se com Elias (de acordo com
Mal. 3,22-23, Elias devia vir preparar o “dia de Jahwéh” – que, no século I era
o dia da vinda do Messias libertador, enviado por Deus para construir um mundo
novo). Tampouco aceita assumir o título de “o profeta” (este título parece
aludir a Dt 18,15 e significava, na época de Jesus, um “segundo Moisés” que
deveria aparecer nos últimos tempos). Na verdade, João não aceita que lhe
atribuam nenhuma função que possa centrar a atenção na sua própria pessoa. As
suas três respostas são rotundas negativas. Ele não busca a sua glória ou a sua
afirmação, nem vem em seu próprio nome; a sua missão é meramente dar testemunho
da “luz” e é para essa “luz” que os holofotes devem ser apontados.
É dentro deste enquadramento que
devemos entender a resposta de João, quando os seus interlocutores o convidam a
definir-se: “eu sou uma voz”. “Voz” é um termo relacional que supõe ouvintes a
quem é comunicada uma mensagem… A “voz” não tem rosto, é anônima e passa
despercebida; o importante é o conteúdo da mensagem. É isso que João é: uma
“voz” através da qual Deus passa aos homens uma mensagem. É à mensagem e não à
“voz” que os homens devem dar atenção.
A mensagem que a “voz” veicula é:
“endireitai o caminho do Senhor”. A expressão é tomada de Is. 40,3, numa versão
livre. Em Isaías, a expressão é usada no contexto da intervenção salvadora de
Deus para fazer regressar à Terra da Liberdade os judeus cativos na Babilônia.
Pedia que o Povo instalado e acomodado, desanimado e frustrado fizesse um
esforço para acolher os desafios de Deus e aceitasse pôr-se a caminho com Deus em
direção a um futuro novo de vida e de esperança. É essa mesma realidade que
João é chamado a acordar no coração do seu Povo.
As respostas negativas de João
desconcertam a comissão… Se João não reivindica nenhum dos títulos tradicionais
– “Messias”, “Elias”, “o profeta” – a que título é que ele batiza?
O batismo ou imersão na água era um
símbolo relativamente freqüente no judaísmo. Era usado como rito de purificação
(por exemplo, para um enfermo curado da sua doença – cf. Lev. 14,8) ou para
significar a mudança de estado de vida (podia significar, por exemplo, a
passagem de uma situação de escravidão a uma situação de liberdade; para os
prosélitos, significava o abandono das práticas e crenças pagãs e a adesão ao
judaísmo). O batismo de João significava, provavelmente, a ruptura com a vida
das trevas e o desejo de aderir a uma nova vida. Para João seria, apenas, um
primeiro passo para acolher “a luz”.
João evita responder diretamente à
objeção que os fariseus lhe colocam. Ele prefere desvalorizar o seu batismo com
água e apontar para “aquele” que vem e a quem João não é digno “de desatar as
correias das sandálias”. Esse é que é “a luz” que vai libertar o homem da
escuridão, da cegueira, da mentira, do egoísmo, do pecado. É como se João
dissesse: “não vos preocupeis com o batismo com água que eu administro, pois
ele é, apenas, um símbolo de transformação e de adesão a uma nova realidade;
mas olhai antes para essa nova realidade que já está no meio de vós e que o
Messias vos vai oferecer. É o batismo do Messias (o batismo no Espírito) que
transformará totalmente os corações dos homens, os fará livres e lhes dará a
vida definitiva. Esse que vem batizar no Espírito já está presente, a fim de
iniciar a sua obra libertadora. Procurai conhecê-lo – isto é, escutá-lo e
acolher a sua proposta de vida e de libertação”.
A indicação de que os líderes não
“conhecem” esse “alguém” que já chegou e do qual João apenas é “a voz” é,
provavelmente, uma denúncia da situação em que se encontra a classe dirigente
judaica, instalada nos seus privilégios, certezas e preconceitos e muito pouco
aberta à novidade e aos desafios de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• A “voz”, através da qual Deus fala,
convida-nos a endireitar “o caminho do Senhor”. É, na linguagem do Evangelho
segundo João, um convite a deixar “as trevas” e a nascer para “a luz”. Implica
abandonar a mentira, os comportamentos egoístas, as atitudes injustas, os
gestos de violência, os preconceitos, a instalação, o comodismo, a
auto-suficiência, tudo o que desfeia a nossa vida, nos torna escravos e nos
impede de chegar à verdadeira felicidade. Em termos pessoais, quais são as
mudanças que eu tenho de operar na minha existência para passar das “trevas”
para a “luz”? O que é que me escraviza e me impede de ser plenamente feliz? O
que é que na minha vida gera desilusão, frustração, desencanto, sofrimento?
• A “voz”, através da qual Deus fala,
convida-nos a olhar para Jesus, pois só Ele é “a luz” e só Ele tem uma proposta
de vida verdadeira para apresentar aos homens. À nossa volta abundam os
“vendedores de sonhos”, com propostas de felicidade “absolutamente garantida”.
Atraem-nos, seduzem-nos, manipulam-nos, escravizam-nos e, quase sempre,
deixam-nos decepcionados e infelizes, mais angustiados, mais perdidos, mais
frustrados. João garante-nos: só Jesus é “a luz” que liberta os homens da
escravidão e das trevas e lhes oferece a vida verdadeira e definitiva. A quem
dou ouvidos: às propostas de Jesus, ou às propostas da moda, do politicamente
correto, das pessoas “in” que aparecem dia a dia nas colunas sociais e que
ditam o que está certo e está errado à luz dos critérios do mundo? Que
significado é que Jesus e a sua proposta assumem no meu dia a dia?
• Jesus marca, realmente, a minha
existência? Os valores que Ele veio propor têm peso e impacto nas minhas
decisões e opções? Quando celebro o nascimento de Jesus, celebro um
acontecimento do passado que deixou a sua marca na história, ou celebro o
encontro com alguém que é “a luz” que ilumina a minha existência e que enche a
minha vida de paz, de alegria, de liberdade?
• O “homem chamado João”, enviado por
Deus “para dar testemunho da luz”, convida-nos a pensar sobre a forma de Deus
atuar na história humana e sobre as responsabilidades que Deus nos atribui na
recriação do mundo… Deus não utiliza métodos espetaculares e assombrosos para
intervir na nossa história e para recriar o mundo; mas Ele vem ao encontro dos
homens e do mundo para os envolver no seu amor através de pessoas concretas,
com um nome e uma história, pessoas “normais” a quem Deus chama e a quem confia
determinada missão. A todos nós, seus filhos, Deus confia uma missão no mundo –
a missão de dar testemunho da “luz” e de tornar presente, para os nossos
irmãos, a proposta libertadora de Jesus. Tenho consciência de que Deus me chama
e me envia ao mundo? Como é que eu respondo ao chamamento de Deus: com
disponibilidade e entrega, ou com preguiça, comodismo e instalação?
• A atitude simples e discreta com que
João se apresenta é muito sugestiva: ele não procura atrair sobre si as
atenções, não usa a missão para a sua glória ou promoção pessoal, não busca a
satisfação de interesses egoístas; ele é apenas uma “voz” anônima e discreta
que recorda, na sombra, as realidades importantes. João é uma tremenda
interpelação para todos aqueles a quem Deus chama e envia… Com ele, o profeta
(isto é, todo aquele a quem Deus chama e a quem confia uma missão) deve
aprender a ficar na sombra, a ser discreto e simples, de forma a que as pessoas
não o vejam a ele mas às realidades importantes que ele propõe.
• A atitude dos fariseus e dos líderes
judaicos, cheios de preconceitos, preocupados em manter os seus esquemas de
poder e instalação, instalados no seu comodismo e nos seus privilégios,
impede-os de “conhecer” “a luz” que está a chegar. Trata-se de um aviso, para
nós: quando nos instalamos no nosso comodismo, no nosso bem-estar, na nossa
auto-suficiência, fechamos o coração à novidade e aos desafios que Deus nos
faz… Dessa forma, não reconhecemos Jesus quando Ele vem ao nosso encontro e não
O deixamos entrar na nossa vida. A liturgia convida-nos, neste Advento, à
desinstalação, a fim de que o Senhor que vem possa nascer na nossa vida.
P. Joaquim Garrido, P. Manuel
Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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