quarta-feira, 22 de outubro de 2014

"SEM LUGAR PARA RECLINAR A CABEÇA"

O mundo precisa decidir: vamos ajudá-los a suportar o inverno ou vamos reassentá-los em outro país?

Dezenas de milhares de refugiados no norte do Iraque se preparam para enfrentar o inverno em tendas de campanha ou em prédios inacabados. Organizações de ajuda humanitária, governos regionais e ONGs estão fazendo o que podem para manter os desabrigados aquecidos, saudáveis e bem alimentados, mas a tarefa é gigantesca e a crise humanitária é cada vez mais real.

"A situação é terrível e não vai melhorar tão cedo. Está piorando, aliás. As pessoas precisam desesperadamente de ajuda e o governo do Iraque não tem ajudado de forma alguma", diz Joseph T. Kassab, fundador e presidente do Iraqi Christians Advocacy and Empowerment Institute, sediado nos Estados Unidos. "O inverno é cruel no Iraque. E tem muita gente vivendo em abrigos ou a céu aberto".

Joseph é irmão do bispo Jibrael Kassab, da Igreja Caldéia da Austrália e da Nova Zelândia, e foi, ele próprio, um refugiado iraquiano na década de 1980.

Estima-se que haja 120 mil refugiados cristãos em Erbil, a capital dos curdos iraquianos, vivendo em escolas, igrejas, mosteiros e parques depois de terem sido obrigados a deixar as suas casas em Mossul e em outras cidades da planície de Nínive, durante o último verão, pelas forças brutais do grupo terrorista Estado Islâmico.

Natalia Prokopchuk, porta-voz no Iraque do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), descreveu diversos projetos que o ACNUR vem implementando para ajudar os desabrigados internos a enfrentarem o inverno, o que inclui a distribuição de cobertores e de aquecedores a querosene. "Também estamos impermeabilizando e isolando para o inverno as paredes e o piso das tendas onde as pessoas estão morando", informou ela.

Mas os recursos limitados só permitem que a agência ajude a metade dos desabrigados. Mediante a construção de abrigos, a prestação de cuidados médicos e a oferta de financiamentos, também há várias agências católicas ajudando na região: a Caritas, a Ajuda à Igreja que Sofre, a Associação Católica para o Bem-Estar do Oriente Próximo, os Cavaleiros de Colombo e a Malteser International, além de organizações iraquiano-americanas como o Conselho de Socorro aos Cristãos Iraquianos. Juliana Taimoorazy, fundadora e presidente desta última entidade, conta que a organização tem apresentado pedidos a empresas dos Estados Unidos para que elas doem medicamentos e produtos de higiene de primeira necessidade aos refugiados.

Por causa da escassez de medicamentos, há pessoas morrendo de doenças cardíacas e diabetes, afirma Taimoorazy, ela própria uma cristã assíria que encontrou asilo no Ocidente durante a década de 1980.

A Malteser International, agência de ajuda da Ordem de Malta, está montando um centro de atendimento primário de saúde em um dos dois campos do ACNUR, em construção entre Dohuk e Zakho, no norte da região, onde as temperaturas de inverno podem cair para 5 graus. "Eu estive em Dohuk e vi famílias morando em edifícios que ainda estão em construção, sem paredes", relata o coordenador de emergências da Malteser, Leigh Ryan, que acaba de voltar de um período de dois meses na região.

No entanto, mesmo que os deslocados internos sobrevivam ao inverno com a ajuda necessária, a questão que permanece viva na mente dos refugiados e das pessoas que os ajudam é: "Será que os cristãos ainda têm um futuro no Iraque?".

"Eles estão muito traumatizados. Eu nunca vi um povo tão deprimido", afirma o padre Andrzej Halemba, chefe da seção Ásia-África da organização Ajuda à Igreja que Sofre. O sacerdote visitou Erbil recentemente e relata: "Eles dizem: ‘Os cristãos não têm futuro aqui. É o fim, nós não vamos sobreviver’".  

A Ajuda à Igreja que Sofre está construindo uma espécie de “vila” para abrigar 4.000 refugiados no inverno, além de ajudar na edificação de oito escolas em Erbil e Dohuk.

Mesmo que a coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos vença os terroristas do Estado Islâmico, os refugiados cristãos se dizem relutantes em voltar para as casas de onde fugiram, conforme relatam o pe. Halemba e outros entrevistados para esta matéria. Os cristãos, cujo número vem diminuindo há trinta anos no Iraque, sentem-se traídos pelo governo central de Bagdá, pela milícia curda dos peshmerga, que não conseguiu proteger as suas cidades do ataque do Estado Islâmico apesar das garantias que tinha dado aos moradores cristãos, e ainda pelos próprios antigos vizinhos, que, em muitos casos, assaltaram as propriedades que os cristãos foram forçados a abandonar.

Diz o pe. Halemba: "Eles [os cristãos iraquianos] só têm um pensamento: ir embora. ‘Não vamos mais voltar. Se fomos traídos três vezes, como é que podemos ter confiança? Como é que podemos construir um futuro?’".

A ativista internacional pela liberdade religiosa Nina Shea concorda que os cristãos do Iraque se sentem vulneráveis​​. Comentando na semana passada sobre o sequestro e posterior liberação de um sacerdote franciscano na Síria, ela disse que "os cristãos leigos vêm sendo sequestrados aos milhares, tanto no Iraque quanto na Síria, porque eles não têm nenhuma proteção. Nem das milícias, nem das redes tribais, nem dos seus governos, nem de nenhuma potência estrangeira. Assim, para os sequestradores, só existem consequências positivas quando eles sequestram cristãos: não há punição e eles ainda podem conseguir dinheiro com o resgate".

Shea, que dirige o Centro para a Liberdade Religiosa no Instituto Hudson e já fez parte da Comissão Norte-Americana para a Liberdade Religiosa Internacional, disse que a planície de Nínive, localizada no norte do Iraque e lar de cristãos durante quase 2000 anos, sofreu "uma verdadeira ‘limpeza religiosa’ cujos efeitos vão durar muitos anos. Eu não vejo como os cristãos possam retornar sem proteção. E não há proteção nenhuma para eles. Eles vão partir para outro país. A Igreja, na sua estrutura internacional, precisa de um plano muito sério de reassentamento para eles, seja em algum lugar na região, seja em algum lugar no Ocidente, porque para casa eles não podem mais voltar".

O pe. Halemba relata que, a cada dia, dez ou mais famílias cristãs emigram do Iraque. É um número aparentemente pequeno, mas faz diferença num panorama de drástica redução da presença de cristãos no Iraque: de cerca de 1,5 milhão em 2003 para cerca de 400 mil atualmente.

A delicadeza da situação fez com que, a pedido do papa Francisco, a reunião de cardeais no Vaticano, neste dia 20 de outubro, incluísse discussões específicas sobre o drama dos cristãos perseguidos no Oriente Médio.

Joseph Kassab observou que a Igreja na região está "fazendo um apelo para o nosso povo ficar e nós concordamos. Mas ficar como?". Ele gostaria que houvesse mais vistos disponíveis para os refugiados nos países ocidentais, especialmente para aqueles que querem se reencontrar com as suas famílias na diáspora.

Nina Shea formula o dilema: "Nós estamos num ponto em que precisamos tomar uma decisão: vamos enviar ajuda maciça ao Curdistão para que eles enfrentem o inverno ou vamos investir os recursos em reassentá-los num terceiro país?".  

 

 

 

 

 

John Burger 

 

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