A
liturgia do 29º domingo do tempo comum convida-nos a refletir acerca da forma
como devemos equacionar a relação entre as realidades de Deus e as realidades
do mundo. Diz-nos que Deus é a nossa prioridade e que é a Ele que devemos
subordinar toda a nossa existência; mas avisa-nos também que Deus nos convoca a
um compromisso efetivo com a construção do mundo.
O
Evangelho ensina que o homem, sem deixar de cumprir as suas obrigações com a comunidade
em que está inserido, pertence a Deus e deve entregar toda a sua existência nas
mãos de Deus. Tudo o resto deve ser relativizado, inclusive a submissão ao
poder político.
A
primeira leitura sugere que Deus é o verdadeiro Senhor da história e que é Ele
quem conduz a caminhada do seu Povo rumo à felicidade e à realização plena. Os
homens que atuam e intervêm na história são apenas os instrumentos de que Deus
se serve para concretizar os seus projetos de salvação.
A
segunda leitura apresenta-nos o exemplo de uma comunidade cristã que colocou
Deus no centro do seu caminho e que, apesar das dificuldades, se comprometeu de
forma corajosa com os valores e os esquemas de Deus. Eleita por Deus para ser
sua testemunha no meio do mundo, vive ancorada numa fé ativa, numa caridade
esforçada e numa esperança inabalável.
Leitura
I – Is 45,1.4-6
AMBIENTE
O
texto que hoje nos é proposto pertence ao “Livro da Consolação” do
Deutero-Isaías (cf. Is. 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que
os biblistas designam um profeta anônimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua
missão profética na Babilônia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final
do Exílio, entre 550 e 539 a.C.
Durante
o reinado de Nabónides, rei da Babilônia, desponta na Pérsia uma nova estrela
da política internacional… Em 553 a.C., Ciro, rei dos Persas, conquista a
capital da Média (Ecbátana) e junta no mesmo império os Medos e os Persas.
Depois (547 a.C.), marcha contra a Lídia, conquista Sardes e apodera-se da
maior parte da Ásia Menor. Nos anos seguintes, uma série de vitórias
fulgurantes dão-lhe o domínio do Irão oriental, do Afeganistão e do Turquestão,
até à Índia. Fortalecido em ouro e em homens dirige, em seguida, os seus
exércitos contra a Babilônia e, em 539 a.C., entra vitorioso na capital
babilônica onde, sem qualquer oposição, é recebido como libertador.
A
atividade profética do Deutero-Isaías desenvolve-se nos anos que precederam a
entrada vitoriosa de Ciro na Babilônia… As notícias que chegam sobre as
vitórias de Ciro fazem os exilados sonhar com a proximidade da libertação do
cativeiro. À alegria pela libertação iminente junta-se, no entanto, alguma
confusão e perplexidade… Então o libertador não vai sair do meio do Povo de
Deus, mas é um rei estrangeiro? E quando a libertação acontecer, a quem deve
ser atribuída: a Jahwéh, o Deus dos exilados judeus, ou a Marduk, o deus de
Ciro? Jahwéh ter-se-á desinteressado do seu Povo? Ou terá perdido o seu poder?
Trata-se
de um problema teológico sério que, em última análise, pode determinar a
manutenção ou não da fé do Povo em Jahwéh. O Deutero-Isaías vai procurar
esclarecer esta questão e explicar o papel de Jahwéh nos acontecimentos.
MENSAGEM
O
Deutero-Isaías não tem dúvidas: Jahwéh é o verdadeiro condutor de todo o
processo que vai culminar na libertação do Povo de Deus. Ciro, o grande rei que
se apresta para derrubar o orgulhoso poderio babilônico, é “o ungido” (no
original hebraico: “o messias”; em grego: “o cristo”) de Jahwéh. Dizer que Ciro
é “o ungido” significa dizer que ele recebeu a “unção” com óleo; e que, através
dessa “unção”, Ciro recebeu o Espírito de Deus e foi investido para uma missão.
No Antigo Testamento, a unção com óleo capacita o “ungido” seja para a missão
real (cf. 2Sam. 5,3), seja para a missão sacerdotal (cf. Ex. 29,7), seja para a
missão profética (cf. 1Re. 19,16; Is 61,1). Aqui trata-se, evidentemente, da
missão real… Portanto, Deus escolheu Ciro, derramou sobre ele o seu Espírito e
concedeu-lhe a insígnia do poder (“cingi-te” - v. 5) para que ele, desempenhando
a sua missão real, se tornasse o instrumento de Deus no mundo.
O
que é que, em concreto, Jahwéh pede a Ciro? Qual a missão que Ele lhe confia?
Ciro
foi designado por Deus para “subjugar as nações”, “fazer cair as armas das
cinturas dos reis”, “abrir as portas à sua frente sem que nenhuma lhe seja
fechada”. As expressões utilizadas pelo Deutero-Isaías situam a missão confiada
por Deus a Ciro no âmbito político-militar… No entanto, o que é aqui
preponderante é que essa missão deve concretizar-se em benefício do Povo de
Deus: se Deus chamou Ciro “pelo nome”, lhe deu “um título glorioso” e lhe
confiou o poder sobre as nações foi, nas palavras de Jahwéh, “por causa de
Jacob, meu servo, e de Israel, meu eleito…”. Ciro aparece, claramente, como o
instrumento através do qual Deus atua no mundo e na história e realiza os seus
projetos de salvação e de libertação do seu Povo. É através dos homens que Deus
intervém no mundo.
De
resto, o Deutero-Isaías deixa claro que só Jahwéh é o Senhor da história e que,
fora d’Ele, não há Deus. É verdade que Ciro ainda não conhece Jahwéh; mas, sem
o saber, ele está a realizar o projeto do Senhor.
Portanto,
é a Jahwéh e não a Marduk que os exilados devem agradecer a sua libertação.
Embora servindo-se de um rei estrangeiro, Jahwéh vai mostrar a Judá que é,
definitivamente, esse Deus salvador e libertador, em quem o Povo pode sempre
confiar.
ATUALIZAÇÃO
Também
nós – como os exilados de Judá – ficamos, tantas vezes, perplexos e inquietos
diante dos acontecimentos do nosso tempo. Não percebemos o significado nem o
alcance de certos eventos e não conseguimos saber para onde é que a história
nos conduz. Sentimo-nos perdidos, assustados, à deriva, como barco sem leme… E,
para além disso, Deus parece manter-se em silêncio, assistindo calmamente e sem
mexer um dedo, aos dramas que marcam o ritmo da nossa caminhada.
Perguntamo-nos: onde está Deus, quando a história humana parece percorrer
caminhos tão ínvios? Ele preocupa-Se, realmente, com os homens? Qual o seu
papel na condução dos destinos do mundo? Porque é que Ele deixa que os homens
destruam o planeta, inventem esquemas sofisticados de destruição e de morte,
cultivem a exploração e a injustiça, mantenham tantos homens, mulheres e
crianças amarrados à miséria e à escravidão? A primeira leitura deste domingo
garante-nos: Deus nunca abandona os homens. Ele encontra sempre formas de
intervir na história e de concretizar os seus projetos de vida, de salvação, de
libertação… Talvez as intervenções de Deus nem sempre sejam ortodoxas à luz da
lógica dos homens; talvez nem sempre consigamos perceber o verdadeiro alcance
dos projetos de Deus; mas Deus lá está, como Senhor da história, conduzindo o
mundo de acordo com o projeto de vida que Ele tem para os homens e para o
mundo. Resta-nos, mesmo quando não percebemos os seus critérios, confiarmos e
entregarmo-nos nas suas mãos.
•
Normalmente, Deus não intervém na história através de manifestações
impressionantes, espetaculares, caídas do céu, que se impõem como verdades
infalíveis e que deixam os homens espantados… Deus actua no mundo com
simplicidade e discrição, através de pessoas – muitas vezes pessoas limitadas,
pecadoras, “normais” – a quem Ele chama e a quem Ele confia uma missão. O que é
fundamental é que cada homem ou cada mulher que Deus chama esteja disponível
para acolher esse chamamento e para aceitar ser instrumento de Deus na
construção de um mundo novo.
•
Aqueles que detêm responsabilidades na condução das comunidades (civis ou
religiosas) devem procurar, através de um diálogo contínuo e próximo com Deus,
perceber os seus projetos e planos para o mundo e para os homens. Só assim
poderão ser instrumento de Deus na construção de um mundo melhor.
•
Ciro, frustrando todas as expectativas do Povo de Deus, é um pagão que “não
conhecia” Jahwéh… Apesar disso (de acordo com a catequese do Deutero-Isaías),
foi ele quem Deus escolheu como seu instrumento a fim de concretizar os seus
projetos em favor do seu Povo. Deus pode servir-Se daquele que é pecador e
marginal aos olhos do mundo para oferecer aos homens a vida e a salvação. O que
interessa não são as “qualidades” do intermediário, mas a força de Deus. É
necessário ter isto presente… Se conseguimos fazer algo para tornar o mundo um
pouco melhor, isso não se deve às nossas brilhantes qualidades, mas a esse Deus
que age por nosso intermédio.
•
A escolha de Ciro significa também a denúncia de uma perspectiva fechada,
nacionalista, racista, de Deus e dos seus projetos. Ninguém tem o monopólio de
Deus ou da missão… Deus é totalmente livre de chamar quem quiser, quando quiser
e como quiser – seja de que raça for, de que estrato social for, ou sejam quais
forem os seus antecedentes religiosos. Certos cristãos que se sentem os únicos
detentores da autoridade e da missão e que se ficam quase ofendidos quando aparece
alguém a fazer algo de diferente na paróquia, deviam ter isto em conta.
2ª
leitura: 1Tes. 1,1-5b - AMBIENTE
Tessalônica
era, no século I da nossa era, a cidade mais importante da Macedônia.
Importante porto marítimo e cidade de intenso comércio, era uma encruzilhada
religiosa, na qual os cultos locais coexistiam lado a lado com todo o tipo de
propostas religiosas vindas de todo o Mediterrâneo.
Tessalônica
foi evangelizada por Paulo durante a sua segunda viagem missionária, muito
provavelmente no Inverno dos anos 49-50. Paulo chegou a Tessalônica acompanhado
de Silvano e Timóteo, depois de ter sido forçado a deixar a cidade de Filipos.
O tempo de evangelização foi curto – talvez uns três meses; mas foi o
suficiente para fazer nascer uma comunidade cristã numerosa e entusiasta,
constituída majoritariamente por pagãos convertidos. No entanto, a obra de
Paulo foi brutalmente interrompida pela reação da colônia judaica… Os judeus
acusaram Paulo de agir contra os decretos do imperador e levaram alguns cristãos
diante dos magistrados da cidade (cf. At. 17,5-9). Paulo teve de deixar a
cidade à pressa, de noite, indo para Bereia e, depois, para Atenas (cf. At.
17,10-15).
Entretanto,
Paulo tinha a consciência de que a formação doutrinal da comunidade cristã de Tessalônica
ainda deixava muito a desejar. A jovem comunidade, fundada há pouco tempo e
ainda insuficientemente catequizada, estava quase desarmada nesse contexto
adverso de perseguição e de provação (cf. 1Tes. 3,1-10). Preocupado, Paulo
enviou Timóteo a Tessalônica, a fim de saber notícias e encorajar os
tessalonicenses na fé (cf. 1Tes. 3,2-5). Quando Timóteo voltou e apresentou o
seu relatório, Paulo estava em Corinto. Confortado pelas informações dadas por
Timóteo, o apóstolo decidiu escrever aos cristãos de Tessalônica,
felicitando-os pela sua fidelidade ao Evangelho. Aproveitou também para
esclarecer algumas dúvidas doutrinais que inquietavam os tessalonicenses e para
corrigir alguns aspectos menos exemplares da vida da comunidade.
A
Primeira Carta aos Tessalonicenses é, com toda a probabilidade, o primeiro
escrito do Novo Testamento. Apareceu na Primavera-Verão do ano 50 ou 51.
O
texto que nos é proposto apresenta-nos o endereço da carta (“Paulo, Silvano e
Timóteo à Igreja dos Tessalonicenses que está em Deus Pai e no Senhor Jesus
Cristo” – 1Tes. 1,1) e um estrato de uma longa oração colocada no início da
carta, na qual Paulo dá graças a Deus pelo comportamento exemplar dos
tessalonicenses: apesar das provas que tiveram de suportar, permanecem fiéis ao
Evangelho e ao ensino de Paulo (cf. 1Tes. 1,2-3,13).
MENSAGEM
O
verbo principal do nosso texto é o verbo grego “eukharistéô”(“dar
graças”); todos os outros verbos que aparecem são secundários. Assim, fica logo
claro quais os sentimentos e qual a atitude fundamental de Paulo, Silvano e
Timóteo, os remetentes da carta: eles estão profundamente agradecidos e
reconhecidos a Deus. Porquê?
Porque
a ação de Deus se nota claramente na vida diária da comunidade cristã de
Tessalônica. Diante da proposta do Evangelho, os tessalonicenses responderam
generosamente, com uma fé ativa, uma caridade esforçada e uma esperança firme
(v. 3). A “fé ativa” traduz a realidade de uma adesão ao Evangelho que não se
manifesta só em palavras, mas também em atitudes concretas de conversão e de
transformação; a “caridade esforçada” dá conta de um amor que não é teórico mas
é efetivo, e que se traduz em gestos de entrega, de partilha, de doação; e a
“esperança firme” define essa confiança inabalável dos tessalonicenses em Deus
e na vida nova que Ele reserva àqueles que O amam – confiança que, nem a
hostilidade do mundo, nem as dificuldades da vida conseguem deitar por terra.
Na
verdade, tudo isto resulta do fato de os tessalonicenses terem sido
“escolhidos” por Deus (v. 4). No Antigo Testamento, a “eleição” é um privilégio
de Israel, escolhido por Deus de entre os outros povos, não em virtude dos seus
méritos particulares, mas como resultado da graça e do amor de Deus; agora, são
as comunidades cristãs de origem pagã que são objeto do mesmo privilégio, que
tem a sua fonte no amor gratuito do Deus salvador.
O
Evangelho que Paulo, Silvano e Timóteo anunciaram aos tessalonicenses não foi
um discurso feito de belas palavras, mas inconseqüente; foi uma Boa Nova de
Deus, poderosa e transformadora, que encontrou eco no coração dos
tessalonicenses que, pela ação do Espírito Santo, deu frutos de fé, de amor e
de esperança (v. 5a.b).
É
por tudo isto que Paulo, Silvano e Timóteo louvam o Senhor.
ATUALIZAÇÃO
Hoje,
uma comunidade cristã que viva, com fidelidade e entusiasmo, a fé, a esperança
e a caridade, não será notícia; em contrapartida, os meios de comunicação
social explorarão, com gosto, a vida de uma comunidade cristã marcada pelos
escândalos, pelos dramas, pelas infidelidades… Tornamo-nos progressivamente
insensíveis às coisas bonitas e boas e só nos deixamos impressionar pelo
espampanante, pelo escandaloso, por aquilo que chama a atenção por razões
negativas. O nosso texto convida-nos, antes de mais, a repararmos nos
testemunhos de fé, de amor e de esperança que encontramos à nossa volta e a
vermos aí a presença e a ação de Deus no mundo.
O
nosso texto convida-nos, depois, a renovar e potenciar a nossa capacidade de
louvar e de agradecer a Deus. Ao contemplarmos tantos gestos de bondade, de amor,
de doação, de solidariedade que, em geral, acontecem no mundo e que, em
particular, enchem as vidas das nossas comunidades cristãs, não podemos deixar
de ver aí a presença amorosa de Deus… Teremos sempre a capacidade de agradecer
a Deus a sua presença e a sua ação no mundo, na vida das nossas comunidades
cristãs ou religiosas, na vida das nossas famílias e de cada um de nós?
O
exemplo da comunidade cristã de Tessalônica interpela-nos e questiona-nos… É
uma comunidade que, apesar de uma catequese incipiente e de um ambiente hostil,
abraçou com entusiasmo o Evangelho e concretizou a proposta de Jesus na vida do
dia a dia, através de uma fé ativa, de um amor esforçado e de uma esperança
firme. Nós, seguidores de Jesus, depois de muitos anos de catequese e de
compromisso com Jesus, como vivemos o nosso compromisso cristão: com um
entusiasmo sempre renovado e sempre coerente, ou com o desleixo e a indiferença
de quem não se quer comprometer? A nossa fé não é apenas uma questão de
palavras, mas leva-nos a um efetivo compromisso com a transformação da nossa
vida, da nossa família, da nossa comunidade ou do mundo que nos rodeia? O nosso
amor traduz-se em atitudes concretas de partilha, de doação, de solidariedade,
de luta contra tudo o que oprime os pequenos, os débeis, os marginalizados? A
nossa esperança mantém-nos serenos e confiantes, de olhos postos nesse futuro
novo que Deus nos reserva, apesar das vicissitudes, das dificuldades, das
incompreensões que dia a dia temos de enfrentar?
Evangelho:
Mt. 22,15-21 - AMBIENTE
O
nosso texto situa-nos em Jerusalém, o local onde vai desenrolar-se o confronto
final entre Jesus e o judaísmo. De um lado estão os dirigentes judeus:
instalados nas suas certezas e preconceitos, recusam-se terminantemente a
acolher a proposta do Reino. Do outro lado está Jesus: Ele procura que os
dirigentes do seu Povo tomem consciência de que, ao recusar o Reino, estão a
recusar a oferta de salvação que Deus lhes faz.
Para
ilustrar a situação, Jesus conta-lhes três parábolas (que lemos e meditamos nos
últimos três domingos). Na primeira, identifica-os com o filho que disse “sim”
ao seu pai, mas que não foi trabalhar no campo (cf. Mt. 21,28-32); na segunda,
equipara-os aos vinhateiros maus que tiveram a ousadia de matar o filho (cf.
Mt. 21,33-46); na terceira, compara-os com os convidados para o banquete que
rejeitaram o convite (cf. Mt. 22,1-14). Irritados com a ousadia de Jesus e
questionados pelas suas comparações, os líderes judaicos procuram ansiosamente
um pretexto para o acusar.
É
neste contexto que Mateus nos vai apresentar três controvérsias entre Jesus e
os fariseus (cf. Mt. 22,15-22.23-33.34-40). Em qualquer caso, o objetivo é
surpreender afirmações controversas e encontrar argumentos para apresentar em
tribunal contra Jesus.
A
primeira questão que os fariseus, aliados com os partidários de Herodes
Antipas, põem a Jesus é muito delicada. Diz respeito à obrigação de pagar os
tributos ao imperador de Roma…
Além
dos impostos indiretos (postagens, direitos alfandegários, taxas várias), as
províncias romanas pagavam ao Império o tributo, que era uma quantia estipulada
por Roma e que todos os habitantes do Império (com exceção das crianças e dos
velhos) deviam pagar. Era considerado um sinal infamante da sujeição a Roma. A
questão que põem a Jesus é, portanto, esta: é lícito pactuar com esse sistema
gerador de escravidão e de injustiça?
Os
partidários de Herodes e os saduceus (a alta aristocracia sacerdotal) estavam
perfeitamente de acordo com o tributo, pois aceitavam naturalmente a sujeição a
Roma. Os movimentos revolucionários, no entanto, estavam frontalmente contra,
pois consideravam o imperador um usurpador do poder que só pertencia a Jahwéh e
interditavam aos seus partidários o pagamento do dito tributo. Os fariseus,
embora não aceitando o tributo, tinham uma posição intermédia e não propunham
uma solução violenta para a questão…
De
qualquer forma, era uma questão “armadilhada”. Se Jesus se pronunciasse a favor
do pagamento do tributo, seria acusado de colaboracionismo e de defender a
usurpação pelos romanos do poder que pertencia a Jahwéh; mas se Jesus se
pronunciasse contra o pagamento do imposto, seria acusado de revolucionário,
inimigo da ordem romana…
Como
é que Jesus vai resolver a questão?
MENSAGEM
Confrontado
com a questão, Jesus convidou os seus interlocutores a mostrar a moeda do
imposto e a reconhecerem a imagem gravada na moeda (a imagem de César). Depois,
Jesus concluiu: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (v.
21). O que é que esta afirmação significa? Significa uma espécie de repartição
eqüitativa das obrigações do homem entre o poder político e o poder religioso?
Provavelmente,
Jesus quis sugerir que o homem não pode nem deve alhear-se das suas obrigações
para com a comunidade em que está integrado. Em qualquer circunstância, ele
deve ser um cidadão exemplar e contribuir para o bem comum. A isso, chama-se
“dar a César o que é de César”.
No
entanto, o que é mais importante é que o homem reconheça a Deus como o seu
único senhor. As moedas romanas têm a imagem de César: que sejam dadas a César.
O homem, no entanto, não tem inscrita em si próprio a imagem de César, mas sim
a imagem de Deus (cf. Gn. 1,26-27: “Deus disse: ‘façamos o homem à nossa
imagem, à nossa semelhança’… Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à
imagem de Deus”): portanto, o homem pertence somente a Deus, deve entregar-se a
Deus e reconhece-l’O como o seu único senhor.
Jesus
vai muito além da questão que Lhe puseram… Recusa-Se a entrar num debate de
caractere político e coloca a questão a um nível mais profundo e mais exigente.
Na abordagem de Jesus, a questão deixa de ser uma simples discussão acerca do
pagamento ou do não pagamento de um imposto, para se tornar um apelo a que o
homem reconheça Deus como o seu senhor e realize a sua vocação essencial de
entrega a Deus (ele foi criado por Deus, pertence a Deus e transporta consigo a
imagem do seu senhor e seu criador). Jesus não está preocupado, sequer, em
afirmar que o homem deve repartir equitativamente as suas obrigações entre o
poder político e o poder religioso; mas está, sobretudo, preocupado em deixar
claro que o homem só pertence a Deus e deve entregar toda a sua existência nas
mãos de Deus. Tudo o resto deve ser relativizado, inclusive a submissão ao
poder político.
ATUALIZAÇÃO
A
questão essencial que o nosso texto aborda é esta: o homem pertence a Deus e
deve considerar Deus o seu único senhor e a sua referência fundamental. No
entanto, embriagados pelo turbilhão das liberdades e das novas descobertas, os
homens do nosso tempo consideraram que eram capazes de descobrir, por si
próprios, os caminhos da vida e da felicidade e que podiam prescindir de Deus…
Instalaram-se no orgulho e na auto-suficiência e deixaram Deus de fora das suas
vidas. É preciso voltarmos a Deus e redescobrirmos a sua centralidade na nossa
existência. Deus não atenta contra a nossa identidade e a nossa liberdade.
Fomos criados para a comunhão com Deus e só nos sentiremos felizes e realizados
quando nos entregarmos confiadamente nas suas mãos e fizermos d’Ele o centro da
nossa caminhada.
Em
muitos casos, Deus foi apenas substituído por outros “deuses”: o dinheiro, o
poder, o êxito, a realização profissional, a ascensão social, o clube de
futebol… tomaram o lugar de Deus e passaram a dirigir e a condicionar a vida de
tantos dos nossos contemporâneos. Quase sempre, no entanto, essa troca trouxe,
apenas, escravidão, alienação, frustração e sentimentos de solidão e de
orfandade… Como me sinto face a isto? Há outros deuses a tomarem posse da minha
vida, a condicionarem as minhas opções, a dirigirem os meus interesses, a
dominarem os meus projetos? Quais são esses deuses? Eles asseguraram-me a
felicidade e a plena realização, ou tornam-me cada vez mais escravo e
dependente?
O
homem e a mulher foram criados à imagem de Deus. Eles não são, portanto,
objetos que podem ser usados, explorados e alienados, mas seres revestidos de
uma suprema dignidade, de uma dignidade divina. Apesar da Declaração Universal
dos Direitos do Homem e de uma infinidade de organizações e de associações
destinadas a proteger e a assegurar os direitos, liberdades e garantias, há
milhões de homens, mulheres e crianças que continuam, todos os dias, a ser
maltratados, humilhados, explorados, desprezados, diminuídos na sua dignidade.
Destruir a imagem de Deus que existe em cada criança, mulher ou homem, é um
grave crime contra Deus. Nós, os cristãos, não podemos permitir que tal
aconteça. Devemos sentir-nos responsáveis sempre que algum irmão ou irmã, em
qualquer canto do mundo, é privado dos seus direitos e da sua dignidade; e
temos o dever grave de lutar, de forma objetiva, contra todos os sistemas que,
na Igreja ou na sociedade, atentem contra a vida e a dignidade de qualquer
pessoa.
Para
o cristão, Deus é a referência fundamental e está sempre em primeiro lugar; mas
isso não significa que o cristão viva à margem do mundo e se demita das suas
responsabilidades na construção do mundo. O cristão deve ser um cidadão
exemplar, que cumpre as suas responsabilidades e que colabora ativamente na
construção da sociedade humana. Ele respeita as leis e cumpre pontualmente as
suas obrigações tributárias, com coerência e lealdade. Não foge aos impostos,
não aceita esquemas de corrupção, não infringe as regras legalmente definidas.
Vive de olhos postos em Deus; mas não se escusa a lutar por um mundo melhor e
por uma sociedade mais justa e mais fraterna.
Como
é que eu me situo face ao poder político e às instituições civis: com total
indiferença, com sujeição cega, ou com lealdade crítica? Como é que eu
contribuo para a construção da sociedade? À luz de que critérios e de que
valores julgo os fatos, as decisões, as leis políticas e sociais que regem a
comunidade humana em que estou inserido? As minhas opções políticas são
coerentes com os critérios do Evangelho e com os valores de Jesus?
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José
Ornelas Carvalho
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