No segundo domingo da Quaresma, a Palavra de Deus define o caminho que o
verdadeiro discípulo deve seguir para chegar à vida nova: é o caminho da escuta
atenta de Deus e dos seus projetos, o caminho da obediência total e radical aos
planos do Pai.
O Evangelho relata a transfiguração de Jesus. Recorrendo a elementos
simbólicos do Antigo Testamento, o autor apresenta-nos uma catequese sobre
Jesus, o Filho amado de Deus, que vai concretizar o seu projeto libertador em
favor dos homens através do dom da vida. Aos discípulos, desanimados e assustados,
Jesus diz: o caminho do dom da vida não conduz ao fracasso, mas à vida plena e
definitiva. Segui-o, vós também.
Na primeira leitura apresenta-se a figura de Abraão como paradigma de
uma certa atitude diante de Deus. Abraão é o homem de fé, que vive numa
constante escuta de Deus, que aceita os apelos de Deus e que lhes responde com
a obediência total (mesmo quando os planos de Deus parecem ir contra os seus
sonhos e projectos pessoais). Nesta perspectiva, Abraão é o modelo do crente
que percebe o projecto de Deus e o segue de todo o coração.
A segunda leitura lembra aos crentes que Deus os ama com um amor imenso
e eterno. A melhor prova desse amor é Jesus Cristo, o Filho amado de Deus que
morreu para ensinar ao homem o caminho da vida verdadeira. Sendo assim, o
cristão nada tem a temer e deve enfrentar a vida com serenidade e esperança.
1ª leitura – Gn. 22,1-2.9a.10-13.15-18 – AMBIENTE
A primeira leitura de hoje faz parte de um bloco de textos a que se dá o
nome genérico de “tradições patriarcais” (cf. Gn 12-36). Trata-se de um
conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros, sem
grande unidade e sem caráter de documento histórico. Nesses capítulos aparecem,
de forma indiferenciada, “mitos de origem” (descreviam a “tomada de posse” de
um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais” (narravam como um deus tinha
aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), indicações mais ou menos concretas
sobre a vida dos clãs nômades que circularam pela Palestina durante o 2º
milênio e reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes
israelitas modelos de vida e de fé.
O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é uma “lenda cultual”. Nasceu,
provavelmente, num santuário do sul do país, muito antes de os patriarcas
bíblicos se terem instalado na zona. A lenda primitiva contava como num lugar
sagrado (o texto sugere que esse lugar se chamaria “El Yreêh”) o deus aí
adorado tinha salvo uma criança destinada a ser oferecida em sacrifício (no
mundo dos cananeus, os sacrifícios humanos eram relativamente frequentes). A
partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos
por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição que nos é
hoje proposta.
Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de
Abraão, quando o clã de Abraão se instalou na zona. O pai cananeu da primitiva
história, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado
com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar um clã ligado ao de Abraão,
o clã de Isaac. Isaac tornou-se, assim, o filho destinado ao sacrifício de que
falava a velha lenda pré-israelita.
Numa terceira fase, os teólogos elohistas (séc. VIII a.C.) pegaram na
antiga lenda cultual e puseram-na ao serviço da sua catequese. Na reflexão dos
catequistas de Israel, a antiga lenda cultual de “El Yreêh” tornou-se uma
catequese sobre uma “prova” em que o justo Abraão manifestou a sua obediência
radical e a sua confiança em Elohim.
Por fim, um redator pós-elohista acrescentou ao texto outros elementos
de caráter teológico. Foi, certamente, ele que ligou a lenda do sacrifício de
Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele,
também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão
para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro,
derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão.
MENSAGEM
No início da narração (v. 1), aparece um verbo que vai presidir a todo o
relato e definir o sentido que os catequistas elohistas atribuíram a esta
história: o verbo “pôr à prova” (em hebraico “nassah”). No Antigo Testamento,
este verbo apresenta, com frequência, as “nuances” de “examinar”,
“experimentar”, “demonstrar”, “testar”. À partida, define-se logo o que está em
jogo: Deus vai “submeter Abraão a um teste”. A ideia de que Deus submete o seu
Povo ou indivíduos particulares a “provas” é relativamente frequente no Antigo
Testamento. Estas “provas” servem, normalmente, para que Deus possa conhecer o
coração do seu Povo e experimentar a sua fidelidade (cf. Dt. 8,2). São uma
forma de Deus confirmar que tal comunidade ou tal pessoa é digna e é capaz de
viver uma relação de especial comunhão e intimidade com Ele. Abraão, contudo,
não sabe que está a ser “testado”.
A “prova” a que Abraão é submetido é especialmente dramática: Jahwéh
pede-lhe que tome Isaac, o seu único filho, e o ofereça em holocausto sobre um
monte (vers. 2). Contudo, Isaac não é, apenas, o filho único e amado de Abraão,
embora só isso já fosse suficiente para tornar esta “prova” tremendamente dura;
mas Isaac é, também, o herdeiro dessa promessa que Deus, continuamente, renovou
a Abraão… Isaac é a garantia de um futuro, dessa descendência numerosa que irá
tomar posse da terra; é a garantia dessas promessas que deram sentido à
peregrinação de Abraão desde que Deus o mandou deixar a sua terra, a sua
família e a casa de seus pais. Abraão encontra-se diante de um Deus que parece
retomar o que havia dado e cuja palavra de hoje parece desmentir a de ontem.
Porquê essa mudança de planos? Quais são, na realidade, os desígnios de Deus?
Pode-se confiar num Deus que muda de ideias desta forma? A aposta de Abraão em
deixar tudo (cf. Gn. 12) para apostar nos desafios de Deus terá sido uma boa
opção? A verdadeira “prova” é esta… É o absurdo de uma exigência que nega a
própria história da salvação; é o continuar a esperar num Deus que, num
instante, parece querer destruir os sonhos que Ele próprio ajudou a criar; é o
continuar a confiar num Deus que Se contradiz e que parece, de repente,
esquecer tudo o que tinha prometido; é o impasse, a obscuridade, o sofrimento
em que Abraão de repente se acha; é o ser convidado a atirar-se às cegas para
um caminho escuro e incompreensível.
Como é que Abraão vai reagir a esta tremenda “prova”? Do princípio ao
fim, Abraão não abre a boca a não ser para dizer “aqui estou” (v. 1. 11) –
expressão de disponibilidade total diante de Deus. De resto, Abraão não
discute, não argumenta, não procura obter respostas para esse drama
incompreensível que parece hipotecar tudo o que Deus lhe havia prometido.
Abraão age, apenas. Levanta-se de madrugada, prepara as coisas para o
holocausto, põe-se a caminho. Já no “monte do sacrifício”, Abraão constrói o
altar, amarra a vítima e puxa do cutelo para matar o filho. O silêncio de
Abraão, a imediatez da resposta e a forma determinada como age mostram a
entrega, a confiança absoluta em Deus, a obediência levada até às últimas
consequências.
Percorrido o longo e angustiante caminho da “prova”, chega finalmente o
momento em que Deus, pela voz do seu mensageiro, faz o balanço e constata o
resultado. A “prova” é conclusiva: todo o comportamento de Abraão ao longo
desta “crise” testemunha que ele “teme o Senhor” (v. 12). A expressão –
frequente no Antigo Testamento – traduz, por um lado, a reverência e o respeito
e, por outro lado, a pronta obediência à vontade divina, a confiança inamovível
no Deus que não falha, a humilde renúncia aos próprios critérios, a adesão
incondicional à vontade de Deus, a aceitação plena das propostas e mandamentos
de Deus.
A nossa história termina com uma referência à “recompensa” oferecida por
Deus. A obediência de Abraão irá gerar plenitude de vida e de dons divinos
(bênção), uma descendência numerosa “como as estrelas do céu ou como a areia
que está na margem do mar” e a posse da terra (v. 17). O mais interessante é a
indicação de que a obediência do “justo” Abraão terá um alcance universal e
resultará em bênção para “todas as nações da terra”.
Nesta “catequese”, a intenção fundamental do autor não é dizer-nos quem
é Deus e como é que Ele age (por isso, não adianta estarmos a “perguntar” ao
texto se, na realidade, os métodos de Deus passam por submeter o homem a provas
desumanas a fim de o “testar”). A história do sacrifício de Isaac destina-se,
sobretudo, a propor-nos a atitude que o crente deve assumir diante de Deus.
Abraão é apresentado como o protótipo do crente ideal, que sabe escutar Deus e
acolher os seus projetos com obediência incondicional, com confiança total…
Mesmo que as propostas de Deus resultem incompreensíveis ou que os desafios de
Deus interfiram com os projetos do homem, o crente ideal deve acolher os planos
de Deus e realizá-los com fidelidade. Foi para deixar esta lição aos seus
concidadãos – lição que serve, naturalmente, para os crentes de todos os tempos
– que os teólogos elohistas foram buscar esta velha lenda.
ATUALIZAÇÃO
• O comportamento de Abraão face a esta “crise” revela, antes de mais, o
lugar absolutamente central que Deus ocupa na sua existência. Deus é, para
Abraão, o valor máximo, a prioridade fundamental; por isso, Abraão mostra-se
disposto a fazer a Deus um dom total e irrevogável de si próprio, da sua
família, do seu futuro, dos seus sonhos, das suas aspirações, dos seus
projetos, dos seus interesses. Para Abraão, nada mais conta quando estão em
jogo os planos de Deus… Na vida do homem do nosso tempo, contudo, nem sempre
Deus ocupa o lugar central que Lhe é devido. Com frequência, o dinheiro, o
poder, a carreira profissional, o reconhecimento social, o sucesso, ocupam o
lugar de Deus e condicionam as nossas opções, os nossos interesses, os valores
que nos orientam. Abraão, o crente para quem Deus é a coordenada fundamental à
volta da qual toda a vida se constrói convida-nos, nesta Quaresma, a rever as
nossas prioridades e a dar a Deus o lugar que Ele merece.
• Na sua relação com Deus, o crente Abraão manifesta uma vasta gama de
“qualidades” – a reverência, o respeito, a humildade, a disponibilidade, a
obediência, a confiança, o amor, a fé – que o definem como o crente “ideal”, o
modelo para os crentes de todas as épocas. Neste tempo de preparação para a
Páscoa, são estas “qualidades” que nos são propostas, também. É preciso que
realizemos um caminho de conversão que nos torne cada vez mais atentos e
disponíveis para acolher e para viver na fidelidade aos planos de Deus.
• O crente Abraão ensina-nos, ainda, a confiar em Deus, mesmo quando
tudo parece cair à nossa volta e quando os caminhos de Deus se revelam
estranhos e incompreensíveis. Quando os nossos projetos se desmoronam, quando
as nuvens negras da guerra, da violência, da opressão se acastelam no horizonte
da nossa existência, quando o sofrimento nos leva ao desespero, é preciso
continuar a caminhar serenamente, confiando nesse Deus que é a nossa esperança
e que tem um projeto de vida plena para nós e para o mundo.
• A ideia de que a obediência de Abraão é fonte de vida para ele, para a
sua família e para “todas as nações da terra”, deve ser uma espécie de “selo de
garantia” que atesta a validade deste caminho. Fazer de Deus o centro da
própria existência e renunciar aos próprios critérios e interesses para cumprir
os planos de Deus não é uma escravidão, mas um caminho que nos garante (a nós e
aos nossos irmãos) o acesso à vida plena e verdadeira.
2ª leitura – Rm. 8,31b-34 – AMBIENTE
Quando Paulo escreve aos Romanos, está a terminar a sua terceira viagem
missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. Tinha terminado a sua
missão no oriente (cf. Rm. 15,19-20) e queria levar o Evangelho ao ocidente.
Dirigindo-se por carta aos Romanos, Paulo aproveita para contatar a comunidade
cristã de Roma e para apresentar aos membros da comunidade os principais
problemas que o ocupavam (entre os quais sobressaía a questão da unidade – um
problema bem presente na comunidade cristã de Roma, afetada por alguns
problemas de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no
ano 57 ou 58.
Na primeira parte da Carta aos Romanos (cf. Rm. 1,18-11,36), Paulo vai
fazer notar aos cristãos divididos que o Evangelho é a força que congrega e que
salva todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Embora o pecado
seja uma realidade universal, que afeta todos os homens (cf. Rm. 1,18-3,20), a
“justiça de Deus” dá vida a todos, sem distinção (cf. Rm. 3,1-5,11); e é em
Jesus Cristo que essa vida se comunica e que transforma o homem (cf. Rm.
5,12-8,39). Os crentes devem, portanto, fazer a experiência do amor de Deus que
os une e alegrar-se por esse plano de salvação que Deus quer oferecer a todos.
Acolher a salvação que Deus oferece, identificar-se com Jesus e percorrer com
Ele o caminho do amor a Deus e da entrega aos irmãos (vida “segundo o Espírito”)
não é, no entanto, um caminho fácil, de triunfos e de êxitos humanos; mas é um
caminho que é preciso percorrer, tantas vezes, na dor, no sofrimento e na
renúncia, enfrentando as forças da morte, da opressão, do egoísmo e da
injustiça.
Apesar das barreiras que é necessário vencer, das nuvens ameaçadoras e
dos mil desafios que, dia a dia, se põem ao crente que segue o caminho de
Jesus, o cristão pode e deve confiar no êxito final. Porquê?
Num hino de triunfo, apaixonado e otimista, que exalta o amor de Deus (cf.
Rm. 8,31-39), Paulo diz aos cristãos porque é que eles devem ter esperança no
triunfo final.
MENSAGEM
A razão para a esperança dos cristãos está na certeza que Deus ama todos
os seus filhos com um amor imenso e eterno. O envio ao mundo de Jesus Cristo, o
Filho único de Deus, que nos ensinou o caminho da vida plena e da felicidade
sem fim, que lutou até à morte contra tudo o que oprimia e escravizava o homem,
é a “prova provada” do imenso amor de Deus por nós (v. 32).
Ora, se Deus nos ama dessa forma tão intensa e tão total, nada nem
ninguém nos pode acusar, condenar, destruir ou fazer mal. É Deus “quem nos
justifica” (v. 33) – quer dizer, é Deus que, na sua imensa bondade, pronuncia
sobre nós um veredicto de graça e de perdão, apesar das nossas faltas e infidelidades.
Ninguém nos condena pois o próprio Deus (o único que o poderia fazer) escolheu
salvar-nos, mesmo que o não merecêssemos.
Sendo assim, o cristão deve enfrentar a vida com serenidade e esperança,
confiando totalmente no amor de Deus.
ATUALIZAÇÃO
• Para Paulo, há uma constatação incrível, que não cessa de o espantar:
Deus ama-nos com um amor profundo, total, radical, que nada nem ninguém
consegue apagar ou eliminar. Esse amor veio ao nosso encontro em Jesus Cristo,
atingiu a nossa existência e transformou-a, capacitando-nos para caminharmos ao
encontro da vida eterna. Ora, antes de mais, é esta descoberta que Paulo nos
convida a fazer… Nos momentos de crise, de desilusão, de perseguição, de
orfandade, quando parece que todo o mundo está contra nós e que não entende a
nossa luta e o nosso compromisso, a Palavra de Deus grita: “não tenhais medo;
Deus ama-vos”.
• Descobrir esse amor dá-nos a coragem necessária para enfrentar a vida
com serenidade, com tranquilidade e com o coração cheio de paz. O crente é
aquele homem ou mulher que não tem medo de nada porque está consciente de que
Deus o ama e que lhe oferece, aconteça o que acontecer, a vida em plenitude.
Pode, portanto, entregar a sua vida como dom, correr riscos na luta pela paz e
pela justiça, enfrentar os poderes da opressão e da morte, porque confia no
Deus que o ama e que o salva.
Evangelho – Mc. 9,2-10 - AMBIENTE
Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João
e subiu só com eles
para um lugar retirado num alto monte
e transfigurou-Se diante deles.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus. Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: «Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados. Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
e da nuvem fez-se ouvir uma voz: «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte, Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação, mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus. Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: «Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados. Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
e da nuvem fez-se ouvir uma voz: «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte, Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação, mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.
A segunda parte do Evangelho de Marcos começa com um anúncio da Paixão,
posto na boca de Jesus (cf. Mc. 8,31-32). Nesta altura, os discípulos já tinham
percebido que Jesus era o Messias libertador que Israel esperava (cf. Mc.
8,29); mas ainda acreditavam que a missão messiânica de Jesus se ia concretizar
num triunfo militar sobre os opressores romanos. Marcos vai explicar aos
crentes a quem o Evangelho se destina que o projeto messiânico de Jesus não se
vai concretizar em triunfos humanos, mas sim na cruz – isto é, no amor e no dom
da vida.
O relato da transfiguração de Jesus é antecedido do primeiro anúncio da
paixão (cf. Mc. 8,31-33) e de uma instrução sobre as atitudes próprias do
discípulo (convidado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir
Jesus no seu caminho de amor e de entrega da vida – cf. Mc 8,34-38). Depois de
terem ouvido falar do “caminho da cruz” e de terem constatado aquilo que Jesus
pede aos que O querem seguir, os discípulos estão desanimados e frustrados,
pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se para um rotundo fracasso;
eles vêem esfumar-se – nessa cruz que irá ser plantada numa colina de Jerusalém
– os seus sonhos de glória, de honras, de triunfos e perguntam-se se vale a
pena seguir um mestre que nada mais tem para oferecer do que a morte na cruz.
É neste contexto que Marcos coloca o episódio da transfiguração. A cena
constitui uma palavra de ânimo para os discípulos (e para os crentes, em
geral), pois nela manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que Ele é – apesar
da cruz que se aproxima – o Filho amado de Deus. Os discípulos recebem, assim,
a garantia de que o projeto que Jesus apresenta é um projeto que vem de Deus;
e, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um complemento de esperança que
lhes permite “embarcar” e apostar nesse projeto.
Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer
dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no
quadro todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as
manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos
teofânicos do Antigo Testamento): o monte, a voz do céu, as aparições, as
vestes brilhantes, a nuvem e mesmo o medo e a perturbação daqueles que
presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos
diante de um relato fotográfico de acontecimentos, mas de uma catequese
(construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a ensinar que Jesus é
o Filho amado de Deus, que traz aos homens um projeto que vem de Deus.
MENSAGEM
Esta página de catequese, destinada a ensinar que Jesus é o Filho de
Deus e que o projeto que Ele propõe vem de Deus, está construída sobre
elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?
O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus
Se revela; e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma aliança com o
seu Povo.
A mudança do rosto e as vestes brilhantes, muitíssimo brancas, recordam
o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex. 34,29), depois de se
encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei.
A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus
manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto (cf.
Ex. 40,35; Nm. 9,18.22; 10,34).
Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que
permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a
catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a
salvação definitiva (cf. Dt. 18,15-18; Mal. 3,22-23).
O temor e a perturbação dos discípulos são a reação lógica de qualquer
homem ou mulher, diante da manifestação da grandeza, da onipotência e da
majestade de Deus (cf. Ex. 19,16; 20,18-21).
As tendas parecem aludir à “festa das tendas”, em que se celebrava o
tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”, no deserto.
A mensagem fundamental, amassada com todos estes elementos, pretende
dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor
deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do
Pai. Ele é, também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel,
anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: Ele é um novo
Moisés – isto é, Aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova
lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova Aliança.
Da ação libertadora de Jesus, o novo Moisés, irá nascer um novo Povo de
Deus. Com esse novo Povo, Deus vai fazer uma nova Aliança; e vai percorrer com
ele os caminhos da história, conduzindo-o através do “deserto” que leva da
escravidão à liberdade.
Esta apresentação tem como destinatários os discípulos de Jesus (esse
grupo desanimado e frustrado porque no horizonte próximo do seu líder está a
cruz e porque o mestre exige dos discípulos que aceitem percorrer um caminho
semelhante). Aponta para a ressurreição, aqui anunciada pela glória de Deus que
se manifesta em Jesus, pelas “vestes brilhantes, muitíssimo brancas” (que
lembram a túnica branca do “jovem” sentado junto do túmulo de Jesus e que
anuncia às mulheres a ressurreição – cf. Mc. 16,5) e pela recomendação final de
Jesus (“que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do
Homem não ressuscitasse dos mortos” – Mc. 9,9): diz-lhes que a cruz não será a
palavra final, pois no fim do caminho de Jesus (e, consequentemente, dos discípulos
que seguirem Jesus) está a ressurreição, a vida plena, a vitória sobre a morte.
Uma palavra final para o desejo – manifestado por Pedro – de construir
três tendas no cimo do monte, como se pretendesse “assentar arraiais” naquele
quadro. O pormenor pode significar que os discípulos queriam deter-se nesse
momento de revelação gloriosa, ignorando o destino de sofrimento de Jesus.
Jesus nem responde à proposta: Ele sabe que o projeto de Deus – esse projeto de
construir um novo Povo de Deus e levá-lo da escravidão para a liberdade – tem
de passar pelo caminho do dom da vida, da entrega total, do amor até às últimas
consequências.
ATUALIZAÇÃO
• A questão fundamental expressa no episódio da transfiguração está na
revelação de Jesus como o Filho amado de Deus, que vai concretizar o projeto
salvador e libertador do Pai em favor dos homens através do dom da vida, da
entrega total de Si próprio por amor. Pela transfiguração de Jesus, Deus
demonstra aos crentes de todas as épocas e lugares que uma existência feita dom
não é fracassada – mesmo se termina na cruz. A vida plena e definitiva espera,
no final do caminho, todos aqueles que, como Jesus, forem capazes de pôr a sua
vida ao serviço dos irmãos.
• Na verdade, os homens do nosso tempo têm alguma dificuldade em perceber
esta lógica… Para muitos dos nossos irmãos, a vida plena não está no amor
levado até às últimas consequências (até ao dom total da vida), mas sim na
preocupação egoísta com os seus interesses pessoais, com o seu orgulho, com o
seu pequeno mundo privado; não está no serviço simples e humilde em favor dos
irmãos (sobretudo dos mais débeis, dos mais marginalizados, dos mais
infelizes), mas no assegurar para si próprio uma dose generosa de poder, de
influência, de autoridade, de domínio, que dê a sensação de pertencer à
categoria dos vencedores; não está numa vida vivida como dom, com humildade e
simplicidade, mas numa vida feita um jogo complicado de conquista de honras, de
glórias, de êxitos. Na verdade, onde é que está a realização plena do homem?
Quem tem razão: Deus, ou os esquemas humanos que hoje dominam o mundo e que nos
impõem uma lógica diferente da lógica do Evangelho?
• Por vezes somos tentados pelo desânimo, porque não percebemos o
alcance dos esquemas de Deus; ou então, parece que, seguindo a lógica de Deus,
seremos sempre perdedores e fracassados, que nunca integraremos a elite dos
senhores do mundo e que nunca chegaremos a conquistar o reconhecimento daqueles
que caminham ao nosso lado… A transfiguração de Jesus grita-nos, do alto
daquele monte: não desanimeis, pois a lógica de Deus não conduz ao fracasso,
mas à ressurreição, à vida definitiva, à felicidade sem fim.
• Os três discípulos, testemunhas da transfiguração, parecem não ter
muita vontade de “descer à terra” e enfrentar o mundo e os problemas dos
homens. Representam todos aqueles que vivem de olhos postos no céu, alheados da
realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para o renovar e
transformar. No entanto, ser seguidor de Jesus obriga a “regressar ao mundo”
para testemunhar aos homens – mesmo contra a corrente – que a realização
autêntica está no dom da vida; obriga a atolarmo-nos no mundo, nos seus
problemas e dramas, a fim de dar o nosso contributo para o aparecimento de um
mundo mais justo e mais feliz. A religião não é um ópio que nos adormece, mas
um compromisso com Deus, que se faz compromisso de amor com o mundo e com os
homens.
P. Joaquim Garrido,
P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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