A
liturgia deste domingo questiona-nos acerca da atitude que assumimos face aos
bens deste mundo. Sugere que eles não podem ser os deuses que dirigem a nossa
vida; e convida-nos a descobrir e a amar esses outros bens que dão verdadeiro
sentido à nossa existência e que nos garantem a vida em plenitude.
No
Evangelho, através da “parábola do rico insensato”, Jesus denuncia a falência
de uma vida voltada apenas para os bens materiais: o homem que assim procede é
um “louco”, que esqueceu aquilo que, verdadeiramente, dá sentido à existência.
Na
primeira leitura, temos uma reflexão do “qohélet” sobre o sem sentido de uma
vida voltada para o acumular bens… Embora a reflexão do “qohélet” não vá mais
além, ela constitui um patamar para partirmos à descoberta de Deus e dos seus
valores e para encontramos aí o sentido último da nossa existência.
A
segunda leitura convida-nos à identificação com Cristo: isso significa
deixarmos os “deuses” que nos escravizam e renascermos continuamente, até que
em nós se manifeste o Homem Novo, que é “imagem de Deus”.
1º
leitura – Co (Ecle) 1,2; 2,21-23 - AMBIENTE
O
livro de Qohélet é um livro de caráter sapiencial, escrito pelos finais do séc.
III a.C.. Não sabemos quem é o autor… Em 1,1, apresenta-se o livro como
“palavras de qohélet”; mas “qohélet” é uma forma participial do verbo “qhl”
(“reunir em assembléia”): significa, pois, “aquele que participa na assembléia”
ou, numa perspectiva mais ativa, “aquele que fala na assembléia”. O nome
“Eclesiastes” (com que também é designado) é a forma latinizada do grego
“ekklesiastes” (nome do livro na tradução grega do Antigo Testamento):
significa o mesmo que “qohélet” – “aquele que se senta ou que fala na
assembléia” (“ekklesia”).
Este
“caderno de anotações” de um “sábio” é um escrito estranho e enigmático,
sarcástico, inconformista, polêmico, que põe em causa os dogmas mais
tradicionais de Israel. A sua preocupação fundamental, mais do que apontar
caminhos, parece ser a de destruir certezas e seguranças. Levanta questões e
não se preocupa, minimamente, em encontrar respostas para essas questões.
O
tom geral do livro é de um impressionante pessimismo. O autor parece negar
qualquer possibilidade de encontrar um sentido para a vida… Defende que o homem
é incapaz de ter acesso à “sabedoria”, que não há qualquer novidade e que
estamos fatalmente condenados a repetir os mesmos desafios, que o esforço
humano é vão e inútil, que é impossível conhecer Deus e que, aconteça o que
acontecer, nada vale a pena porque a morte está sempre no horizonte e
iguala-nos com os ignorantes e os animais… Não é um livro onde se vão procurar
respostas; é um livro onde se denuncia o fracasso da sabedoria tradicional e
onde ecoa o grito de angústia de uma humanidade ferida e perdida, que não
compreende a razão de viver.
MENSAGEM
Em
concreto, no texto que hoje a liturgia nos propõe, o “qohélet” proclama a
inutilidade de qualquer esforço humano. A partir da sua própria experiência,
ele foi capaz de concluir friamente que os esforços desenvolvidos pelo homem ao
longo da sua vida não servem para nada. Que adianta trabalhar, esforçar-se,
preocupar-se em construir algo se teremos, no final, de deixar tudo a outro que
nada fez? E o “qohélet” resume a sua frustração e o seu desencanto nesse refrão
que se repete em todo o livro (25 vezes): “tudo é vaidade”. É uma conclusão
ainda mais estranha quanto a “sabedoria” tradicional “excomungava” aquele que
não fazia nada e apresentava como ideal do “sábio” aquele que trabalhava e que
procurava cumprir eficazmente as tarefas que lhe estavam destinadas.
A
grande lição que o “qohélet” nos deixa é a demonstração da incapacidade de o
homem, por si só, encontrar uma saída, um sentido para a sua vida. O pessimismo
do “qohélet” leva-nos a reconhecer a nossa impotência, o sem sentido de uma
vida voltada apenas para o humano e para o material. Constatando que em si
próprio e apenas por si próprio o homem não pode encontrar o sentido da vida, a
reflexão deste livro força-nos a olhar para o mais além. Para onde? O “qohélet”
não vai tão longe; mas nós, iluminados pela fé, já podemos concluir: para Deus.
Só em Deus e com Deus seremos capazes de encontrar o sentido da vida e
preencher a nossa existência.
ATUALIZAÇÃO
•
Quase poderíamos dizer que o “qohélet” é o precursor desses filósofos
existencialistas modernos que refletem sobre o sentido da vida e constatam a
futilidade da existência, a náusea que acompanha a vida do homem, a inutilidade
da busca da felicidade, o fracasso que é a vida condenada à morte (Jean Paul
Sartre, Albert Camus, André Malraux…). As conclusões, quer do “qohélet”, quer
das filosofias existencialistas agnósticas, seriam desesperantes se não
existisse a fé. Para nós, os crentes, a vida não é absurda porque ela não
termina nem se encerra neste mundo… A nossa caminhada nesta terra está, na
verdade, cheia de limitações, de desilusões, de imperfeições; mas nós sabemos
que esta vida caminha para a sua realização plena, para a vida eterna: só aí
encontraremos o sentido pleno do nosso ser e da nossa existência.
•
A reflexão do “qohélet” convida-nos a não colocar a nossa esperança e a nossa
segurança em coisas falíveis e passageiras. Quem vive, apenas, para trabalhar e
para acumular, pode encontrar aí aquilo que dá pleno significado à vida? Quem
vive obcecado com a conta bancária, com o carro novo, ou com a casa com piscina
num empreendimento de luxo, encontrará aí aquilo que o realiza plenamente? Para
mim, o que é que dá sentido pleno à vida? Para que é que eu vivo?
2
leitura – Col. 3,1-5.9-11 - AMBIENTE
A
segunda leitura deste domingo é, mais uma vez, um trecho dessa Carta aos
Colossenses, em que Paulo polemiza contra os “doutores” para quem a fé em
Cristo devia ser complementada com o conhecimento dos anjos e com certas
práticas legalistas e ascéticas. Paulo procura demonstrar que a fé em Cristo
(entendida como adesão a Cristo e identificação com Ele) basta para chegar à
salvação.
Este
texto integra a parte moral da carta (cf. Col. 3,1-4,1): aí Paulo tira
conclusões práticas daquilo que afirmou na primeira parte (que Cristo basta
para a salvação) e convoca os Colossenses a viverem, no dia a dia, de acordo
com essa vida nova que os identificou com Cristo.
MENSAGEM
O
texto que nos é proposto está dividido em duas partes.
Na
primeira (vs. 1-4), Paulo apresenta, como ponto de partida e como base sólida
da vida cristã, a união com Cristo ressuscitado. Os cristãos, pelo batismo,
identificaram-se com Cristo ressuscitado; dessa forma, morreram para o pecado e
renasceram para uma vida nova. Essa vida deve crescer progressivamente, mas
manifestar-se-á em plenitude, quando Cristo “aparecer” (a carta aos Colossenses
ainda alimenta nos cristãos a espera da vinda gloriosa de Cristo).
Na
segunda parte (vs. 5.9-11), Paulo descreve as exigências práticas dessa
identificação com Cristo ressuscitado. O cristão deve fazer morrer em si a
imoralidade, a impureza, as paixões, os maus desejos, a cupidez, numa palavra,
todos esses falsos deuses que enchem a vida do homem velho; e, por outro lado,
deve revestir-se do Homem Novo – ou seja, deve renovar-se continuamente até que
nele se manifeste a “imagem de Deus” (“sede perfeitos como perfeito é o vosso
Pai do céu” – cf. Mt. 5,48). Quando isso acontecer, desaparecerão as velhas
diferenças de povo, de raça, de religião e todos serão iguais, isto é, “imagem
de Deus”. Foi isso que Cristo veio fazer: criar uma comunidade de homens novos,
que sejam no mundo a “imagem de Deus”.
A
identificação com Cristo ressuscitado – que resulta do batismo – é, portanto,
um renascimento contínuo que deve levar-nos a parecer-nos cada vez mais com
Deus.
ATUALIZAÇÃO
•
Ser batizado é, na perspectiva de Paulo, identificar-se com Cristo e, portanto,
renunciar aos mecanismos que geram egoísmo, ambição, injustiça, orgulho, morte
– os mesmos que Jesus rejeitou como diabólicos; e é, em contrapartida, escolher
uma vida de doação, de entrega, de serviço, de amor – os mecanismos que levaram
Jesus à cruz, mas que também o levaram à ressurreição. Eu estou sendo coerente
com as exigências do meu batismo? Na minha vida há uma opção clara pelas
“coisas do alto”, ou essas “coisas da terra” (brilhantes, sugestivas, mas
efêmeras) têm prioridade e condicionam a minha ação?
•
O objetivo da nossa vida (esse objetivo que deve estar sempre presente diante
dos nossos olhos e que deve constituir a meta para a qual caminhamos) é, de
acordo com Paulo, a renovação contínua da nossa vida, a fim de que nos tornemos
“imagem de Deus”. Aqueles que me rodeiam conseguem detectar em mim algo de
Deus? Que “imagem de Deus” é que eu transmito a quem, diariamente, contata
comigo?
•
A comunidade cristã é essa família de irmãos onde as diferenças (de raça, de
cultura, de posição social, de perspectiva política, etc.) são ilusórias,
porque o fundamental é que todos caminham para ser “imagem de Deus”. Isto é
realidade? Nas nossas comunidades (cristãs ou religiosas), todos os membros são
tratados com igual dignidade, como “imagem de Deus”?
•
Convém não esquecer que a construção do “Homem Novo” é uma tarefa que exige uma
renovação constante, uma atenção constante, um compromisso constante. Enquanto
estamos neste mundo, nunca podemos cruzar os braços e dar a nossa caminhada
para a perfeição por terminada: cada instante apresenta-nos novos desafios, que
podem ser vencidos ou que podem vencer-nos.
Evangelho
– Lc. 12,13-21 - AMBIENTE
Continuamos
a percorrer o “caminho de Jerusalém” e a escutar as lições que preparam os
discípulos para serem as testemunhas do Reino. A catequese, que Jesus hoje
apresenta, é sobre a atitude face aos bens.
A
reflexão é despoletada por uma questão relacionada com partilhas… Um homem
queixa-se a Jesus porque o irmão não quer repartir com ele a herança. Segundo
as tradições judaicas, o filho primogênito de uma família de dois irmãos
recebia dois terços das possessões paternas (cf. Dt. 21,17. É possível que só
fossem repartidos os bens móveis e que, para guardar intacto o patrimônio da
família, a casa e as terras fossem atribuídas ao primogênito). O homem que
interpela Jesus é, provavelmente, o irmão mais novo, que ainda não tinha
recebido nada. Era freqüente, no tempo de Jesus, que os “doutores da lei”
assumissem o papel de juízes em casos similares… Como é que Jesus Se vai situar
face a esta questão?
MENSAGEM
Jesus
escusa-Se, delicadamente, a envolver-Se em questões de direito familiar e a
tomar posição por um irmão contra outro (“amigo, quem me fez juiz ou árbitro
das vossas partilhas?” – v. 14). O que estava em causa na questão era a cobiça,
a luta pelos bens, o apego excessivo ao dinheiro (talvez por parte dos dois
irmãos em causa). A conclusão que Jesus tira (v. 15) explica porque é que Ele
não aceita meter-Se na questão: o dinheiro não é a fonte da verdadeira vida. A
cobiça dos bens (o desejo insaciável de ter) é idolatria: não conduz à vida
plena, não responde às aspirações mais profundas do homem, não conduz a um autêntico
amadurecimento da pessoa. A lógica do “Reino” não é a lógica de quem vive para
os bens materiais; quem quiser viver na dinâmica do Reino deverá ter isto
presente.
A
parábola que Jesus vai apresentar na sequência (vs. 16-21) ilustra a atitude do
homem voltado para os bens perecíveis, mas que se esquece do essencial – aquilo
que dá a vida em plenitude. Apresenta-nos um homem previdente, responsável,
trabalhador (que até podíamos admirar e louvar); mas que, de forma egoísta e
obsessiva, vive apenas para os bens que lhe asseguram tranquilidade e bem-estar
material (e nisso, já não o podemos louvar e admirar). Esse homem representa,
aqui, todos aqueles cuja vida é apenas um acumular sempre mais, esquecendo tudo
o resto – inclusive Deus, a família e os outros; representa todos aqueles que
vivem uma relação de “circuito fechado” com os bens materiais, que fizeram
deles o seu deus pessoal e que esqueceram que não é aí que está o sentido mais
fundamental da existência.
A
referência à ação de Deus, que põe repentinamente um ponto final nesta
existência egoísta e sem significado, não deve ser muito sublinhada: ela serve,
apenas, para mostrar que uma vida vivida desse jeito não tem sentido e que quem
vive para acumular mais e mais bens é, aos olhos de Deus, um “insensato”.
O
que é que Jesus pretende, ao contar esta história? Convidar os seus discípulos
a despojar-se de todos os bens? Ensinar aos seus seguidores que não devem
preocupar-se com o futuro? Propor aos que aderem ao Reino uma existência de
miséria, sem o necessário para uma vida minimamente digna e humana? Não. O que
Jesus pretende é dizer-nos que não podemos viver na escravatura do dinheiro e
dos bens materiais, como se eles fossem a coisa mais importante da nossa vida.
A preocupação excessiva com os bens, a busca obsessiva dos bens, constitui uma
experiência de egoísmo, de fechamento, de desumanização, que centra o homem em
si próprio e o impede de estar disponível e de ter espaço na sua vida para os
valores verdadeiramente importantes – os valores do Reino. Quando o coração
está cheio de cobiça, de avareza, de egoísmo, quando a vida se torna um combate
obsessivo pelo “ter”, quando o verdadeiro motor da vida é a ânsia de acumular,
o homem torna-se insensível aos outros e a Deus; é capaz de explorar, de escravizar
o irmão, de cometer injustiças, a fim de ampliar a sua conta bancária. Torna-se
orgulhoso e auto-suficiente, incapaz de amar, de partilhar, de se preocupar com
os outros… Fica, então, à margem do Reino.
Atenção:
esta parábola não se destina apenas àqueles que têm muitos bens; mas destina-se
a todos aqueles que (tendo muito ou pouco) vivem obcecados com os bens,
orientam a sua vida no sentido do “ter” e fazem dos bens materiais os deuses
que condicionam a sua vida e o seu agir.
ATUALIZAÇÃO
•
A Palavra de Deus que aqui nos é servida questiona fortemente alguns dos
fundamentos sobre os quais a nossa sociedade se constrói. O capitalismo
selvagem que, por amor do lucro, escraviza e obriga a trabalhar até à exaustão
(e por salários miseráveis) homens, mulheres e crianças, continua vivo em
tantos cantos do nosso planeta… Podemos, tranquilamente, comprar e consumir
produtos que são fruto da escravidão de tantos irmãos nossos? Devemos
consentir, com a nossa indiferença e passividade, em aumentar os lucros imoderados
desses empresários/sanguessugas que vivem do sangue dos outros?
•
Entre nós, o capitalismo assume um “rosto” mais humano nas teses do liberalismo
econômico; mas continua a impor a filosofia do lucro, a escravatura do
trabalhador, a prioridade dos critérios de planificação, de eficiência, de
produção em relação às pessoas. Podemos consentir que o mundo se construa desta
forma? Podemos consentir que as leis laborais favoreçam a escravidão do
trabalhador? Que podemos fazer? Nós cristãos – nós Igreja – não temos uma
palavra a dizer e uma posição a tomar face a isto?
•
Qualquer trabalhador – muitos de nós, provavelmente – passa a vida numa
escravatura do trabalho e dos bens, que não deixa tempo nem disponibilidade
para as coisas importantes – Deus, a família, os irmãos que nos rodeiam. Muitas
vezes, o mercado de trabalho não nos dá outra hipótese (se não produzimos de
acordo com a planificação da empresa, outro ocupará, rapidamente, o nosso
lugar); outras vezes, essa escravatura do trabalho resulta de uma opção
consciente… Quantas pessoas escolhem prescindir dos filhos, para poder
dedicar-se a uma carreira de êxito profissional que as torne milionárias antes
dos quarenta anos… Quantas pessoas esquecem as suas responsabilidades
familiares, porque é mais importante assegurar o dinheiro suficiente para as
férias na Tailândia ou na República Dominicana… Quantas pessoas renunciam à sua
dignidade e aos seus direitos, para aumentar a conta bancária… Tornamo-nos,
assim, mais felizes e mais humanos? É aí que está o verdadeiro sentido da vida?
•
O que Jesus denuncia aqui não é a riqueza, mas a deificação da riqueza. Até
alguém que fez “voto de pobreza” pode deixar-se tentar pelo apelo dos bens e
colocar neles o seu interesse fundamental… A todos Jesus recomenda: “cuidado
com os falsos deuses; não deixem que o acessório vos distraia do fundamental”.
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
Nenhum comentário:
Postar um comentário