quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Como entender a cura entre gerações?

pecadossA cura dita “entre gerações” não pode significar que uma geração tenha de prestar expiação pelos pecados dos antepassados pois cada um responde por si apenas.
Pode-se entender tal cura do seguinte modo: todo pecado deixa suas consequências na sociedade em que tenha sido cometido: mau exemplo, ódio de uns para os outros, estímulo à vingança…
Ora o que o cristão pede a Deus, não é o perdão dos pecados alheios (no além já não há conversão), mas pede que faça cessar a má influência que os pecados dos antepassados exercem seja extinta, ficando todos os descendentes isentos de qualquer consequência negativa derivada dos pecados dos antepassados.
Debate-se muito a questão da “cura entre gerações”: deveria uma geração prestar satisfação a Deus pelos pecados de seus antepassados? – É o que passamos a examinar nas páginas subsequentes.
1. Uma falsa interpretação
Há quem julgue que o sofrimento que alguém hoje padece não é senão a consequência dos pecados dos antepassados, pois está escrito em Êx 20,5: “Castigo a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam”. Seria preciso então pedir a Deus a cessação de tal castigo.
Esta concepção é falha a mais de um título:
a) pode dar a crer que estamos sujeitos a certa fatalidade, pesada e cruel, atormentando pessoas inocentes. O livre arbítrio não funcionaria; haveria um destino traçado para cada ser humano em consequência dos pecados dos antepassados:
No tempo do exílio de Judá na Babilônia (587-538), muitos dos exilados se recusavam a fazer penitência, pois diziam que estavam sendo punidos não por causa de seus pecados, mas por causa da iniquidade dos ancestrais. Assim se exprimia a mentalidade do clã: todos pagam por um. – A este modo de pensar se opuseram, em nome do Senhor, os profetas Jeremias e Ezequiel:
Jr 31, 29s: “Naqueles dias não se dirá mais: os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos ficaram embotados. Mas cada um morrerá por sua própria iniquidade: todo aquele que comer uvas verdes, ficará com os dentes embotados.” Ver Ezequiel 18, 1-9.
Como se vê, a responsabilidade é pessoal, ao invés do que pensavam os antigos judeus, que professava a mentalidade do clã: esta não levava devidamente em conta o indivíduo, mas o clã, o conjunto a que pertencia cada indivíduo. Aos poucos foi-se valorizando o indivíduo como tal e suas responsabilidades pessoais. Não há destino; o livre arbítrio do homem é capaz de fazer suas opções, sem depender do que tenham feito ou não feito os antepassados.
Locução semelhante ocorre em Êx 20, 8: “Uso de misericórdia até a milésima geração com aqueles que me amam e observam os meus mandamentos.” A alusão à mentalidade do clã chega a ser hiperbólica. – Daí a pergunta:

2. Como entender a cura entre gerações?
Eis a explicação mais plausível:
Toda iniquidade, principalmente as graves falhas, deixam marcas na sociedade em que vive o pecador: um mau exemplo, um precedente daninho que se abre, ódio, desejo de retaliação… Não é só o pecador que se prejudica pelo pecado, mas é a sociedade que com ele sofre danos físicos ou morais. Principalmente os familiares mais próximos descendentes do delinquente culpado sentirão a amargura da herança deixada pelo(s) ancestrais falecidos. Os pecados cometidos pelos antepassados podem ter consequências para as gerações futuras não porque Deus queira castigar a estas, mas porque transmitem um âmbito marcado pelo pecado. Esse âmbito pode influenciar o livre arbítrio de alguns descendentes, mas não lhe tira a liberdade de optar pelo bem, à revelia do que sugere o legado recebido dos ancestrais.
É sobre este pano de fundo que se coloca a cura das gerações. Esta não pede a Deus perdão pelas culpas dos antepassados, mas pede que os desgastes causados pelo pecado dos mais velhos não afetem os descendentes. O sofrimento de que padece alguém hoje não é necessariamente castigo; pode ser uma provação; Deus é pai, que ama seus filhos e, por isto, os educa e corrige, burilando suas arestas para que possam ser cidadãos dignos da Jerusalém celeste. A graça de Deus pode livrar determinado indivíduo dos seus sofrimentos, principalmente quando obtida através da Santa Missa. Mas, como dito, o sofrimento pode ser uma provação valiosa que faz amadurecer a nossa fé e que convém aceitar generosamente, sem que o cristão peça a sua cessação, mas antes peça a coragem para atravessar com alegria e magnanimidade o período da provação, do qual poderá sair ainda mais santificado.
Em conclusão dizemos: a) após quanto ponderamos não creiamos que todo sofrimento é castigo de pecados do sofredor ou dos seus antepassados, mas b) também reconheçamos que estamos sujeitos a sofrer das imprudências ou da altivez de nossos ancestrais (sem que Deus esteja punindo por pecados do passado).



Dom Estêvão Bettencourt, OSB Revista Pergunte e Responderemos. n. 551 – Maio, 2008.

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