A Palavra de Deus nos ensina que somente aqueles que estão
puros, ou seja justificados, podem herdar a vida eterna e consequentemente
terem acesso à visão beatífica de Deus (Sl 14; Hb 12,22-23; Mt 5,8).
Infelizmente, também é verdade, pouquíssimos cristãos partem desta vida
totalmente reconciliados com Deus e com os irmãos. O Senhor vem então, em
socorro de nossas fraquezas, com sua misericórdia, permitindo que aqueles que
estão destinados ao céu, ou seja, que procuraram pautar suas vidas pela
mensagem e vivência evangélica, mas que ainda carregam em si algumas
imperfeições e pecados, possam ser purificados, de algum modo, após a morte. O
purgatório é portanto, uma exigência da razão e mesmo de caridade de Deus por
nós. Hoje, infelizmente, muitos negam a realidade do purgatório, afirmando que
o mesmo não se encontra na Bíblia. O termo “purgatório” não existe na Bíblia,
mas a realidade, o conceito doutrinário deste lugar de purificação existe.
Examinemos:
“Todo o que tiver falado contra o Filho do homem será
perdoado. Se, porém, falar contra o Espírito Santo, não alcançará perdão nem neste mundo, nem no mundo vindouro.” (Mt
12,32).
O pecado contra o Espírito Santo, ou seja, a pessoa que
recusa de todas as maneiras os caminhos da salvação, não será perdoado nem
neste mundo, nem no mundo futuro. Acena o Senhor Jesus neste trecho
implicitamente, que há pecados que serão perdoados no mundo futuro, i.é, após a
morte. Ver também Mc 3,29.
“Mas, se o tal administrador imaginar consigo: ‘Meu senhor
tardará a vir’. E começar a espancar os servos e as servas, a comer, a beber e
a embriagar-se, o senhor daquele servo virá no dia em que não o esperar (…) e o
mandará ao destino dos infiéis. O servo que, apesar de conhecer a vontade de seu senhor,
nada preparou e lhe desobedeceu será açoitado com numerosos golpes. Mas aquele que,
ignorando a vontade de seu senhor, fizer coisas repreensíveis será açoitado com
poucos golpes. Porque, a quem muito
se deu, muito se exigirá. Quanto mais se confiar a alguém, mais se há de
exigir.” (Lc 12,45-48).
Nesta parábola, o administrador é o ministro da Igreja
(quatro versículos acima Pedro pergunta ao mestre: “Senhor é para nós que estás
contando esta parábola?”, ao que Jesus responde: “Qual é então Pedro, o
administrador fiel que o Senhor constituirá sobre todo o seu pessoal?”). Pois
bem, o ministro de Deus que for infiel, receberá a visita do seu Senhor “no dia
em que não o esperar” (dia de sua morte). E o Senhor o “mandará ao destino dos
infiéis” (Inferno). Porém a parábola acena que haverá outros tipos de
administradores, e outros tipos de destino. Aquele que conhece a vontade de
Deus mas não se preparou como convinha para a sua volta, será açoitado “com
numerosos golpes”. Aquele que ignora a vontade de seu Senhor e fizer coisas
repreensíveis, será açoitado com “poucos golpes”. Portanto após a morte dos administradores
da casa de Deus, uns serão condenados ao inferno, outros serão punidos, uns
mais, outros menos, conforme o merecimento de cada um, mas não compartilharão o
“destino dos infiéis”. Após a morte,
portanto, haverá de haver algum lugar ou “estado” onde os administradores pouco
fiéis haverão de ser purificados.
“Ora, quando fores com o teu adversário ao magistrado,
faze o possível para entrar em acordo com ele pelo caminho, a fim de que ele
não te arraste ao juiz, e o juiz te entregue ao executor, e o executor te ponha
na prisão. Digo-te: não sairás dali, até pagares o
último centavo.” (Lc 12,58-59).
Nesta parábola, o Senhor Jesus ensina que, enquanto
estivermos nesta vida, devemos ter sempre uma atitude de reconciliação com os
nossos irmãos de caminhada. Devemos sempre entrar “em acordo” com o próximo,
pois caso contrário, ao fim da vida seremos entregues ao juiz (Deus), que por
sua vez nos entregará ao executor (seu anjo) e este nos colocará na prisão
(purgatório); dali não sairemos até termos pago à justiça divina toda nossa
dívida, “até o último centavo”. Mas um dia haveremos de sair. A condenação
neste caso não é eterna. Ver também Mt 5,21-26 e 18,23-35.
“Eu porém vos digo: todo aquele que se encolerizar contra o
seu irmão terá de responder no tribunal. Aquele que chamar a seu irmão:
‘cretino’, estará sujeito ao julgamento do Sinédrio. Aquele que lhe chamar:
‘louco’, terá de responder na geena de fogo (…) Assume logo uma atitude
reconciliadora com o teu adversário, enquanto estás a caminho, para não
acontecer que o adversário te entregue ao juiz e o juiz ao oficial de justiça
e, assim, sejas lançado na prisão. Em verdade te digo: dali não sairás,
enquanto não pagares o último centavo” (Mt 5,22.25-26).
Jesus nos ensina que a ira contra nossos irmãos e as ofensas
que a eles fizermos, merecem toda a reprovação por parte do Pai celeste. Ao
chamarmos nosso irmão de “louco” teremos de responder na geena de fogo. O fogo
sempre foi, em todos os tempos, e também na Bíblia um símbolo de purificação.
Evidente que ninguém é condenado ao inferno para todo o sempre, somente porque
chamou o seu próximo de “louco” (senão todos estaríamos condenados). A chave
deste ensinamento se encontra na conclusão deste discurso de Jesus: serás
lançado na prisão (nesta “geena de fogo”), e dali não se sai “enquanto não
pagar o último centavo”.
“Quanto ao fundamento, ninguém, pode pôr outro diverso daquele
que já foi posto: Jesus Cristo. Agora, se alguém edifica sobre este fundamento,
com ouro, ou com prata, ou com pedras preciosas, com madeira, ou com feno, ou
com palha, a obra de cada um aparecerá. O dia (do julgamento) demonstra-lo-á.
Será descoberto pelo fogo; o fogo provará o que vale o trabalho de cada um. Se
a construção resistir, o construtor receberá a recompensa. Se pegar fogo,
arcará com os danos. Ele será salvo, porém passando de alguma maneira através do
fogo” (1Cor 3,10-15).
Paulo fala dos pregadores do Evangelho, que haveriam de
edificar a Igreja sobre os alicerces lançados por ele durante suas viagens
missionárias. Uns edificariam com muito zêlo (com ouro, prata e pedras
preciosas), outros seriam porém, pouco zelosos (edificando com madeira), outros
seriam negligentes (edificando a Igreja com feno ou palha). De qualquer forma o
“dia do Julgamento” demonstraria o que “vale o trabalho de cada um”. Se a
construção resistir, isto é se o ministro edificou com amor, “o construtor
receberá a recompensa”. Se o ministro foi pouco zeloso pela Igreja, “arcará com
os danos”. Porém ele será salvo apesar de tudo. Como? Sendo purificado, ou
seja, “passando de alguma maneira através do fogo”, isto é, após o dia do
julgamento particular, alguns ministros de Deus deverão ser purificados devido
ao pouco zêlo para com as coisas da Igreja de Deus.
“Pois também Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados (…)
padeceu a morte em sua carne, mas foi vivificado quanto ao espírito. É neste
mesmo espírito que ele foi pregar aos espíritos que eram detidos na prisão,
aqueles que outrora, nos dias de Noé, tinham sido rebeldes (…) Por isto foi o
Evangelho pregado também aos mortos; para que, embora sejam condenados em sua
humanidade de carne, vivam segundo Deus quanto ao espírito.” (1Ped
3,18-19; 4,6)
Esta “prisão” ou “limbo dos antepassados”, onde os espíritos
dos antigos estavam presos, e onde Jesus Cristo foi pregar durante o Sábado
Santo, é figura do purgatório. Com efeito, o texto menciona que Cristo foi
pregar “àqueles que outrora, nos dias de Noé, tinham sido rebeldes”. Temos,
portanto, um lugar onde as almas dos antepassados aguardavam a salvação. Não é
um lugar de tormento eterno, portanto não é o inferno. Não é um lugar de
alegria eterna na presença de Deus, portanto ainda não é o céu. Mas é um lugar
onde os espíritos aguardavam a salvação. Salvação e purificação comunicada pelo
próprio Cristo. Por isto, declara o apóstolo, foi o “Evangelho pregado também
aos mortos (…) para que vivam segundo Deus quanto ao espírito”.
“Em seguida, fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de
dez mil dracmas, para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados [dos
soldados mortos em batalha]: belo e santo modo de agir, decorrente de sua
crença na ressurreição, porque, se ele não julgasse que os mortos
ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles. Mas, se ele
acreditava que uma bela recompensa aguarda os que morrem piedosamente, era esse
um bom e religioso pensamento; eis porque ele pediu um sacrifício expiatório
para que os mortos fossem livres de suas faltas” (2Mac 12,43-46).
O general Judas Macabeu (160 a.C), herói do povo judeu,
faz uma grande coleta e a envia para Jerusalém, para que os sacerdotes ofereçam
um sacrifício de expiação pelos pecados de alguns soldados mortos. Fica claro
no texto que os judeus oravam pelos seus mortos e por eles ofereciam
sacrifícios. Fica claro também
que os sacerdotes hebreus já naquele tempo aceitavam e ofereciam sacrifícios em
expiação dos pecados dos falecidos e que esta prática estava apoiada sobre a
crença na ressurreição dos mortos. Subentende este texto que as almas dos soldados
mortos estavam em algum local ou “estado” de purificação, pois se estivessem
nos céus, as orações dos vivos eram desnecessárias, e se, por outro lado
estivessem no inferno, toda oração seria inútil. E como o livro dos Macabeus
pertence ao cânon dos livros inspirados, aqui também está uma base bíblica para
a oração em favor dos falecidos.
“De outra maneira, que intentam aqueles que se batizam em
favor dos mortos? Se os mortos realmente não ressuscitam, por que se batizam
por eles?” (1Cor 15,29).
Paulo cita aqui, uma prática cuja índole na verdade
desconhecemos. Segundo alguns estudiosos, os primeiros cristãos preocupados com
a sorte eterna de seus pais ou avós que não haviam conhecido o Evangelho e,
consequentemente, não puderam ser batizados, praticavam algum rito ou oração
para que seus parentes ganhassem de alguma forma a salvação, “batizando-se” no
lugar deles. O apóstolo Paulo não condena este “batismo” pelos falecidos,
antes, lança mão justamente dele como argumento precioso da fé dos cristãos na
ressurreição geral dos mortos. De fato, esta prática demonstra a preocupação
dos primeiros cristãos com relação à salvação de seus pais, antepassados e
amigos, traduzida em algum rito ou oração pelos mortos, por nós hoje
desconhecida.
A oração pelos mortos aliás, era uma prática constante
entre os primeiros cristãos, como atestam ainda hoje inscrições em numerosos
túmulos e arcas funerárias cristãs daqueles primeiros tempos, bem como em
textos dos primórdios que chegaram até nós. Eis alguns exemplos:
“Oferecei também a régia Eucaristia (…) oferecei-a orando
pelos mortos” (Didascalía dos Apóstolos [meados do séc. III]).
“Caso (na Eucaristia) se faça a memória em favor daqueles
que faleceram…” (Cânones de Hipólito [séc. III]).
“Por todos os defuntos dos quais fazemos comemoração,
assim oramos: Santifica estas almas …” (Serapião de Tmuis [meados do
séc. IV]).
“Oremos pelo repouso de … a fim de que Deus bom, recebendo
a sua alma, lhe perdoe todas as suas faltas” (Constituições
Apostólicas [séc. IV]).
“Os apóstolos instituíram a oração pelos mortos…”
(S. João Crisóstomo [+407], In Philipp. III, 4).
“Desta afirmação (Mt 12,31), podemos deduzir que certas
faltas podem ser perdoadas no século presente, ao passo que outras no século
futuro” (S. Gregório Magno [séc. V], Dial. 4,39).
“O irmão que as compreender, queira orar por Abércio”
(inscrição funerária cristã [séc. II]).
“Este túmulo, Iperéquio preparou-o para a sua benemérita
esposa Albínula. Deus alivie o teu espírito” (inscrição funerária cristã [ano
268]).
“Jejuai todos por mim, a fim de que Deus seja misericordioso
para com minha alma” (inscrição funerária cristã [séc. IV]). etc…
Conclusão: o cristão, que não ora pelos seus mortos, comete
pecado contra a caridade que devemos ter para com os nossos irmãos falecidos,
conforme o ensino bíblico:
“Dá de boa vontade a todos os vivos, e não recuses este
benefício a um morto” (Eclo 7,37).
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