A mensagem central de Jogos Vorazes retoma o erro de uma antiga heresia cristã: o pelagianismo.
A franquia
Jogos Vorazes chegou ao fim com incríveis U$600 milhões em
bilheteria. O último episódio da trilogia estrelada por Jennifer
Lawrence, vencedora do Oscar de melhor atriz por O lado bom da vida, bateu concorrentes de peso, como 007 contra Spectre e a animação O bom dinossauro.
Com esse resultado, a saga distópica de Suzanne Collins marcou sua
estrela no rol de adaptações de livros para o cinema que deram certo,
sobretudo entre o público jovem.
É impossível não lembrar de
Harry Potter e Crepúsculo quando o assunto é
adaptação de livros de ficção para o cinema. As duas histórias dizem
respeito a um mundo de criaturas imaginárias, onde os adolescentes
precisam lidar com dilemas próprios desse universo. Embora apresentem
dramas do mundo real, pelos quais qualquer pessoa tem de passar, o
elemento fantasioso assegura a separação sadia entre a realidade e a
ficção. Neste quesito, aliás, talvez não haja melhor representante que O Senhor dos anéis. A criação de J.R.R. Tolkien acontece em um mundo anterior ao nosso, onde os homens convivem com magos, elfos, anões e orcs.
Jogos Vorazes é diferente. No mundo de Katniss Everdeen, a
heroína da história, não há bruxos malvados, lobisomens românticos nem
anéis preciosos pelos quais se deve lutar. Panem é o nosso mundo mesmo,
mas em um contexto pós apocalíptico, em que a sociedade se vê subjugada
por um poder tirânico. As pessoas estão divididas por distritos, os
quais respondem aos ditames da Capital. Todos os anos, um jovem de cada
distrito é escolhido para participar dos jogos vorazes, uma competição
televisionada, criada pela Capital para demonstrar sua autoridade e
coibir qualquer tentativa de rebelião. Os jovens precisam lutar até a
morte.
Talvez seja isso mesmo o que torne a trilogia de Suzanne Collins tão
aclamada entre a juventude, impulsionando outros títulos parecidos —
como a série
Divergente — para o topo da lista dos filmes mais aguardados. O temor de um mundo distópico sempre foi um prato cheio para Hollywood. Exterminador do Futuro e Mad Max
lotaram as salas de cinemas na década de 1980 justamente com esse
enredo. O diferencial agora é que o público novo carece de referenciais
para espelhar-se, o que abre um espaço cada vez maior para a idealização
de líderes que lhe deem sentido para a vida. E como Jogos Vorazes sugere uma realidade aparentemente possível, fica fácil para o espectador ou leitor identificar-se.
Os valores de Jogos Vorazes
Em
Jogos Vorazes, a protagonista Katniss Everdeen tem de lidar
com uma das situações mais difíceis da vida: o sofrimento. Quando sua
irmã mais nova é escolhida para participar dos jogos, Katniss oferece-se
em seu lugar, revelando uma personalidade altruísta, ou seja, capaz de
sacrificar-se pelos outros. Essa personalidade é apresentada durante
toda a história, mormente nos momentos em que a jovem arqueira tem de
fazer escolhas dramáticas, as quais envolvem as vidas dos que estão à
sua volta.
O sofrimento é um dilema antigo para a humanidade. Em cada época, as
correntes de pensamento e as religiões procuraram dar uma resposta para
este mal. No mundo de hoje, é cada vez mais comum a ideia de que o
sofrimento deve desaparecer por completo da história humana. Para isso,
constroem-se inúmeros parques, centros comerciais e esportivos, a fim de
satisfazer os sentidos e as paixões de cada pessoa. Essa falsa solução,
porém, tem se revelado o principal problema da contemporaneidade, um
gerador de sofrimentos ainda maiores, como guerras, individualismo e
indiferentismo.
Jogos Vorazes elucida isso muito bem na atitude da Capital com relação aos demais distritos.
O filme mostra também como a demagogia está presente em tantos
programas políticos para um mundo melhor, além de traçar uma crítica
mordaz à superexposição da mídia, nos chamados
realities shows, nos quais os participantes são tratados como animais enjaulados, lutando para sobreviver.
O ponto negativo de
Jogos Vorazes, como de quase todas as outras obras do gênero, é
a exclusão da providência divina. Em toda a narrativa, não se ouve
qualquer menção a Deus ou à sua ação silenciosa. Diferentemente de O Senhor dos Anéis —
no qual não há heróis, mas sujeitos que cooperam com o Bem —, na obra
de Suzanne Collins, a esperança de salvação é posta totalmente na
atividade de uma única pessoa, como se esta fosse alguém sobrehumano —
ou, como diria Nietzsche, um Übermensch. Deste modo, Deus cede
lugar para o homem, que é divinizado e colocado num pedestal. Trata-se,
na verdade, de uma esperança materialista, um neopelagianismo, o qual se
resume no estabelecimento de uma nova ordem política. Podemos fazer o
mesmo tipo de crítica a Exterminador do Futuro, Mad Max como também para o mais recente Divergente. Todos ignoram a existência de um Criador, colocando o futuro da humanidade nas mãos dela mesma. E isso é preocupante.
O espectador de
Jogos Vorazes é iludido com a aparência realista da narrativa,
pelo que é levado a considerar a religião uma instituição do passado,
pertencente a um modelo de sociedade fracassado. Ocorre que o realismo
de Jogos Vorazes, Divergente, Exterminador do Futuro etc. é mais improvável que a ficção de O Senhor dos Anéis ou Hobbit.
Isso porque, embora não haja magos, elfos e orcs no mundo real, é a
mais profunda verdade que nenhum homem pode, por si mesmo, salvar a
humanidade do caos se não contar com a ajuda de um Outro para além de
nós, ao passo que Jogos Vorazes tem, como mensagem central,
justamente a ideia contrária. O escritor G.K. Chesterton já havia notado
essa ambiguidade na literatura moderna [1]:
" Os novos romances desaparecem tão rapidamente, ao passo que os velhos contos de fada duram para sempre. Os velhos contos de fada fazem do herói um ser humano normal; suas aventuras é que são surpreendentes. Elas o surpreendem porque ele é normal. Mas no romance psicológico moderno o herói é anormal; o centro não é central. Consequentemente, as mais loucas aventuras não conseguem afetá-lo de forma adequada, e o livro é monótono."
Não é exatamente o que percebemos em
Jogos Vorazes? A heroína Katniss Everdeen permanece a mesma
durante toda a saga, sem evolução, de modo que suas ações são totalmente
previsíveis, mesmo para um espectador não acostumado com esse tipo de
enredo. Em O Senhor dos anéis, por sua vez, o público é
colocado diante de personagens que demonstram fraquezas, defeitos, que
amadurecem ao longo da história, "fazendo e dizendo coisas totalmente
inesperadas", como escreve Tolkien sobre Bilbo Bolseiro [2]. De fato, há
mais humanidade nos pequenos hobbits do que na jovem arqueira.
O autêntico realismo
Certamente, a personagem Katniss Everdeen reúne virtudes que devem inspirar o agir moral de todos. Mas a mensagem central de
Jogos Vorazes não pode ser levada a sério, justamente porque
se trata de uma falsa esperança, a qual não diz respeito a nossa
realidade. Todas as vezes que o homem colocou sua esperança na própria
capacidade, o mundo experimentou a escuridão. O realismo está em
perceber que, neste mundo, não somos os protagonistas da história; somos
apenas cooperadores de um projeto cujo desenrolar supera nosso
entendimento e força. Assim compreenderam os santos de todos os tempos,
e, por isso, agiram como verdadeiros heróis, tornando possível a
existência de um mundo melhor. Não confiaram em suas próprias
habilidades, nos seus talentos. Eles se abandonaram com determinada determinação à providência divina, deixando-a agir por meio deles.
É nosso dever redescobrir a grande história dos santos, a fim de que
seu exemplo ilumine os passos da humanidade, principalmente dos jovens,
os quais carecem de modelos autênticos para a vivência das virtudes
humanas e teologais. Os santos foram pessoas normais que viveram
histórias fantásticas. De fato, "são os santos que mudam o mundo para
melhor, que o transformam de forma duradoura, infundindo as energias que
unicamente o amor inspirado pelo Evangelho pode suscitar. Os Santos são
os grandes benfeitores da humanidade!" [3].
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Referências
- CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia (Trad. de Almiro Pisetta). São Paulo: Mundo Cristão, 2007, p. 16.
- TOLKIEN, J.R.R. O Hobbit. 5ª Edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 2.
- Bento XVI, Audiência Geral (15 de setembro de 2010).
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