Deve morrer aquele que quiser viver. A morte na cruz é a única coisa capaz de nos dar a vida eterna.
As provações fazem parte da vida de qualquer pessoa. Mesmo aqueles que
não professam o credo cristão são visitados pela cruz. A diferença é
que, para o cristianismo, o sofrimento possui uma dimensão sobrenatural,
ainda que não se possa compreendê-lo. Na Carta Apostólica Salvifici Doloris, São
João Paulo II diz que "o sofrimento parece pertencer à transcendência
do homem", uma vez que exige dele uma superação de seus próprios limites
e forças [1]. E, de fato, é assim. As contrariedades da vida, qualquer
pessoa pode intuir isso, são, de certo modo, necessárias para o
crescimento humano.
Vários autores espirituais já escreveram sobre esse tema. Em nossos
dias, porém, o sofrimento tem sido objeto de discussão das mais variadas
filosofias e psicologias. É claro que o assunto não é exclusividade da
teologia ascética. Ocorre que, no intuito de dar uma resposta
satisfatória às dificuldades enfrentadas pelo homem, muitos estudiosos
têm caído na tentação do bem-estar. O mantra moderno é este: "Foge da
dor, busca o prazer". Mantra, aliás, presente também em muitas pregações
religiosas por aí, infelizmente [2].
O Catecismo, por outro lado, não tem uma explicação fácil para
a existência do mal. Ao contrário. "É o conjunto da fé cristã que
constitui a resposta a esta questão", insiste a Igreja [3]. Que isso
quer dizer? Quer dizer que, para compreender os motivos de cada
provação, é necessário um olhar global sobre o mistério de Deus, sua
bondade e providência. Esse mistério se manifesta de forma eloquente na
cruz, pela qual nos veio a máxima redenção. Portanto, é na contemplação
da paixão, morte e ressurreição de Cristo que podemos intuir uma
primeira resposta aos nossos dramas existenciais, bem como o modo de
enfrentá-los e superá-los.
Durante a Semana Santa de 2011, o então Papa Bento XVI participou de uma entrevista na TV italiana Rai Uno,
em que respondia a perguntas feitas por pessoas comuns do mundo todo.
Uma das questões mais tocantes foi a de uma pequena menina japonesa, que
havia sofrido com os terrores do terremoto, o qual atingira seu país.
Ela indagou o Santo Padre: "Sinto tanto medo porque a casa na qual me
sentia segura tremeu tanto… Por que devo sentir tanto medo? Por que as
crianças devem sentir tanta tristeza?" Leiam a resposta:
Querida Helena, eu a saúdo de coração. Também surgem a mim as mesmas perguntas: por que é assim? Por que vocês devem sofrer tanto, enquanto outros vivem no conforto? E não temos as respostas, mas sabemos que Jesus sofreu como vocês, inocente, que o Deus verdadeiro que se mostra em Jesus, está com vocês. Isto me parece muito importante, mesmo se não temos respostas, se permanece a tristeza: Deus está com vocês, e tenham a certeza que isto os ajudará. E um dia poderemos até compreender por que era assim.
Neste momento parece-me importante que saibam: "Deus me ama", mesmo se parece que não me conhece. Não, Ele me ama, está comigo, e vocês devem ter a certeza de que no mundo, no universo, muitos estão com vocês, pensam em vocês, fazem na medida que lhes é possível algo por vocês, para ajudá-los. E estar conscientes de que, um dia, eu compreenderei que este sofrimento não era vazio, não era em vão, mas que por detrás há um projeto bom, um projeto de amor. Não é por acaso. Tenha a certeza disto, nós estamos com você, com todas as crianças japonesas que sofrem, queremos ajudá-las com a oração, com a nossa oração, com as nossas ações e tenham a certeza de que Deus os ajuda. E neste sentido rezamos juntos para que a vocês chegue quanto antes a luz.
O Papa fala claramente em um projeto de amor. Esse projeto
nada mais é que a manifestação da providência divina na vida do ser
humano. Uma das consequências naturais do sofrimento alheio é a
compaixão. Eis aí um motivo claro para a existência das provações. Elas
existem para retirar a humanidade da indiferença. Cada indivíduo é
chamado a prestar auxílio ao seu irmão necessitado, mormente aos mais
pobres. Uma tragédia como o terremoto no Japão — ou, mais próximo ainda
de nossa realidade, as enchentes e desmoronamentos que costumam ocorrer
em algumas regiões do Brasil — força-nos a pensar nas dificuldades de
nossos irmãos e, de alguma forma, a ajudá-los com a oração e, quando
possível, com o apoio material. Uma das regras de São Bento consiste
precisamente nesta caridade fraterna: "Tolerem
pacientissimamente as suas fraquezas, físicas ou morais; rivalizem em
prestar mútua obediência; ninguém procure o que julga útil para si, mas
sobretudo o que é para o outro" [4].
As provações, além disso, constituem uma escada espiritual para o céu.
No início da caminhada, somos constantemente acalentados pelas
consolações divinas ou humanas, que Deus nos concede, a fim de nos
impulsionar a abandonar os pecados mais grosseiros. Assim diz o
Salmista: "Deus cerca seu povo de carinho e proteção" (Sl 124,
2). Todavia, chega um momento em que essas consolações cessam — o
período da aridez —, para que o homem aprenda a ser generoso em sua
entrega, isto é, aprenda a amar sem interesse. Para quem está avançado
na via purgativa, esse período bem pode ser aquele
descrito por São João da Cruz: a noite escura dos sentidos. De qualquer
modo, tudo se resume a um chamado de Deus ao verdadeiro amor. A esse
respeito, a história de Jó é um ótimo texto para a meditação. Ali, Deus
mostra como seu amor é fiel e presente na vida daqueles que se mantêm
firmes mesmo nos momentos de tribulação, como explica o livro de Judite (8, 25-27):
Demos graças ao Senhor nosso Deus, que nos submete a provações, como fez com nossos pais. Lembrai-vos de tudo o que Deus fez a Abraão, de como provou Isaac, de tudo o que aconteceu a Jacó. Assim como os provou pelo fogo, para lhes experimentar o coração, assim também Ele não se está vingando de nós. É antes para advertência que o Senhor açoita os que dEle se aproximam.
Não podemos nos esquecer, todavia, que os sofrimentos também podem ser
uma consequência trágica de nossos pecados. O resultado da queda de Eva
foi justamente as dores do parto, conta-nos o livro de Genêsis (3, 16). Embora muitos gostem de negar, existe, sim, um castigo de Deus para nossas más ações.
Se Deus é Pai, Ele deve educar seus filhos para o reto caminho. Essa
educação passa muitas vezes pela via da punição, não porque Deus seja
mau, mas porque o homem tende a desobedecê-lO, causando a própria ruína.
A cultura atual procura negar o sofrimento de todas as maneiras,
principalmente pela busca dos prazeres carnais. A lista de países mais
felizes do mundo, por exemplo, baseia-se em uma suposta qualidade de
vida material. O que chama a atenção, por assim dizer, é o alto índice de suicídio que existe nestas mesmas nações.
Que isso pode nos indicar? O óbvio: nenhuma força material é capaz de
dar respostas suficientes às grandes questões do homem. O ser humano
precisa de um sentido para a sua existência, de algo que lhe dê
fundamento para continuar sua jornada, ainda que seja penosa e dolorida.
E esse fundamento de maneira alguma pode ser um bem material, porque de
que adianta o poder temporal em casos de morte, na solidão da velhice,
nas tragédias irremediáveis?
O amor não se compra. Viktor Frankl
descobriu essa necessidade de sentido para o sofrimento nos campos de
concentração nazistas. Naqueles lugares de ódio e opressão, nenhuma
pessoa poderia ver no dinheiro uma tábua de salvação, já que até isso
lhes foi arrancado. É claro que o dinheiro é um bem necessário. Seríamos
tolos se negássemos. Contestamos, contudo, a atitude gananciosa que
procura fugir das contrariedades da vida, por meio de barganhas. É
bastante pertinente a advertência do Salmista: "Não permanecerá o homem
que vive na opulência: ele é semelhante ao gado que se abate" (Sl 48, 13).
Jesus deu-nos um ensinamento muito preciso. Deve morrer aquele que quiser viver. Esse é o paradoxo santo do cristianismo. A morte na cruz é a única coisa capaz de nos dar a vida eterna.
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Referências
- Papa João Paulo II, Carta Apostólica Salvifici Doloris (11 de fevereiro de 1984), n. 2.
- RC. 49. Teologia da prosperidade.
- Catecismo da Igreja Católica, n. 309.
- Regra de São Bento, 72 (PL 66, 927-928).
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