A liturgia deste domingo revela que Deus chama,
continuamente, pessoas para serem testemunhas no mundo do seu projeto de
salvação. Não interessa se essas pessoas são frágeis e limitadas; a força de
Deus revela-se através da fraqueza e da fragilidade desses instrumentos humanos
que Deus escolhe e envia.
A primeira leitura apresenta-nos um extrato do
relato da vocação de Ezequiel. A vocação profética é aí apresentada como uma
iniciativa de Jahwéh, que chama um “filho de homem” (isto é, um homem “normal”,
com os seus limites e fragilidades) para ser, no meio do seu Povo, a voz de
Deus.
Na segunda leitura, Paulo assegura aos cristãos de
Corinto (recorrendo ao seu exemplo pessoal) que Deus atua e manifesta o seu
poder no mundo através de instrumentos débeis, finitos e limitados. Na ação do
apóstolo – ser humano, vivendo na condição de finitude, de vulnerabilidade, de
debilidade – manifesta-se ao mundo e aos homens a força e a vida de Deus.
O Evangelho, ao mostrar como Jesus foi recebido
pelos seus conterrâneos em Nazaré, reafirma uma ideia que aparece também nas
outras duas leituras deste domingo: Deus manifesta-Se aos homens na fraqueza e
na fragilidade. Quando os homens se recusam a entender esta realidade,
facilmente perdem a oportunidade de descobrir o Deus que vem ao seu encontro e
de acolher os desafios que Deus lhes apresenta.
1ª leitura: Ez. 2,2-5 - AMBIENTE
Ezequiel, o “profeta da esperança”, exerceu o seu
ministério na Babilônia no meio dos exilados judeus. O profeta fez parte dessa
primeira leva de exilados que, em 597 a.C., Nabucodonosor deportou para a
Babilônia.
A primeira fase do ministério de Ezequiel decorreu
entre 593 a.C. (data do seu chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (data em
que Jerusalém foi conquistada uma segunda vez pelos exércitos de Nabucodonosor
e uma nova leva de exilados foi encaminhada para a Babilônia). Nesta fase, o
profeta preocupou-se em destruir as falsas esperanças dos exilados (convencidos
de que o exílio terminaria em breve e que iam poder regressar rapidamente à sua
terra) e em denunciar a multiplicação das infidelidades a Jahwéh por parte
desses membros do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio e que ficaram em
Jerusalém.
A segunda fase do ministério de Ezequiel desenrolou-se
a partir de 586 a.C. e prolongou-se até cerca de 570 a.C.. Instalados numa
terra estrangeira, privados de Templo, de sacerdócio e de culto, os exilados
estavam desiludidos e duvidavam de Jahwéh e do compromisso que Deus tinha
assumido com o seu Povo. Nessa fase, Ezequiel procurou alimentar a esperança
dos exilados e transmitir ao Povo a certeza de que o Deus salvador e libertador
não tinha abandonado nem esquecido o seu Povo.
O texto que nos é proposto hoje como primeira
leitura faz parte do relato da vocação de Ezequiel (cf. Ez 1,1-3,27). Depois de
descrever a manifestação de Deus, num quadro que apresenta todas as
características especiais das teofanias (cf. Ez 1,1-28), o profeta apresenta um
discurso no qual Jahwéh define a missão que lhe vai confiar (cf. Ez. 2,1-3,15).
O episódio é situado “no quinto ano do cativeiro do rei Joaquin”, “na Caldeia,
nas margens do rio Cabar” (Ez. 1,2).
Seria um erro interpretar este relato como
informação biográfica… Trata-se, antes, de mostrar – com a linguagem da época e
utilizando os processos típicos da literatura da época – que o profeta recebeu
uma missão de Deus e que fala e atua em nome de Deus.
MENSAGEM
O nosso texto apresenta alguns dos elementos
típicos dos relatos de vocação e que fazem parte de qualquer história de
vocação.
Sugere-se, em primeiro lugar, que a vocação
profética é um desígnio divino. Não se nomeia Jahwéh diretamente; mas aquele
que chama Ezequiel não pode ser outro senão Deus… O nosso texto é antecedido
(cf. Ez. 1,1-28) de uma solene manifestação de Deus. Depois, o profeta ouve uma
“voz” que o chama (v. 2) e que revela a Ezequiel que deve dirigir-se a esse
Povo rebelde que se insurgiu contra Deus. Há também uma referência ao
“espírito” que se apossou do profeta e o fez “levantar”; de acordo com a
reflexão judaica, era Deus que comunicava uma força divina – o seu “espírito” –
àqueles que escolhia para enviar a salvar o seu Povo, como os juízes (cf. Jz.
14,6.19; 15,14), os reis (cf. 1Sm. 10,6.10; 16,13) e os profetas (no caso de
Ezequiel, esse “espírito” aparece como uma manifestação especialmente violenta
de Deus, que se apossa do profeta e o destina para o seu serviço). A vocação é
sempre uma iniciativa de Deus e não uma escolha do homem. Foi Deus que chamou
Ezequiel e que o designou para o seu serviço.
Em segundo lugar, aparece a idéia de que o
chamamento é dirigido a um homem. Ezequiel é chamado “filho de homem” (v. 3) –
expressão hebraica que significa simplesmente “homem ligado à terra, fraco e
mortal. Deus chama homens frágeis e limitados, não seres extraordinários,
etéreos, dotados de capacidades incomuns… O que é decisivo não são as
qualidades extraordinárias do profeta, mas o chamamento de Deus e a missão que
Deus lhe confia. A indignidade e a limitação, típicas do “filho do homem”, não
são impeditivas para a missão: a eleição divina dá ao profeta autoridade,
apesar dos seus limites bem humanos.
Em terceiro lugar, temos a definição da missão.
Ezequiel, o profeta, é enviado a um Povo rebelde, que continuamente se afasta
dos caminhos de Jahwéh. A sua missão é apresentar a esse Povo as propostas de
Deus. O mais importante não é que as palavras do profeta sejam ou não
escutadas; o que é importante é que o profeta seja, no meio do Povo, a voz que
indica os caminhos de Deus (vers. 4-5).
A vida de Ezequiel realizou integralmente o projeto
de Deus. Chamado por Jahwéh, ele foi, no meio do Povo exilado na Babilônia, uma
voz humana através da qual Deus apresentou ao seu Povo o caminho para a vida
plena e verdadeira. É essa a missão do profeta.
ATUALIZAÇÃO
• Os “profetas” não são um grupo humano
extinto há muitos séculos, mas são uma realidade com que Deus continua a contar
para intervir no mundo e para recriar a história. Quem são, hoje, os profetas?
Onde estão eles?
• No Batismo, fomos ungidos como profetas, à
imagem de Cristo. Cada um de nós tem a sua história de vocação profética: de
muitas formas Deus entra na nossa vida, desafia-nos para a missão, pede uma
resposta positiva à sua proposta. Temos consciência de que Deus nos chama – às
vezes de formas bem banais – à missão profética? Estamos atentos aos sinais que
Ele semeia na nossa vida e através dos quais Ele nos diz, dia a dia, o que quer
de nós? Temos a noção de que somos a “boca” através da qual a Palavra de Deus
se dirige aos homens?
• O profeta é o homem que vive de olhos postos
em Deus e de olhos postos no mundo (numa mão a Bíblia, na outra o jornal
diário). Vivendo em comunhão com Deus e intuindo o projeto que Ele tem para o
mundo, e confrontando esse projeto com a realidade humana, o profeta percebe a
distância que vai do sonho de Deus à realidade dos homens. É aí que ele
intervém, em nome de Deus, para denunciar, para avisar, para corrigir. Somos
estas pessoas, simultaneamente em comunhão com Deus e atentas às realidades que
desfeiam o nosso mundo? Em concreto, em que situações sou chamado, no dia a
dia, a exercer a minha vocação profética?
• A denúncia profética implica, tantas vezes,
a perseguição, o sofrimento, a marginalização e, em tantos casos, a própria
morte (Óscar Romero, Luther King, Gandhi…). Como lidamos com a injustiça e com
tudo aquilo que rouba a dignidade dos homens? O medo, o comodismo, a preguiça,
alguma vez nos impediram de ser profetas?
• É preciso ter consciência, também, que as
nossas limitações e indignidades muito humanas não podem servir de desculpa
para realizar a missão que Deus quer confiar-nos: se Ele nos pede um serviço,
dar-nos-á também a força para superar os nossos limites e para cumprir o que
nos pede. As fragilidades que fazem parte da nossa humanidade não podem, em
nenhuma circunstância, servir de desculpa para não cumprirmos a nossa missão
profética no meio dos nossos irmãos.
2ª leitura: 2Cor.12,7-10 - AMBIENTE
A segunda carta de Paulo aos Coríntios espelha uma
época de relações conturbadas entre Paulo e os cristãos de Corinto. As críticas
de Paulo a alguns membros da comunidade que levavam uma vida pouco consentânea
com os valores cristãos (primeira carta aos Coríntios) provocaram uma reação
extremada e uma campanha organizada no sentido de desacreditar Paulo. Essa
campanha foi instigada por certos missionários itinerantes procedentes das
comunidades cristãs da Palestina, que se consideravam representantes dos Doze e
que minimizavam o trabalho apostólico de Paulo. Entre outras coisas, esses
missionários afirmavam que Paulo era inferior aos outros apóstolos, por não ter
convivido com Jesus e que a catequese apresentada por Paulo não estava em
consonância com a doutrina da Igreja. Paulo, informado de tudo, dirigiu-se
apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus
detratores. Depois, bastante magoado, retirou-se para Éfeso. Tito, amigo de
Paulo, fino negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de tentar
a reconciliação.
Paulo, entretanto, deixou Éfeso e foi para Tróade.
Foi aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por
Tito eram animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os coríntios estavam,
outra vez, em comunhão com Paulo.
Reconfortado, Paulo escreveu uma tranquila apologia
do seu apostolado, à qual juntou um apelo em favor de uma coleta para os pobres
da Igreja de Jerusalém. Esse texto é a nossa segunda carta de Paulo aos
Coríntios. Estamos no ano 56 ou 57.
O texto que nos é proposto integra a terceira parte
da carta (cf. 2Cor 10,1-13,10). Aí Paulo, num estilo apaixonado, às vezes
cáustico, mas sempre levado pela exigência da verdade e da fé, defende a
autenticidade do seu ministério frente a esses “super-apóstolos” que o
acusavam.
Como apóstolo, Paulo não se sente inferior a
ninguém e muito menos aos seus detratores. Estes orgulhavam-se das suas
credenciais e afirmavam por toda a parte os seus dons carismáticos… Paulo, se
quisesse entrar no mesmo jogo, podia orgulhar-se de muitas coisas, nomeadamente
das revelações que recebeu e das suas experiências místicas (cf. 2Cor. 12,1-4);
mas ele quer apenas que o vejam como um homem frágil e vulnerável, a quem Deus
chamou e a quem enviou para dar testemunho de Jesus Cristo no meio dos homens.
MENSAGEM
Assumindo essa condição de debilidade e de
vulnerabilidade, Paulo fala aos Coríntios de uma limitação que transporta no
seu corpo, um “anjo de Satanás” que lhe recorda continuamente a sua finitude e
fragilidade (v. 7). De que é que se trata, em concreto? Não o sabemos.
Provavelmente, trata-se de uma doença física crônica (em Gl. 4,13-14 Paulo fala
de uma grave enfermidade física, que fez com que o corpo do apóstolo fosse,
para os Gálatas, “uma provação”; mas nada garante que essa enfermidade física
esteja relacionada com este “anjo de Satanás” de que ele fala aos Coríntios). O
fato de Paulo chamar a essa limitação que o apoquenta um “anjo de Satanás” deve
ter a ver com o fato de a mentalidade judaica ligar as enfermidades aos
“espíritos maus”. De acordo com outra interpretação, esse “espinho na carne”
que é um “anjo de Satanás” poderia referir-se também aos obstáculos que Satanás
põe a Paulo no que diz respeito ao anúncio do Evangelho.
Em todo o caso, o problema pessoal de Paulo mostra
como a finitude e a fragilidade não são determinantes para a missão; o que é
determinante é a graça de Deus… Com a graça de Deus, Paulo tudo pode, apesar da
sua debilidade. Deus não eliminou o problema, apesar dos insistentes pedidos de
Paulo; mas é Ele que dá a Paulo a força para continuar a sua missão, apesar dos
limites que esse “espinho na carne” lhe impõe. Na verdade, o problema pessoal
de que Paulo sofre dá testemunho de que Deus atua e manifesta o seu poder no
mundo através de instrumentos débeis, finitos e limitados. No apóstolo – ser
humano, vivendo na condição de finitude, de vulnerabilidade, de debilidade –
manifesta-se ao mundo e aos homens a força de Deus e de Cristo.
ATUALIZAÇÃO
• O caso pessoal de Paulo diz-nos muito sobre
os métodos de Deus… Para vir ao encontro dos homens e para lhes apresentar a
sua proposta de salvação, Deus não utiliza métodos espetaculares, poderosos,
majestosos, que se impõem de forma avassaladora e que deixam uma marca de
estupefação e de espanto na memória dos povos; mas, quase sempre, Deus utiliza
a fraqueza, a debilidade, a fragilidade, a simplicidade para nos dar a conhecer
os seus caminhos. Nós, homens e mulheres do séc. XXI, deixamo-nos, facilmente,
impressionar pelos grandes gestos, pelos cenários magnificentes, pelas
roupagens sumtuosas, por tudo o que aparece envolvido num halo cintilante de riqueza,
de prestígio social, de poder, de beleza; e, por outro lado, temos mais
dificuldade em reparar naquilo que se apresenta pobre, humilde, simples,
frágil, débil… A Palavra de Deus que hoje nos é proposta garante-nos que é na
fraqueza que se revela a força de Deus. Precisamos de aprender a ver o mundo,
os homens e as coisas com os olhos de Deus e a descobrir esse Deus que, na
debilidade, na simplicidade, na pobreza, na fragilidade, vem ao nosso encontro
e nos indica os caminhos da vida.
• A consciência de que as suas qualidades e
defeitos não são determinantes para o sucesso da missão, pois o que é
importante é a graça de Deus, deve levar o “profeta” a despir-se de qualquer
sentimento de orgulho ou de auto-suficiência. O “profeta” deve sentir-se, apenas,
um instrumento humano, frágil, débil e limitado, através do qual a força e a
graça de Deus agem no mundo. Quando o “profeta” tem consciência desta
realidade, percebe como são despropositadas e sem sentido quaisquer atitudes de
vedetismo ou de busca de protagonismo, no cumprimento da missão… A missão do
“profeta” não é atrair sobre si próprio as luzes da ribalta, as câmaras da
televisão ou o olhar das multidões; a missão do “profeta” é servir de veículo
humano à proposta libertadora de Deus para os homens.
• Como pano de fundo do nosso texto, está a
polemica de Paulo com alguns cristãos que não o aceitavam. Ao longo de todo o
seu percurso missionário, Paulo teve de lidar frequentemente com a
incompreensão; e, muitas vezes, essa incompreensão veio até dos próprios irmãos
na fé e dos membros dessas comunidades a quem Paulo tinha levado, com muito
esforço, o anúncio libertador de Jesus. No entanto, a incompreensão nunca
abalou a decisão e o entusiasmo de Paulo no anúncio da Boa Nova de Jesus… Ele
sentia que Deus o tinha chamado a uma missão e que era preciso levar essa
missão até ao fim, doesse a quem doesse… Frequentemente, temos de lidar com
realidades semelhantes. Todos experimentamos já momentos de incompreensão e de
oposição (que, muitas vezes, vêm do interior da nossa própria comunidade e que,
por isso, magoam mais). É nessas alturas que o exemplo de Paulo deve brilhar
diante dos nossos olhos e ajudar-nos a vencer o desânimo e a tentação de
desistir.
• Neste texto de Paulo (como, aliás, em quase
todos os textos do apóstolo), transparece a atitude de vida de um cristão para
quem Cristo é, verdadeiramente, o centro da própria existência e que só vive em
função de Cristo… Nada mais lhe interessa senão anunciar as propostas de Cristo
e dar testemunho da graça salvadora de Cristo. Que lugar ocupa Cristo na minha
vida? Que lugar ocupa Cristo nos meus projetos, nas minhas decisões, nas minhas
opções, nas minhas atitudes?
Evangelho: Mc. 6,1-6 - AMBIENTE
Naquele tempo, 1Jesus foi a Nazaré, sua terra, e seus discípulos o acompanharam. 2Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga.
Muitos
que o escutavam ficavam admirados e diziam: “De onde recebeu ele tudo
isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres
realizados por suas mãos? 3Este homem não é o
carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de
Simão? Suas irmãs não moram aqui conosco?” E ficaram escandalizados por
causa dele.
4Jesus lhes dizia: “Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares”. 5E ali não pôde fazer milagre algum. Apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. 6E admirou-se com a falta de fé deles.
Jesus percorria os povoados da redondeza, ensinando.
O Evangelho de hoje fala-nos de uma visita à
“terra” de Jesus. De acordo com Mc. 1,9, a “terra” de Jesus era Nazaré, uma
pequena vila da Galileia situada a 22 Km. a oeste do Lago de Tiberíades. Esta
povoação tipicamente agrícola nunca teve grande importância no universo na
história do judaísmo… O Antigo Testamento ignora-a completamente; Flávio Josefo
e os escritores rabínicos também não lhe fazem qualquer referência. Os
contemporâneos de Jesus parecem conceder-lhe escassa consideração (cf. Jo.
1,46). Nazaré é, no entanto, a cidade onde Jesus cresceu e onde reside a sua
família.
A cena principal que nos é relatada por Marcos
passa-se na sinagoga de Nazaré, num sábado. Jesus, como qualquer outro membro
da comunidade judaica, foi à sinagoga para participar no ofício sinagogal; e,
fazendo uso do direito que todo o israelita adulto tinha, leu e comentou as
Escrituras.
O episódio que nos é proposto integra a primeira
parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc. 1,14-8,30). Aí, Jesus é apresentado
como o Messias que proclama, por toda a Galileia, o Reino de Deus. Na secção
que vai de 3,7 a 6,6, contudo, Marcos refere-se especialmente à reação do Povo
face à proclamação de Jesus… À medida que o “caminho do Reino” vai avançando,
vão-se multiplicando as oposições e incompreensões face ao projeto que Jesus
anuncia. O nosso texto deve ser entendido neste ambiente.
MENSAGEM
Os ensinamentos de Jesus na sinagoga, naquele
sábado, deixam impressionados os habitantes de Nazaré, como já tinham deixado
impressionados os fiéis da sinagoga de Cafarnaum (cf. Mc. 1,21-28). No entanto,
os de Cafarnaum, depois de ouvir Jesus, reconheceram a sua autoridade mais do
que divina (e que, segundo eles, era diferente da autoridade dos doutores da
Lei); os de Nazaré vão chegar a conclusões distintas.
Depois de escutarem Jesus, na sinagoga, os seus
conterrâneos traduzem a sua perplexidade através de várias perguntas… Duas das
questões postas dizem respeito à origem e à qualidade dos ensinamentos de Jesus
(“de onde lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que lhe foi dada?” – v. 2);
uma outra questão refere-se à qualificação das ações de Jesus (“e os
prodigiosos milagres feitos por suas mãos?” – v. 2).
Numa espécie de contraponto à impressão que Jesus
lhes deixou, eles recordam o seu ofício e a “normalidade” da sua família (v.
3a)… Para eles, Jesus é “o carpinteiro”: não é um “rabbi”, nunca estudou as
Escrituras com nenhum mestre conceituado e não tem qualificações para dizer as
coisas que diz. Por outro lado, eles conhecem a identidade da família de Jesus
e não descobrem nela nada de extraordinário: Ele é o “filho de Maria” e os seus
irmãos e irmãs são gente “normal”, que toda a gente conhece em Nazaré e que
nunca revelaram qualidades excepcionais. Portanto, parece claro que o papel
assumido por Jesus e as ações que Ele realizou são humanamente inexplicáveis.
A questão seguinte (que, no entanto, não aparece
explicitamente formulada) é esta: estas capacidades extraordinárias que Jesus
revela (e que não vêm certamente dos conhecimentos adquiridos no contacto com
famosos mestres, nem do ambiente familiar) vêm de Deus ou do diabo? Desde o
primeiro momento, os comentários dos habitantes de Nazaré deixam transparecer
uma atitude negativa e um tom depreciativo na análise de Jesus. Nem sequer se
referem a Jesus pelo próprio nome, mas usam sempre um pronome para falar d’Ele
(Jesus é “este” ou “ele” - vs. 2-3). Depois, chamam-Lhe depreciativamente “o
filho de Maria” (o costume era o filho ser conhecido em referência ao pai e não
à mãe). Como cenário de fundo do pensamento dos habitantes de Nazaré está
provavelmente a acusação feita a Jesus algum tempo antes pelos “doutores da Lei
que haviam descido de Jerusalém e que afirmavam: «Ele tem Belzebu! É pelo chefe
dos demônios que ele expulsa os demônios»“ (Mc. 3,22). Marcos conclui que os
habitantes de Nazaré ficaram “escandalizados” (v. 3b) com Jesus (o verbo grego
“scandalidzô”, aqui utilizado, significa muito mais do que o “ficar perplexo”
das nossas traduções: significa “ofender”, “magoar”, “ferir suscetibilidades”).
Há na vila uma espécie de indignação porque Jesus, apesar de ter sido
desautorizado pelos mestres reconhecidos do judaísmo, continua a desenvolver a
sua atividade à margem da instituição judaica. Ele põe em causa a religião
tradicional, quando ensina coisas diferentes e de forma diferente dos mestres
reconhecidos. Conclusão: Ele está fora da instituição judaica; o seu
ensinamento não pode, portanto, vir de Deus, mas do diabo. Os conterrâneos de
Jesus não conseguem reconhecer a presença de Deus naquilo que Jesus diz e faz.
Jesus responde aos seus concidadãos (v. 4) citando
um conhecido provérbio, mas que Ele modifica, em parte (o original devia soar
mais ou menos assim: “nenhum profeta é respeitado no seu lugar de origem,
nenhum médico faz curas entre os seus conhecidos”). Nessa resposta, Jesus
assume-Se como profeta – isto é, como um enviado de Deus, que atua em nome de
Deus e que tem uma mensagem de Deus para oferecer aos homens. Os ensinamentos
que Jesus propõe não vêm dos mestres judaicos, mas do próprio Deus; a vida que
Ele oferece é a vida plena e verdadeira que Deus quer propor aos homens.
A recusa generalizada da proposta que Jesus traz
coloca-o na linha dos grandes profetas de Israel. O Povo teve sempre
dificuldade em reconhecer o Deus que vinha ao seu encontro na palavra e nos
gestos proféticos. O fato de as propostas apresentadas por Jesus serem
rejeitadas pelos líderes, pelo povo da sua terra, pelos seus “irmãos e irmãs” e
até pelos da sua casa não invalida, portanto, a sua verdade e a sua procedência
divina.
Porque é que Jesus “não podia ali fazer qualquer
milagre” (vers. 5)? Deus oferece aos homens, através de Jesus, perspectivas de
vida nova e eterna… No entanto, os homens são livres; se eles se mantêm
fechados nos seus esquemas e preconceitos egoístas e rejeitam a vida que Deus
lhes oferece, Jesus não pode fazer nada. Marcos observa, apesar de tudo, que
Jesus “curou alguns doentes impondo-lhes as mãos”. Provavelmente, estes
“doentes” são aqueles que manifestam uma certa abertura a Jesus mas que, de
qualquer forma, não têm a coragem de cortar radicalmente com os mecanismos
religiosos do judaísmo para descobrir a novidade radical do Reino que Jesus
anuncia.
Marcos nota ainda a “surpresa” de Jesus pela falta
de fé dos seus concidadãos (v. 6a). Esperava-se que, confrontados com a
proposta nova de liberdade e de vida plena que Jesus apresenta, os seus
interlocutores renunciassem à escravidão para abraçar com entusiasmo a nova
realidade… No entanto, eles estão de tal forma acomodados e instalados, que
preferem a vida velha da escravidão à novidade libertadora de Jesus.
Este fato decepcionante não impede, contudo, que
Jesus continue a propor a Boa Nova do Reino a todos os homens (vers. 6b). Deus
oferece, sem interrupção, a sua vida; ao homem resta acolher ou não esse
oferecimento.
ATUALIZAÇÃO
O texto do Evangelho repete uma ideia que aparece
também nas outras duas leituras deste domingo: Deus manifesta-Se aos homens na
fraqueza e na fragilidade. Normalmente, Ele não se manifesta na força, no
poder, nas qualidades que o mundo acha brilhantes e que os homens admiram e
endeusam; mas, muitas vezes, Ele vem ao nosso encontro na fraqueza, na
simplicidade, na debilidade, na pobreza, nas situações mais simples e banais,
nas pessoas mais humildes e despretensiosas… É preciso que interiorizemos a
lógica de Deus, para que não percamos a oportunidade de O encontrar, de
perceber os seus desafios, de acolher a proposta de vida que Ele nos faz…
• Um dos elementos questionantes no episódio
que o Evangelho deste domingo nos propõe é a atitude de fechamento a Deus e aos
seus desafios, assumida pelos habitantes de Nazaré. Comodamente instalados nas
suas certezas e preconceitos, eles decidiram que sabiam tudo sobre Deus e que
Deus não podia estar no humilde carpinteiro que eles conheciam bem… Esperavam
um Deus forte e majestoso, que se havia de impor de forma estrondosa, e
assombrar os inimigos com a sua força; e Jesus não se encaixava nesse perfil.
Preferiram renunciar a Deus, do que à imagem que d’Ele tinham construído. Há
aqui um convite a não nos fecharmos nos nossos preconceitos e esquemas mentais
bem definidos e arrumados, e a purificarmos continuamente, em diálogo com os
irmãos que partilham a mesma fé, na escuta da Palavra revelada e na oração, a
nossa perspectiva acerca de Deus.
• Para os habitantes de Nazaré Jesus era
apenas “o carpinteiro” da terra, que nunca tinha estudado com grandes mestres e
que tinha uma família conhecida de todos, que não se distinguia em nada das
outras famílias que habitavam na vila; por isso, não estavam dispostos a
conceder que esse Jesus – perfeitamente conhecido, julgado e catalogado – lhes
trouxesse qualquer coisa de novo e de diferente… Isto deve fazer-nos pensar nos
preconceitos com que, por vezes, abordamos os nossos irmãos, os julgamos, os
catalogamos e etiquetamos… Seremos sempre justos na forma como julgamos os
outros? Por vezes, os nossos preconceitos não nos impedirão de acolher o irmão
e a riqueza que Ele nos traz?
• Jesus assume-Se como um profeta, isto é,
alguém a quem Deus confiou uma missão e que testemunha no meio dos seus irmãos
as propostas de Deus. A nossa identificação com Jesus faz de nós continuadores
da missão que o Pai Lhe confiou. Sentimo-nos, como Jesus, profetas a quem Deus
chamou e a quem enviou ao mundo para testemunharem a proposta libertadora que
Deus quer oferecer a todos os homens? Nas nossas palavras e gestos ecoa, em
cada momento, a proposta de salvação que Deus quer fazer a todos os homens?
• Apesar da incompreensão dos seus
concidadãos, Jesus continuou, em absoluta fidelidade aos planos do Pai, a dar
testemunho no meio dos homens do Reino de Deus. Rejeitado em Nazaré, Ele foi,
como diz o nosso texto, percorrer as aldeias dos arredores, ensinando a
dinâmica do Reino. O testemunho que Deus nos chama a dar cumpre-se, muitas
vezes, no meio das incompreensões e oposições… Frequentemente, os discípulos de
Jesus sentem-se desanimados e frustrados porque o seu testemunho não é
entendido nem acolhido (nunca aconteceu pensarmos, depois de um trabalho
esgotante e exigente, que estivemos a perder tempo?)… A atitude de Jesus
convida-nos a nunca desanimar nem desistir: Deus tem os seus projetos e sabe
como transformar um fracasso num êxito.
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