A liturgia do 17º domingo comum dá-nos conta da preocupação de Deus em
saciar a “fome” de vida dos homens. De forma especial, as leituras deste
domingo dizem-nos que Deus conta conosco para repartir o seu “pão” com todos aqueles
que têm “fome” de amor, de liberdade, de justiça, de paz, de esperança.
Na primeira leitura, o profeta Eliseu, ao partilhar o pão que lhe foi
oferecido com as pessoas que o rodeiam, testemunha a vontade de Deus em saciar
a “fome” do mundo; e sugere que Deus vem ao encontro dos necessitados através
dos gestos de partilha e de generosidade para com os irmãos que os “profetas”
são convidados a realizar.
O Evangelho repete o mesmo tema. Jesus, o Deus que veio ao encontro dos
homens, dá conta da “fome” da multidão que O segue e propõe-Se libertá-la da
sua situação de miséria e necessidade. Aos discípulos (aqueles que vão
continuar até ao fim dos tempos a mesma missão que o Pai lhe confiou), Jesus
convida a despirem a lógica do egoísmo e a assumirem uma lógica de partilha,
concretizada no serviço simples e humilde em benefício dos irmãos. É esta
lógica que permite passar da escravidão à liberdade; é esta lógica que fará
nascer um mundo novo.
Na segunda leitura, Paulo lembra aos crentes algumas exigências da vida
cristã. Recomenda-lhes, especialmente, a humildade, a mansidão e a paciência:
são atitudes que não se coadunam com esquemas de egoísmo, de orgulho, de
auto-suficiência, de preconceito em relação aos irmãos.
1 leitura: 2Re. 4,42-44 - AMBIENTE
As tradições proféticas sobre Elias e Eliseu (os “ciclos” de Elias e
Eliseu) ocupam um espaço significativo no Livro dos Reis (cf. 1Re. 17,1-21,29;
2Re. 1,1-13,21). Referem-se a um período bastante conturbado – quer em termos
políticos, quer em termos religiosos – da vida do Reino do Norte (Israel).
Elias exerce a sua missão profética durante os reinados de Acab (874-853 a.C.)
e de Acazias (853-852 a.C.); Eliseu dá o seu testemunho profético durante os
reinados de Jorão (853-842 a.C.), de Jeú (842-813 a.C.) e de Joacaz (813-797
a.C.).
Os reis de Israel procuraram sempre estabelecer relações comerciais,
econômicas, políticas e militares com os povos circunvizinhos. Essa abertura de
fronteiras teve, no entanto, os seus custos em termos de fidelidade a Jahwé e à
Aliança, uma vez que os cultos aos deuses estrangeiros entravam no país e
ocupavam um lugar significativo na vida e no coração dos israelitas. É uma
época de sincretismo religioso, em que a religião jahwista é, com a
complacência até com o apoio declarado dos reis de Israel, preterida em favor
dos cultos de Baal e de Astarte. Em termos sociais, é uma época em que se
multiplicam as injustiças contra os pobres e as arbitrariedades contra os
fracos. Tudo isto consubstancia um quadro de graves infidelidades contra Deus e
contra a Aliança.
É contra este quadro que se levantam Elias e Eliseu. Elias aparece como
o representante desses israelitas fiéis aos valores religiosos tradicionais,
que recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da fé de Israel;
e a luta de Elias será continuada por um dos seus discípulos – Eliseu.
Parece que Eliseu – o ator principal da primeira leitura deste domingo –
fazia parte de uma comunidade de “filhos de profetas” (os “benê nebi'im” – 2Re.
2,3; 4,1). Trata-se de uma comunidade de homens que viviam pobremente (2Re.
4,1-7) e que eram os seguidores incondicionais de Jahwéh. O Povo consultava-os
regularmente e buscava neles apoio face aos abusos dos poderosos. Eliseu é
apresentado muitas vezes, nas histórias narradas no “ciclo de Eliseu” (cf. 2Re.
2; 3,4-27; 4,1-8,15; 9,1-10; 13,14-21), como um profeta “dos milagres”, cujas
ações mostram a presença da força e da vida de Deus no meio do seu Povo. Outras
vezes, Eliseu é o profeta da intervenção política; a sua ação neste campo
ultrapassa mesmo as fronteiras físicas de Israel e chega a Damasco (cf. 2Re.
8,7-15).
MENSAGEM
O texto que nos é proposto como primeira leitura conta que um homem de
Baal-Shalisha trouxe a Eliseu o “pão das primícias”: vinte pães de cevada e
trigo novo num saco. De acordo com Lv. 23,20, o pão das primícias devia ser
apresentado diante do Senhor e consagrado ao Jahwéh, embora depois revertesse
em benefício do sacerdote… Deve ser este costume que está subjacente ao
episódio da entrega dos pães a Eliseu.
Eliseu, no entanto, não conservou os dons para si, mas mandou
reparti-los pelas pessoas que rodeavam o profeta. O “servo” do profeta não
acreditava que os alimentos oferecidos chegassem para cem pessoas; no entanto,
chegaram e ainda sobraram.
Estamos, aqui, diante de uma sucessão de gestos que revelam generosidade
e vontade de partilhar: do homem que leva os dons ao profeta e do profeta que
não os guarda para si, mas os manda partilhar com as pessoas que o rodeiam. A
descrição de uma milagrosa multiplicação de pães de cevada e de grãos de trigo
sugere que, quando o homem é capaz de sair do seu egoísmo e tem disponibilidade
para partilhar os dons recebidos de Deus, esses dons chegam para todos e ainda
sobram. A generosidade, a partilha, a solidariedade, não empobrecem, mas são
geradoras de vida e de vida em abundância.
Este relato fornecerá aos autores neo-testamentários o modelo literário
em que se inspirarão para apresentar os relatos evangélicos das multiplicações
dos pães (cf. Mc. 6,34-44; 8,1-10; Mt. 14,13-21; 15,32-38; Lc. 9,10-17).
ATUALIZAÇÃO
• O “profeta” é um homem chamado por Deus e enviado a ser o rosto de
Deus no meio do mundo. Nas palavras e nos gestos do “profeta”, é Deus que Se
manifesta aos homens e que lhes indica a sua vontade e as suas propostas. No
gesto de repartir o pão para saciar a fome das pessoas, o “profeta” manifesta a
eterna preocupação de Deus com a “fome” do mundo (fome de pão, fome de
liberdade, fome de dignidade, fome de realização plena, fome de amor, fome de
paz…) e a sua vontade de dar aos homens vida em abundância… Não tenhamos
dúvidas: Deus preocupa-Se, todos os dias, em oferecer aos seus filhos vida em
abundância. É Deus que nos dá, dia a dia, o pão que mata a nossa fome de vida.
• Como é que Deus atua para saciar a fome de vida dos homens? É fazendo
chover do céu, milagrosamente, o “pão” de que o homem necessita? A nossa
primeira leitura sugere que Deus atua de forma mais simples e mais normal… É
através da generosidade e da partilha dos homens (primeiro do homem que decide oferecer
o fruto do seu trabalho; depois, do profeta que manda distribuir o alimento)
que o “pão” chega aos necessitados. Normalmente, Deus serve-Se dos homens para
intervir no mundo e para fazer chegar ao mundo os seus dons. Muitas vezes
sonhamos com gestos espetaculares de Deus e vivemos de olhos fixos no céu à
espera que Deus Se digne intervir no mundo; e acabamos por não perceber que
Deus já veio ao nosso encontro e que Ele Se manifesta na ação generosa de
tantos homens e mulheres que praticam, sem publicidade, gestos de partilha, de
solidariedade, de doação, de entrega. É preciso aprendermos a detectar a
presença e o amor de Deus nesses gestos simples que todos os dias testemunhamos
e que ajudam a construir um mundo mais justo, mais fraterno e mais solidário.
• Ao mostrar que é através das ações dos homens que Deus sacia a
fome do mundo, o nosso texto convida-nos ao compromisso. Deus precisa de nós,
da nossa generosidade e bondade, para ir ao encontro dos nossos irmãos
necessitados e para lhes oferecer vida em abundância. Nós, os crentes, somos
chamados a ser – como o profeta Eliseu – testemunhas desse Deus que quer
partilhar com os homens o seu “pão”; e esse “pão” de Deus deve derramar-se
sobre os nossos irmãos nos nossos gestos de partilha, de generosidade, de
solidariedade, de amor sem limites.
2 leitura: Ef. 4,1-6 - AMBIENTE
A carta aos Efésios (que temos vindo a refletir e cujo texto vai
continuar a acompanhar-nos nos próximos domingos) parece ser uma “carta
circular”, enviada a várias comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia
Menor, inclusive aos cristãos de Éfeso. É considerada uma “carta de cativeiro”,
escrita por Paulo da prisão (os que aceitam a autoria paulina desta carta
discutem qual o lugar onde Paulo está preso, nesta altura, embora a maioria
ligue a carta ao cativeiro de Paulo em Roma entre 61/63).
De qualquer forma, é um texto bem trabalhado, que apresenta uma
catequese sólida e bem elaborada. Poderia ser um texto da fase “madura” de
Paulo. Alguns autores consideram a Carta aos Efésios uma espécie de síntese do
pensamento paulino.
O texto que hoje nos é proposto como segunda leitura é o início da parte
moral e parenética da carta (cf. Ef. 4,1-6,20). Temos, aí, uma espécie de
“exortação aos batizados”, na qual Paulo reflete longamente sobre a edificação
e o crescimento do “Corpo de Cristo”. Em termos sempre bastante concretos,
Paulo dá pistas aos cristãos acerca da forma como eles devem viver os seus
compromissos com Cristo, de forma a chegarem a ser Homens Novos.
MENSAGEM
O nosso texto começa com uma referência ao fato de Paulo estar preso… A
condição de prisioneiro por causa de Jesus e do Evangelho dá um peso especial
às recomendações do apóstolo: são as palavras de alguém que leva tão a sério a
proposta de Jesus, que é capaz de sofrer e de arriscar a vida por ela.
Na perspectiva de Paulo, a vida nova exige, em primeiro lugar, que os
crentes vivam unidos em Cristo. Ora, há comportamentos e atitudes que são
condição necessária para que essa unidade se torne efetiva (vs. 2-3)… Antes de
mais, Paulo refere a humildade, pois só ela permite superar o egoísmo, o
orgulho, a auto-suficiência que afastam os irmãos e que erguem entre eles
barreiras de separação; depois, Paulo refere a mansidão, irmã da humildade, e
qualidade que derruba barreiras na comunhão; Paulo refere também a paciência,
que permite ser tolerante e compreensivo para com as falhas dos irmãos e que
permite entender e aceitar as diferentes maneiras de ser e de agir… Em resumo,
trata-se, fundamentalmente, de fazer com que a caridade presida às relações que
estabelecemos uns com os outros; o amor deve ser sempre o suporte das nossas
relações humanas. A unidade é um dom de Deus; mas a sua efetivação depende do
contributo e do esforço de cada irmão.
Na segunda parte do nosso texto, Paulo apresenta um conjunto de
elementos que fundamentam a obrigatoriedade da unidade dos crentes: “há um só
Corpo e um só Espírito, como existe uma só esperança” na vida a que todos os
crentes foram chamados; “há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus
e Pai de todos, que está acima de todos, atua em todos e em todos se encontra”
(vs. 4-6). A menção do Pai, do Filho e do Espírito, neste contexto, sugere que
a Trindade é a fonte última e o modelo da unidade que os cristãos devem viver,
na sua experiência de caminhada comunitária.
ATUALIZAÇÃO
• A Igreja é um “corpo” – o “Corpo de Cristo”. Naturalmente, esse
“corpo” é formado por muitos membros, todos eles diversos; mas todos eles
dependem de Cristo (a “cabeça” desse “corpo”) e recebem d’Ele a mesma vida.
Formam, portanto, uma unidade… Têm o mesmo Pai (Deus), têm um projeto comum (o
projeto de Jesus), têm o mesmo objetivo (fazer parte da família de Deus e
encontrar a vida em plenitude), caminham na mesma direção animados pelo mesmo
Espírito, têm a mesma missão (dar testemunho no mundo do projeto de amor que
Deus tem para os homens). Neste esquema, não fazem qualquer sentido as
divisões, os ciúmes, as rivalidades, as invejas, os ódios, as divergências que
tantas vezes dividem os irmãos da mesma comunidade. Quando os irmãos não se
esforçam por caminhar unidos, provavelmente ainda não descobriram os
fundamentos da sua fé. A minha comunidade (cristã ou religiosa) é uma
comunidade que caminha unida e solidária, partilhando a vida e o amor, apesar
das diferenças legítimas dos seus membros? Em termos pessoais, sinto-me um
construtor de unidade, ou um fator de divisão?
• Para que a unidade seja possível, Paulo recomenda aos
destinatários da Carta aos Efésios a humildade, a mansidão e a paciência. São
atitudes que não se coadunam com esquemas de egoísmo, de orgulho, de
auto-suficiência, de preconceito em relação aos irmãos. Como é que eu me situo
face aos outros? A minha relação com os irmãos é marcada pelo egoísmo ou pela
disponibilidade para servir e partilhar? Procuro estar atento às necessidades
dos outros e ir ao seu encontro, ou levanto muros de orgulho e de
auto-suficiência que impedem a relação, a comunhão, a comunicação? Estou aberto
às diferenças e disposto a dialogar, ou vivo entrincheirado nos meus preconceitos,
catalogando e marginalizando aqueles que não concordam comigo?
• A Igreja é uma unidade; mas é também uma comunidade de pessoas
muito diferentes, em termos de raça, de cultura, de língua, de condição social
ou econômica, de maneiras de ser... As diferenças legítimas nunca devem ser
vistas como algo negativo, mas como uma riqueza para a vida da comunidade; não
devem levar ao conflito e à divisão, mas a uma unidade cada vez mais estreita,
construída no respeito e na tolerância. A diversidade é um valor, que não pode
nem deve anular a unidade e o amor dos irmãos.
Evangelho: Jo 6,1-5 - AMBIENTE
Naquele tempo, 1Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia, também chamado de Tiberíades.
2Uma grande multidão o seguia, porque via os sinais que ele operava a favor dos doentes. 3Jesus subiu ao monte e sentou-se aí, com os seus discípulos.
4Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus.
5Levantando
os olhos e vendo que uma grande multidão estava vindo ao seu encontro,
Jesus disse a Filipe: “Onde vamos comprar pão para que eles possam
comer?”
6Disse isso para pô-lo à prova, pois ele mesmo sabia muito bem o que ia fazer.
7Filipe respondeu: “Nem duzentas moedas de prata bastariam para dar um pedaço de pão a cada um”.
8Um dos discípulos, André, o irmão de Simão Pedro, disse: 9“Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas o que é isto para tanta gente?”
10Jesus disse: “Fazei sentar as pessoas”. Havia muita relva naquele lugar, e lá se sentaram, aproximadamente, cinco mil homens.
11Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes.
12Quando todos ficaram satisfeitos, Jesus disse aos discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!”
13Recolheram os pedaços e encheram doze cestos com as sobras dos cinco pães, deixadas pelos que haviam comido. 14Vendo
o sinal que Jesus tinha realizado, aqueles homens exclamavam: “Este é
verdadeiramente o Profeta, aquele que deve vir ao mundo”.
15Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte.
A liturgia propõe-nos hoje (e durante mais alguns domingos) a leitura do
capítulo 6 do Evangelho segundo João – a catequese sobre Jesus, o Pão da vida.
Na primeira parte do Evangelho (cf. Jo 4,1-19,42), João apresenta a
atividade de Jesus no sentido de criar e dar vida ao homem, de forma a que
surja um Homem Novo, liberto do egoísmo e do pecado, animado pelo Espírito,
capaz de seguir Jesus e de viver na mesma dinâmica de Jesus – isto é, no amor
ao Pai e aos irmãos. Esta primeira parte divide-se em dois “livros” – o “Livro
dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56) e o “Livro da Hora” (cf. Jo 12,1-19,42).
No “livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56), o autor do Quarto Evangelho
expõe, recorrendo a símbolos significativos (a “água” – cf. Jo 4,1-5,47; o
“pão” – cf. Jo 6,1-7,53; a “luz” – cf. Jo 8,12-9,41; o “pastor” – cf. Jo
10,1-42; a “ressurreição” – cf. Jo 11,1-56), a sua catequese sobre a ação de
Jesus em favor do homem. Jesus é aí apresentado como a proposta de vida
verdadeira que o homem é convidado a acolher e a assimilar.
No capítulo 6 – que hoje começamos a ler – João apresenta Jesus como o
Pão que sacia a sede de vida que o homem sente. O episódio hoje narrado é geograficamente
situado “na outra margem” do lago de Tiberíades (no capítulo anterior, Jesus
estava em Jerusalém, no centro da instituição judaica; agora, sem transição,
aparece na Galiléia, atravessando o “mar” para o outro lado). Em termos
cronológicos, João nota que estava perto a Páscoa, a festa mais importante do
calendário religioso judaico, que celebrava a libertação do Povo de Deus da
opressão do Egito.
MENSAGEM
Uma leitura, ainda que superficial, do texto que nos é proposto mostra
alguns interessantes paralelos entre a cena da multiplicação dos pães e a
libertação do Povo de Deus da escravidão do Egito, com Jesus no papel de
Moisés, o libertador. O fato dá-nos, logo à partida, uma chave de leitura para
entender esta catequese: João quer apresentar a ação de Jesus como uma ação
libertadora que visa fazer passar o Povo da terra da escravidão para a terra da
liberdade… A catequese que João nos apresenta vai desenvolver-se em vários
passos:
1. Começa com uma referência à “passagem do mar” (que, na realidade, é
um lago); essa referência pode aludir à passagem do mar Vermelho por Moisés com
o Povo libertado do Egito (cf. Ex. 14,15-31). O objetivo final de Jesus é,
portanto, fazer o Povo que o acompanha passar da terra da escravidão para a
terra da liberdade.
2. Como aconteceu com Moisés, com Jesus vai uma grande multidão. A
multidão que acompanha Jesus pretende “ver os milagres que Ele realizava nos
doentes” (v. 2). O termo grego aqui utilizado (“asthenês” – “enfermos”)
designa, em geral, alguém que está numa situação de grande debilidade. A
multidão segue Jesus, pois quer ver os sinais que Ele faz e que representam a
libertação do homem da sua debilidade e fragilidade. É um Povo marcado pela
opressão, que quer experimentar a libertação. Já perceberam que só Jesus, o
libertador, conseguirá ajudá-los a superar a sua condição de miséria e de
escravidão.
3. Jesus – diz o nosso texto – subiu a “um monte” (v. 3). A referência
ao “monte” leva-nos ao contexto da Aliança do Sinai e ao monte onde Deus
ofereceu ao Povo, através de Moisés, os mandamentos. Dizer que Jesus subiu ao
“monte” significa dizer que é através de Jesus que se vai realizar a nova
Aliança entre Deus e esse Povo de gente livre que, com Jesus, “atravessou o
mar” em direção à terra da liberdade.
4. A referência à Páscoa que estava próxima (v. 4) seria uma referência
inútil, se não estivéssemos no contexto da libertação do Povo da escravidão. Na
época de Jesus, a Páscoa era a festa da libertação e da constituição do Povo de
Deus; mas era também a festa que anunciava esse tempo futuro em que o Messias
ia libertar definitivamente o Povo de Deus. Nesta altura, o Povo devia subir a
Jerusalém para, no “monte” do Templo, celebrar a libertação; em contrapartida,
a multidão segue Jesus para um outro “monte”, do outro lado do mar… O Povo
começa a libertar-se do jugo das instituições judaicas e a perceber que é em
Jesus que se vão inaugurar os tempos novos da liberdade e da paz.
5. A multidão que segue Jesus tem fome e não tem que comer (vs. 5-6). A
referência leva-nos, outra vez, ao Êxodo, ao deserto, quando o Povo que
caminhava para a terra da liberdade sentiu fome. Então, foi Deus que respondeu
à necessidade do Povo e lhe deu comida em abundância; aqui, é Jesus que Se
apercebe das necessidades da multidão e tenta remediá-las. Ele mostra, assim, o
rosto do Deus do amor e da bondade, sempre atento às necessidades do seu Povo.
6. Qual a solução que Jesus vai dar à “fome” da multidão? Na procura da
solução, Jesus envolve a comunidade dos discípulos (“onde havemos de comprar
pão para lhes dar de comer?” – v. 5). A comunidade de Jesus (onde naturalmente
Jesus Se inclui) tem de sentir-se responsável pela “fome” dos homens e tem de
sentir que é sua responsabilidade e missão saciar essa “fome”.
João nota que Jesus põe a questão aos discípulos (representados por
Filipe) para os “experimentar” (v. 6). O problema pode ser posto da seguinte
forma: como é que a comunidade dos discípulos – formados na escola e nos
valores de Jesus – pretende responder à fome do mundo? É recorrendo ao sistema
econômico vigente, que se baseia no egoísmo e no poder do dinheiro e coloca os
bens nas mãos de poucos, gerando uma lógica de opressão, de dependência e de
necessidade? Será este o sistema desse mundo novo e livre que Jesus deseja
instituir? Os discípulos de Jesus alinham com esse sistema opressor, baseado na
compra, na venda e no lucro, ou já perceberam que Jesus tem uma proposta nova a
fazer, geradora de libertação e de vida em abundância para todos?
7. Filipe constata a impossibilidade de resolver o problema, dentro do
quadro econômico vigente… “Duzentos denários não bastariam para dar um pedaço a
cada um” (v. 7). Um denário equivalia ao salário base de um dia de trabalho;
assim, nem o dinheiro de mais de meio ano de trabalho daria para resolver o
problema. Por outras palavras: confiando no sistema instituído (o da compra e
venda, que supõe o sistema econômico regido pelo lucro egoísta), é impossível
resolver o problema da necessidade dos esfomeados. A comunidade de Jesus é
convidada, portanto, a abandonar este sistema e a encontrar outros…
8. André, porém, vislumbra uma solução diferente (v. 8-9). Este apóstolo
representa, na comunidade de Jesus, essa categoria dos que aderiram a Jesus de
forma convicta, que têm uma grande intimidade com Jesus e que, portanto, estão
mais conscientes das propostas de Jesus. No entanto, André não está muito
convicto dos resultados (“o que é isso para tanta gente?”). Seria bom –
considera André – encontrar outro sistema diferente do sistema explorador; mas
isso não resulta… Jesus vai, precisamente, provar que é possível encontrar
outro sistema que reparta vida e que elimine a lógica da exploração.
9. A figura do “menino” que apenas aparece na cena da multiplicação dos
pães na versão de João é uma figura desnecessária do ponto de vista da
narração: para o resultado final, tanto dava que o possuidor dos pães e dos
peixes fosse uma criança ou um adulto. Sendo assim, porque é que João insiste
em falar de uma criança? Porque a figura do “menino” é muito significativa: quer
pela idade, quer pela condição, é um “débil”, física e socialmente. Representa
a debilidade da comunidade de Jesus face às enormes carências do mundo. A
palavra grega utilizada por João para falar da criança indica simultaneamente
um “menino” e um “servo”: a comunidade, representada nesse “menino”,
apresenta-se diante do mundo como um grupo socialmente humilde, sem pretensão
alguma de poder e de domínio, dedicada ao serviço dos homens. É essa comunidade
simples e humilde, vocacionada para o serviço, que é chamada a resolver a
questão da necessidade dos pobres e a instaurar um novo sistema libertador.
Qual é esse sistema?
10. Os números “cinco” (“pães”) e “dois” (“peixes”), também não aparecem
por acaso: a sua soma dá “sete” – o número que significa totalidade… Ou seja: é
na partilha da totalidade do que a comunidade possui que se responde à carência
dos homens. É uma totalidade fracionada e diversificada; mas que, posta ao
serviço dos irmãos, sacia a fome do mundo.
11. Sobre os alimentos disponibilizados pela comunidade, Jesus pronuncia
uma “ação de graças” (v. 11). O “dar graças” significa reconhecer que os bens
são dons que vêm de Deus. Ora, reconhecer que os bens vêm de Deus significa
desvinculá-los do seu possessor humano, para reconhecer que eles são um dom
gratuito que Deus oferece aos homens; e Deus não oferece a uns e não a outros…
“Dar graças” é reconhecer que os bens recebidos pertencem a todos e que quem os
possui é apenas um administrador encarregado de os pôr à disposição de todos os
irmãos, com a mesma gratuidade com que os recebeu. Os bens são, assim, libertos
da posse exclusiva de alguns, para serem dom de Deus para todos os homens. É
este o sistema que Deus quer instaurar no mundo; e a comunidade cristã é
chamada a testemunhar esta lógica.
12. Uma vez saciada a fome do mundo, através desses bens que a
comunidade recebeu de Deus e que pôs ao serviço de todos os homens, os
discípulos são chamados a outras tarefas. Há sobras que não se podem perder,
mas que devem ser o princípio de outras abundâncias. É preciso multiplicar
incessantemente o amor e o pão… E a comunidade, uma vez percebido o projeto de
Jesus, deve usar o que tem para continuar a oferecer a vida aos homens. A
referência aos doze cestos recolhidos pelos discípulos pode ser uma alusão a
Israel (as doze tribos): se a comunidade dos discípulos souber partilhar aquilo
que recebeu de Deus, pode satisfazer a fome de todo o Povo (vs. 12-13).
13. Alguns dos que testemunharam a multiplicação dos pães e dos peixes
têm consciência de que Jesus é o Messias que devia vir para dar ao seu Povo
vida em abundância e querem fazê-lo rei (vs. 14-15). Jesus não aceita… Ele não
veio resolver os problemas do mundo instaurando um sistema de autoridade e de
poder; mas veio convidar os homens a viverem numa lógica de partilha e de
solidariedade, que se faz dom e serviço humilde aos irmãos. É dessa forma que
Ele se propõe – com a colaboração dos discípulos – eliminar o sistema opressor,
responsável pela fome e pela miséria. O mundo novo que Jesus veio propor não assenta
numa lógica de poder e autoridade, mas no serviço simples e humilde que leva a
partilhar a vida com os irmãos.
A perícope que nos é hoje proposta pretende, pois, apresentar o projeto
de Deus realizado em Jesus como um projeto de libertação, que há-de eliminar a
opressão e instaurar um mundo de homens livres, salvos do egoísmo e capazes de
amar e de partilhar. Frente ao sistema que se baseia no lucro e na exploração,
Jesus propõe uma nova atitude. É necessário – diz Jesus – substituir o egoísmo
pelo amor e pela partilha. A comunidade de Jesus tem a função de descobrir esta
lógica, de a acolher e de propô-la ao mundo. Ela tem de aprender que os bens
são um dom de Deus, destinados a todos. Procedendo dessa forma, ela está a
instaurar um novo sistema e a libertar os homens desses condicionamentos
egoístas que geram injustiça, necessidade, carência, debilidade, sofrimento.
Quem quiser acompanhar Jesus neste caminho, passará seguramente da escravidão
do lucro para a liberdade da partilha, do serviço, do amor aos irmãos.
ATUALIZAÇÃO
• Jesus é o Deus que Se revestiu da nossa humanidade e veio ao nosso
encontro para nos revelar o seu amor. O seu projeto – projeto que Ele
concretizou em cada palavra e em cada gesto enquanto percorreu, com os seus
discípulos, as vilas e aldeias da Palestina – consiste em libertar os homens de
tudo aquilo que os oprime e lhes rouba a vida. O nosso texto mostra Jesus
atento às necessidades da multidão, empenhado em saciar a fome de vida dos
homens, preocupado em apontar-lhes o caminho que conduz da escravidão à
liberdade. A atitude de Jesus é, para nós, uma expressão clara do amor e da
bondade de um Deus sempre atento às necessidades do seu Povo. Garante-nos que,
ao longo do caminho da vida, Deus vai ao nosso lado, atento aos nossos dramas e
misérias, empenhado em satisfazer as nossas necessidades, preocupado em dar-nos
o “pão” que sacia a nossa fome de vida. A nós, compete-nos abrir o coração ao
seu amor e acolher as propostas libertadoras que Ele nos faz.
• A “fome” de pão que a multidão sente e que Jesus quer saciar é um
símbolo da fome de vida que faz sofrer tantos dos nossos irmãos… Os que têm
“fome” são aqueles que são explorados e injustiçados e que não conseguem
libertar-se; são os que vivem na solidão, sem família, sem amigos e sem amor;
são os que têm que deixar a sua terra e enfrentar uma cultura, uma língua, um
ambiente estranho para poderem oferecer condições de subsistência à sua
família; são os marginalizados, abandonados, segregados por causa da cor da sua
pele, por causa do seu estatuto social ou econômico, ou por não terem acesso à
educação e aos bens culturais de que a maioria desfruta; são as crianças
vítimas da violência e da exploração; são as vítimas da economia global, cuja
vida dança ao sabor dos interesses das multinacionais; são as vítimas do
imperialismo e dos interesses dos grandes do mundo… É a esses e a todos os
outros que têm “fome” de vida e de felicidade, que a proposta de Jesus se
dirige.
• No nosso Evangelho, Jesus dirige-Se aos seus discípulos e
diz-lhes: “dai-lhes vós mesmos de comer”. Os discípulos de Jesus são convidados
a continuar a missão de Jesus e a distribuírem o “pão” que mata a fome de vida,
de justiça, de liberdade, de esperança, de felicidade de que os homens sofrem.
Depois disto, nenhum discípulo de Jesus pode olhar tranquilamente os seus
irmãos com “fome” e dizer que não tem nada com isso… Os discípulos de Jesus são
convidados a responsabilizarem-se pela “fome” dos homens e a fazerem tudo o que
está ao seu alcance para devolver a vida e a esperança a todos aqueles que
vivem na miséria, no sofrimento, no desespero.
• No nosso Evangelho, os discípulos constatam que, recorrendo ao
sistema econômico vigente, é impossível responder à “fome” dos necessitados. O
sistema capitalista vigente – que, quando muito, distribui a conta gotas
migalhas da riqueza para adormecer a revolta dos explorados – será sempre um
sistema que se apóia na lógica egoísta do lucro e que só cria mais opressão,
mais dependência, mais necessidade. Não chega criar melhores programas de
assistência social ou programas de rendimento mínimo garantido, ou outros
sistemas que apenas perpetuam a injustiça… Os discípulos de Jesus têm de
encontrar outros caminhos e de propor ao mundo que adote outros valores. Quais?
• Jesus propõe algo de realmente novo: propõe uma lógica de
partilha. Os discípulos de Jesus são convidados a reconhecer que os bens são um
dom de Deus para todos os homens e que pertencem a todos; são convidados a
quebrar a lógica do açambarcamento egoísta dos bens e a pôr os dons de Deus ao
serviço de todos. Como resultado, não se obtém apenas a saciedade dos que têm
fome, mas um novo relacionamento fraterno entre quem dá e quem recebe, feito de
reconhecimento e harmonia que enriquece ambos e é o pressuposto de uma nova ordem,
de um novo relacionamento entre os homens. É esta a proposta de Deus; e é disto
que os discípulos são chamados a dar testemunho.
• Os discípulos de Jesus não podem, contudo, dirigir-se aos irmãos
necessitados olhando-os “do alto”, instalados nos seus esquemas de poder e
autoridade, usando a caridade como instrumento de apoio aos seus projetos
pessoais, ou exigindo algo em troca… Os discípulos de Jesus devem ser um grupo
humilde (a “criança” do Evangelho), sem pretensão alguma de poder e de domínio,
e que apenas está preocupado em servir os irmãos com “fome”.
• O que resulta da proposta de Jesus é uma humanidade totalmente
livre da escravidão dos bens. Os necessitados tornam-se livres porque têm o
necessário para viverem uma vida digna e humana; os que repartem os bens
libertam-se da lógica egoísta dos bens e da escravidão do dinheiro e descobrem
a liberdade do amor e do serviço.
• No final, os discípulos são convidados a recolher os restos, que
devem servir para outras “multiplicações”. A tarefa dos discípulos de Jesus é
uma tarefa nunca acabada, que deverá recomeçar em qualquer tempo e em qualquer
lugar onde haja um irmão “com fome”.
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