Poucas coisas representam tão bem o perigo do amor próprio desordenado quanto um espelho.
Poucas coisas representam tão bem o perigo do amor próprio desordenado
quanto um espelho. Os cômodos de nossas casas sempre têm algum e as
nossas ruas estão todas repletas deles – e não há quem passe em frente a
uma vitrine sem admirar um pouco a si mesmo. Nas academias – não as de
ciências, mas as de ginástica –, onde reina a exaltação do próprio ego,
os espelhos são indispensáveis: praticamente nenhum canto foge ao
alcance de suas vistas. Em uma sociedade em que praticamente todos se
olham tanto e com tanta frequência, no entanto,
nunca o conhecimento de si mesmo foi tão desprezado e negligenciado.
É que as pessoas estão excessivamente preocupadas com a "imagem" que os
outros têm de si, mais que com aquilo que realmente são.
Sêneca e outros filósofos antigos diziam que os espelhos – facilmente
encontrados na superfície de uma pedra ou de um rio límpido – foram
estabelecidos pela própria natureza como "mãe e mestra dos bons
costumes". Uma fábula de Esopo conta que dois irmãos – um menino, de
bela aparência, e uma menina, extraordinariamente feia – encontraram, um
dia, enquanto brincavam, um espelho. Vendo sua imagem refletida, o
rapaz começou a gabar-se, pois era muito bonito; sua irmã, por outro
lado, ficou aborrecida e foi reclamar da atitude do irmão para o pai.
Este, abraçando os dois, disse-lhes: "Eu quero que vocês dois olhem para
o espelho todos os dias: você, meu filho, para não estragar a sua
beleza com uma má conduta; e você, minha filha, para compensar a sua
falta de beleza com uma vida de virtudes" [1]. Na lição dos antigos, o
espelho seria uma esplêndida oportunidade para colocar em prática o
imperativo socrático: "Conhece-te a ti mesmo".
O que pode servir para a própria edificação também se pode tornar,
todavia, um grande instrumento de vaidade. Por isso, o padre António
Vieira, em seu
Sermão sobre o Demônio Mudo, compara o espelho ao próprio
diabo: "Desde sua mesma origem não há duas coisas que Deus criasse mais
parecidas e semelhantes que o demônio e o espelho. O demônio
primeiro foi anjo, e depois demônio; o espelho primeiro foi instrumento
do conhecimento próprio, e depois do amor-próprio, que é a raiz de todos
os vícios" [2].
O orador sacro conta que o Papa Inocêncio X escolheu um religioso de
grande virtude e prudência para visitar os conventos femininos, a fim de
examinar e tirar de suas celas – não pelo uso da força, mas por meio de
conselhos e exortações – coisas que fossem indignas ou inapropriadas a
uma religiosa. Tendo inspecionado tudo com muito zelo, o visitador
voltou, depois de alguns meses, dizendo ao Santo Padre que "vinha muito
edificado do que achara, mas não de todo contente". De fato, em sua
averiguação, o religioso tinha encontrado muitas penitências,
disciplinas, orações e devoções. Algumas alfaias ou peças de maior valor
– cuja posse não era permitida pelo voto de pobreza que tinham feito –
ele conseguira fazer que elas abandonassem ou usassem para outros fins.
Uma coisa, no entanto, ele não conseguira tirar dessas religiosas: o seu espelho.
Diante da surpresa do Papa com a sua resposta, o piedoso homem
explicou: "Tenho alcançado por larga experiência, que enquanto uma
religiosa se quer ver ao espelho, não tem acabado de entregar todo o
coração ao Esposo do céu, e ainda lhe ficam nele alguns ressábios do
amor e vaidade do mundo" [3].
Embora as palavras do religioso se refiram mais claramente às pessoas
de vida consagrada, o seu sentido profundo pode – e deve – ser
aproveitado por todos os cristãos, seja qual for o seu estado de vida.
Para seguir a Cristo, não é preciso que ninguém destrua os espelhos que
possui – assim como não é preciso, literalmente, que se mutile o próprio
olho ou a própria mão (cf.
Mt 5, 29-30). Todos, no entanto, estão incluídos na exortação de Nosso Senhor: "Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo (...) e siga-me" (Lc 9, 23).
Renuncie a si mesmo, ensina Nosso Senhor. O que prefere a
vaidade humana, ao contrário? Como renuncia a si mesmo o que não suporta
estar nem duas horas sem se ver no espelho? Ou outros tantos, que
"gastam as horas e perdem os dias inteiros em se estar vendo, revendo e
contemplando no espelho", como se não tivessem nem esperassem outra
glória? Ou quem se preocupa mais em se enfeitar e embelezar aos olhos do
mundo – mas esquece de ornar a alma para Deus, a quem não importa a aparência, mas o coração (cf. 1 Sm 16, 7)?
Por isso, São Bernardo contrapõe aos espelhos humanos o que ele intitulou de
Speculum Monachorum – o Espelho dos Monges [4]: que as pessoas
que querem servir a Deus conheçam a si mesmas, mas que o façam
examinando, sobretudo, os seus pensamentos, as suas palavras e as suas
obras, para conformá-las em tudo à semelhança de Deus. Esse é o
verdadeiro amor a si mesmo e o autêntico cultivo da beleza, pois cuida não da formosura frágil do corpo, mas do brilho perene da alma, que não pode ser apagado nem com as enfermidades físicas nem com as vicissitudes do tempo.
O padre António Vieira conclui o seu sermão com estas duras palavras: "
Que coisa é a formosura, senão uma caveira bem vestida,
a que a menor enfermidade tira a cor, e antes de a morte a despir de
todo, os anos lhe vão mortificando a graça daquela exterior e aparente
superfície, de tal sorte que, se os olhos pudessem penetrar o interior
dela, o não poderiam ver sem horror?" [5].
"Que coisa é a formosura, senão uma caveira bem vestida"? Que, ao olhar
para o espelho, sejamos capazes de enxergar a "caveira bem vestida" que
é cada um de nós, lembrando que somos pó, e ao pó, um dia, tornaremos
(cf.
Gn 3, 19). Assim poderemos dar valor ao que é realmente necessário: amar a Deus, até o desprezo de nós mesmos [6].
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Recomendações
- DE. 1: A dificuldade de amar
- Qual deve ser a medida do amor próprio?
Referências
- Aesop, The Brother and the Sister. In: Aesop's Fables, Section 3.
- Padre António Vieira, Sermão do Demônio Mudo (1651), § IV. In: Literatura Brasileira, UFSC.
- Ibidem, § III.
- Cf. PL 184, 1175-1178.
- Padre António Vieira, Sermão do Demônio Mudo (1651), § XI. In: Literatura Brasileira, UFSC.
- Cf. Santo Agostinho, De Civitate Dei, XIV, 28 (PL 41, 436).
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