A liturgia do 15º domingo do tempo comum
recorda-nos que Deus atua no mundo através dos homens e mulheres que Ele chama
e envia como testemunhas do seu projeto de salvação. Esses “enviados” devem ter
como grande prioridade a fidelidade ao projeto de Deus e não a defesa dos seus
próprios interesses ou privilégios.
A primeira leitura apresenta-nos o exemplo do
profeta Amós. Escolhido, chamado e enviado por Deus, o profeta vive para propor
aos homens – com verdade e coerência – os projetos e os sonhos de Deus para o
mundo. Atuando com total liberdade, o profeta não se deixa manipular pelos
poderosos nem amordaçar pelos seus próprios interesses pessoais.
A segunda leitura garante-nos que Deus tem um
projeto de vida plena, verdadeira e total para cada homem e para cada mulher –
um projeto que desde sempre esteve na mente do próprio Deus. Esse projeto,
apresentado aos homens através de Jesus Cristo, exige de cada um de nós uma
resposta decidida, total e sem subterfúgios.
No Evangelho, Jesus envia os discípulos em missão.
Essa missão – que está no prolongamento da própria missão de Jesus – consiste
em anunciar o Reino e em lutar objetivamente contra tudo aquilo que escraviza o
homem e que o impede de ser feliz. Antes da partida dos discípulos, Jesus
dá-lhes algumas instruções acerca da forma de realizar a missão… Convida-os
especialmente à pobreza, à simplicidade, ao despojamento dos bens materiais.
1ª leitura: Am. 7,12-15 - AMBIENTE
Amós, o “profeta da justiça social”, exerceu o seu ministério
profético no reino do Norte (Israel) em meados do séc. VIII a.C.
(possivelmente, por volta de 762 a. C.), durante o reinado de Jeroboão II. É
uma época de prosperidade econômica e de tranquilidade política: as conquistas
de Jeroboão II alargaram consideravelmente os limites do reino e permitiram a
entrada de tributos dos povos vencidos; o comércio e a indústria (mineira e
têxtil) desenvolveram-se significativamente… As construções da burguesia urbana
atingiram um luxo e magnificência até então desconhecidos.
A prosperidade e bem-estar das classes favorecidas
contrastavam, porém, com a miséria das classes baixas. O sistema de
distribuição estava nas mãos de comerciantes sem escrúpulos que, aproveitando o
bem-estar económico, especulavam com os preços. Com o aumento dos preços dos
bens essenciais, as famílias de menores recursos endividavam-se e acabavam por
se ver espoliadas das suas terras em favor dos grandes latifundiários. A classe
dirigente, rica e poderosa, dominava os tribunais e subornava os juízes,
impedindo que o tribunal fizesse justiça aos mais pobres e defendesse os
direitos dos menos poderosos.
Entretanto, a religião florescia num esplendor ritual nunca visto. Magníficas festas, abundantes sacrifícios de animais, um culto esplendoroso, marcavam a vida religiosa dos israelitas… O problema é que esse culto não tinha nada a ver com a vida: no dia a dia, os mesmos que participavam nesses ritos cultuais majestosos praticavam injustiças contra o pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito. Ainda mais: os ricos ofereciam a Deus abundantes ofertas, a fim de serenar as suas consciências culpadas e a fim de assegurar a cumplicidade de Deus para os seus negócios escuros… Além disso, a influência da religião cananeia estava a levar os israelitas para o sincretismo religioso: o culto a Jahwéh misturava-se com rituais pagãos provenientes dos cultos a Baal e Astarte. Essa confusão religiosa punha em sérios riscos a pureza da fé jahwista.
Entretanto, a religião florescia num esplendor ritual nunca visto. Magníficas festas, abundantes sacrifícios de animais, um culto esplendoroso, marcavam a vida religiosa dos israelitas… O problema é que esse culto não tinha nada a ver com a vida: no dia a dia, os mesmos que participavam nesses ritos cultuais majestosos praticavam injustiças contra o pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito. Ainda mais: os ricos ofereciam a Deus abundantes ofertas, a fim de serenar as suas consciências culpadas e a fim de assegurar a cumplicidade de Deus para os seus negócios escuros… Além disso, a influência da religião cananeia estava a levar os israelitas para o sincretismo religioso: o culto a Jahwéh misturava-se com rituais pagãos provenientes dos cultos a Baal e Astarte. Essa confusão religiosa punha em sérios riscos a pureza da fé jahwista.
É neste contexto que aparece o profeta Amós.
Natural de Técua (uma pequena aldeia situada no deserto de Judá), Amós não é
profeta profissional; mas, chamado por Deus, deixa a sua terra e parte para o
reino vizinho para gritar à classe dirigente a sua denúncia profética. A rudeza
do seu discurso, aliada à integridade e afoiteza da sua fé, traz algo do
ambiente duro do deserto e contrasta com a indolência e o luxo da sociedade
israelita da época.
O episódio que a primeira leitura deste domingo nos
propõe leva-nos até ao santuário de Betel, no centro da Palestina. Trata-se de
um lugar considerado sagrado, desde tempos imemoriais. De acordo com Gn 35,1-8,
Jacob construiu aí um altar e dedicou-o a Jahwéh. Mais tarde, Betel aparece
como o local onde se reúne a assembléia de “todo o Israel” para “consultar
Deus” (cf. Jz. 20,18), para chorar diante de Deus a sua infelicidade (cf. Jz.
20,26) e para se encontrar com Deus (cf. Jz. 21,2). Tudo isto reflete a
importância cultual do lugar.
Quando o Povo de Deus se dividiu em dois reinos,
após a morte de Salomão (932 a.C.), os reis do norte (Israel) potenciaram o
culto em Betel, para impedir que os seus súbditos tivessem de deslocar-se a
Jerusalém, situado no reino inimigo do sul (Judá). Então, Betel transformou-se
numa espécie de “santuário oficial” do regime, onde o culto era financiado, em
grande parte, pelo próprio rei. O sacerdote que presidia ao culto era uma
espécie de “funcionário real”, encarregado de zelar para que os interesses do
rei fossem defendidos, nesse local por onde passava uma parte significativa dos
fiéis de Israel. Na época em que Amós exerce o seu ministério profético em
Betel, o sacerdote encarregado do santuário era um tal Amasias. Alguns
elementos que chegaram até nós parecem indiciar também a existência em Betel de
uma imagem de um bezerro, que representava Jahwéh e que era adorado pelos fiéis
(cf. Os. 10,5).
Betel é um dos lugares onde ecoa a denúncia
profética de Amós. Provavelmente, Amós criticou as injustiças cometidas pelo
rei e pela classe dirigente; e, certamente, denunciou, nesse lugar, um culto
que era aliado da injustiça e que procurava comprometer Deus com os esquemas
corruptos dos poderosos.
MENSAGEM
O nosso texto descreve o confronto entre o
sacerdote Amasias e o profeta Amós. É um texto fundamental para entendermos a missão
do profeta, a sua liberdade face aos interesses do mundo e dos poderes
instituídos.
O sacerdote Amasias é o homem da religião oficial,
enfeudada aos interesses do rei e da ordem estabelecida, comprometida com o
poder político. Para ele, o que interessa é manter intocável um sistema que
assegura benefícios mútuos, quer ao trono, quer ao altar. Nesse sistema, o rei
é o guardião supremo da ordem instituída e não há lugar (nem necessidade) de
uma intervenção que ponha em causa a ordem estabelecida. A tarefa da religião
é, na perspectiva de Amasias, proteger e legitimar os interesses do rei; em
troca, o rei sustenta o santuário. Trono e religião são, assim, cúmplices
ligados por interesses mútuos, que fazem tudo para manter o “statu quo”
e os privilégios. O próprio Amasias tem muito a perder, se as coisas não
correrem bem, já que é um funcionário real cuja função é defender os interesses
do rei. A religião de Amasias é uma religião escrava dos interesses, que se
ajoelha diante dos poderosos e que está completamente fechada aos desafios de
Deus (que, se fossem escutados e acolhidos, poderiam desarranjar o sistema).
Nesta perspectiva, a denúncia de Amós soa a rebelião contra os interesses
enlaçados do poder e da religião, a doutrina subversiva que põe em causa as
estruturas e que abala os fundamentos da ordem estabelecida. Por isso, há que
usar toda a força do sistema para calar a voz incômoda do profeta. Amós é,
portanto, denunciado, convidado a deixar o santuário e a voltar à sua terra
para “ganhar aí o seu pão”.
A resposta de Amós deixa claro que o profeta é um
homem livre, que não atua por interesses humanos (próprios ou alheios), mas por
mandato de Deus. A iniciativa de ser profeta não foi sua… Deus é que veio ao
seu encontro, interrompeu a normalidade da sua vida e convocou-o para a missão.
De resto, a profecia não é, para ele, uma ocupação profissional, ou uma forma
de realizar interesses pessoais. Amós é profeta porque Deus irrompeu na sua
vida com uma força irresistível, tomou conta dele e enviou-o a Israel. O
profeta não está, portanto, preocupado com os interesses do rei ou com os
interesses do sacerdote Amasias, ou com a perpetuação de uma ordem social
injusta e opressora… Ele foi convocado para ser a voz de Deus e só lhe
interessa cumprir a missão que Deus lhe confiou. Doa a quem doer, é isso que
Amós procurará fazer. Ele não pode, nem quer ficar calado… A sua missão (ainda
que isso custe a Amasias e ao rei) tem autoridade por si própria, porque vem de
Deus e Deus é infinitamente maior do que o rei. Munido dessa autoridade (que
não só o legitima na sua ação profética, mas até o obriga a ser fiel à missão
que lhe foi confiada), Amós anuncia (num desenvolvimento que o texto que nos é
proposto não conservou – cf. Am. 7,16-17) o castigo para o rei, para Amasias e
para toda a nação infiel.
ATUALIZAÇÃO
• Neste texto – como em tantos outros textos
proféticos – transparece a absoluta convicção de que o profeta é um homem de
Deus, escolhido por Deus, chamado por Deus, enviado por Deus, legitimado por
Deus. Deus está na origem da vocação profética; e a atuação do profeta só faz
sentido se partir de Deus e se tiver como objetivo apresentar aos homens as
propostas de Deus. É preciso que nós crentes – constituídos profetas pelo
batismo – tenhamos Deus como a referência de onde parte e para onde se orienta
a nossa ação e missão proféticas. Nenhum profeta o é por sua iniciativa
pessoal, ou para anunciar propostas pessoais; mas é Deus que nos chama, que nos
envia e que está na base desse testemunho que somos chamados a dar no meio dos
homens.
• O profeta é um homem livre, que não se
amedronta nem se dobra face aos interesses dos poderosos. Por isso, o profeta
não pode calar-se perante a injustiça, a opressão, a exploração, tudo o que
rouba a vida e impede a realização plena do homem. Amasias – o sacerdote que
alinha ao lado dos poderosos, que defende intransigentemente a ordem
estabelecida, que se compromete com ela, que vende a sua consciência para
manter o lugar e que transige com a injustiça para não incomodar os poderosos –
é um exemplo a não seguir… Amós, o profeta que não se cala nem se vende, que
está disposto a arriscar tudo (inclusive a própria vida) para defender os
pequenos e os fracos e que não hesita em propor os projetos de Deus para o
homem e para o mundo, deve ser o modelo para qualquer crente a quem Deus chama
a cumprir uma missão profética no meio do mundo.
• Amasias é o homem comodamente instalado nos
seus privilégios, benesses, que cala a voz da própria consciência porque tem
muito a perder e não quer arriscar; Amós é o profeta livre da preocupação com
os bens materiais, que não está preocupado com a defesa dos próprios
interesses, mas sim com a defesa intransigente dos interesses dos pobres e
marginalizados, que são os interesses de Deus. A diferença entre os dois é a
diferença entre aquele para quem os valores materiais são a prioridade
fundamental e aquele para quem os valores de Deus são a prioridade fundamental.
O verdadeiro profeta não pode colocar os bens materiais como a sua prioridade
fundamental; se isso acontecer, perderá a sua liberdade profética e tornar-se-á
um escravo de quem lhe paga.
• Este texto fala-nos também da promiscuidade
entre a religião e o poder. Trata-se de uma combinação que não produz bons
frutos (como, aliás, a história da Igreja tem demonstrado nas mais diversas
épocas e lugares). A Igreja, para poder exercer com fidelidade a sua missão
profética, tem de evitar colar-se aos poderosos e depender deles, sob pena de
ser infiel à missão que Deus lhe confiou. Uma Igreja que está preocupada em não
incomodar o poder para manter privilégios fiscais, ou para continuar a receber
dinheiro para as instituições que tutela, será uma Igreja escrava, de mãos
atadas, dependente, que está longe de Jesus Cristo e da sua proposta
libertadora.
2 leitura: Ef. 1,3-14 - AMBIENTE
A cidade de Éfeso, capital da Província romana da
Ásia, estava situada na costa ocidental da Ásia Menor. O seu importante porto e
a sua numerosa população faziam dela uma cidade florescente. Paulo passou em
Éfeso na sua segunda viagem missionária (cf. At. 18,19-21) e, durante a sua
terceira viagem missionária, fez de Éfeso o quartel-general, a partir do qual
evangelizou toda a zona ocidental da Ásia Menor.
A nossa Carta aos Efésios é, provavelmente, um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor, numa altura em que Paulo está na prisão (em Cesareia? Em Roma?). O seu portador é um tal Tíquico.
A nossa Carta aos Efésios é, provavelmente, um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor, numa altura em que Paulo está na prisão (em Cesareia? Em Roma?). O seu portador é um tal Tíquico.
Alguns vêem nesta carta uma espécie de síntese da
teologia paulina, numa altura em que a missão do apóstolo está praticamente
terminada no oriente. O tema mais importante da carta aos Efésios é aquilo que
o autor chama “o mistério”: trata-se do projeto salvador de Deus, definido e
elaborado desde sempre, escondido durante séculos, revelado e concretizado plenamente
em Jesus, comunicado aos apóstolos e, nos “últimos tempos”, tornado presente no
mundo pela Igreja.
O texto que nos é hoje proposto aparece no início da carta. É um hino litúrgico que deve ter circulado nas comunidades cristãs antes de ser enxertado aqui por Paulo. Este hino dá graças pela ação do Pai (cf. Ef. 1,3-6), do Filho (cf. Ef. 1,7-12) e do Espírito Santo (cf. Ef. 1,13-14), no sentido de oferecer aos homens a salvação.
O texto que nos é hoje proposto aparece no início da carta. É um hino litúrgico que deve ter circulado nas comunidades cristãs antes de ser enxertado aqui por Paulo. Este hino dá graças pela ação do Pai (cf. Ef. 1,3-6), do Filho (cf. Ef. 1,7-12) e do Espírito Santo (cf. Ef. 1,13-14), no sentido de oferecer aos homens a salvação.
MENSAGEM
A ação de graças dirige-se a Deus, pois Ele é a
fonte última de todas as graças concedidas aos homens. Essas graças atingiram
os homens através do Filho, Jesus Cristo.
Qual é então, segundo este hino, a ação do Pai?
O Pai, no seu amor, elegeu-nos desde sempre (“antes
da criação do mundo”). Elegeu-nos para quê? A resposta é: “para sermos santos e
irrepreensíveis”. A palavra “santo” indica a situação de alguém que foi
separado do mundo e consagrado a Deus, para o serviço de Deus; a palavra
“irrepreensível” era usada para falar das vítimas oferecidas em sacrifício a
Deus, que deviam ser imaculadas e sem defeito… Significa, pois, uma santidade
(isto é, uma consagração a Deus) verdadeira e radical.
Além de nos eleger, o Pai predestinou-nos “para
sermos seus filhos adotivos”. Através de Cristo, o Pai ofereceu-nos a sua vida
e integrou-nos na sua família na qualidade de filhos. O fim desta ação de Deus
é o louvor da sua glória.
“Eleição” e “adoção como filhos” resultam do imenso
amor de Deus pelos homens – um amor que é gratuito, incondicional e radical.
E Jesus Cristo, o Filho, que papel teve neste
processo?
Nos vs. 7-10, o autor do hino refere-se ao sangue
derramado de Cristo e ao seu significado redentor. A morte de Jesus na cruz é o
sinal evidente do espantoso amor de Deus pelos homens; e dessa forma, Deus
ensinou-nos a viver no amor, no amor total e radical. Através de Cristo, Deus
derramou sobre nós a sua graça, tornando-nos pessoas novas e diferentes,
capazes de viver no amor. Assim, Deus manifestou-nos o seu projeto de salvação
(que o hino chama “o mistério”) e que consiste em levar-nos a uma identificação
plena com Jesus (na sua ilimitada capacidade de amar e de dar vida), a uma
unidade e harmonia totais com Jesus. Identificando-nos com Cristo e
ensinando-nos a viver no amor total e radical, Deus reconciliou-nos consigo,
com todos os outros e com a própria natureza. Da ação redentora de Cristo
nasceu, pois, um Homem Novo, capaz de um novo tipo de relacionamento (não
marcado pelo egoísmo, pelo orgulho, pela auto-suficiência, mas marcado pelo
amor e pelo dom da vida) com Deus, com os outros homens e mulheres e com toda a
criação.
Dessa forma, em Cristo fomos constituídos filhos de
Deus e herdeiros da salvação, conforme o projeto de Deus preparado desde toda a
eternidade em nosso favor (vs. 11-12).
Os crentes que aderiram a Jesus foram marcados pelo
“selo” do Espírito. Esse “selo” é a marca que atesta a nossa integração na
família divina e a garantia de que um dia participaremos na vida eterna, plena
e verdadeira, conforme o plano que Deus tem para nós (vs. 13-14).
ATUALIZAÇÃO
• O nosso texto afirma, de forma clara, que
Deus tem um projeto de vida plena e total para os homens, um projeto que desde
sempre esteve na mente de Deus. É muito importante termos isto em conta: não
somos um acidente de percurso na evolução inexorável do cosmos, mas somos
atores principais de uma história de amor que o nosso Deus sempre sonhou e que
Ele quis escrever e viver conosco… No meio das nossas desilusões e dos nossos
sofrimentos, da nossa finitude e do nosso pecado, dos nossos medos e dos nossos
dramas, não esqueçamos que somos filhos amados de Deus, a quem Ele oferece
continuamente a vida definitiva, a verdadeira felicidade.
• De acordo com o nosso texto, Deus
“elegeu-nos… para sermos santos e irrepreensíveis”. Já vimos que “ser santo”
significa ser consagrado para o serviço de Deus. O que é que isto implica em
termos concretos? Entre outras coisas, implica tentar descobrir o plano de
Deus, o projeto que Ele tem para cada um de nós e concretizá-lo dia a dia com
verdade, fidelidade e radicalidade. No meio das solicitações do mundo e das
exigências da nossa vida profissional, social e familiar, temos tempo para
Deus, para dialogar com Ele e para tentar perceber os seus projetos e
propostas? E temos disponibilidade e vontade de concretizar as suas propostas,
mesmo quando elas não são conciliáveis com os nossos interesses pessoais?
• O nosso texto afirma ainda a centralidade de
Cristo nesta história de amor que Deus quis viver conosco… Jesus veio ao nosso
encontro, cumprindo com radicalidade a vontade do Pai e oferecendo-Se até à
morte para nos ensinar a viver no amor. Como é que assumimos e vivemos essa
proposta de amor que Jesus nos apresentou? Aprendemos com Ele a amar sem
exceção e com radicalidade? Somos profetas que testemunham, diante do mundo, o
projeto de Deus? Aqueles que caminham pelo mundo ao nosso lado encontram nos
nossos gestos e atitudes sinais vivos do amor de Deus revelado em Jesus?
Evangelho: Mc. 6,7-13 - AMBIENTE
Naquele tempo, 7Jesus chamou os doze, e começou a enviá-los dois a dois, dando-lhes poder sobre os espíritos impuros.
8Recomendou-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser um cajado; nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura. 9Mandou que andassem de sandálias e que não levassem duas túnicas.
10E Jesus disse ainda: “Quando entrardes numa casa, ficai ali até vossa partida. 11Se
em algum lugar não vos receberem, nem quiserem vos escutar, quando
sairdes, sacudi a poeira dos pés, como testemunho contra eles!”
12Então os doze partiram e pregaram que todos se convertessem. 13Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo.
Toda a primeira parte do Evangelho segundo Marcos
(cf. Mc. 1,14-8,30) está montada à volta da ideia de que Jesus é o Messias que
proclama o Reino de Deus. Como ponto de partida está um sumário-anúncio inicial
(cf. Mc. 1,14-15) onde se proclama a chegada do Reino; em seguida, Jesus
apresenta a proposta do Reino a um grupo de discípulos, que escutam o apelo e
aceitam embarcar na aventura do Reino de Deus (cf. Mc. 1,16-20); depois, Marcos
descreve como Jesus, com palavras e com gestos concretos, vai propondo essa
nova realidade que é o Reino e vai intercalando as propostas de Jesus com as
respostas positivas ou negativas dos fariseus, do povo e dos próprios
discípulos (cf. Mc. 1,21-8,30).
À medida que o “caminho do Reino” avança, os
discípulos vão aparecendo cada vez mais ligados a Jesus e cada vez mais
implicados no projeto do Reino. Chamados por Jesus, eles responderam
positivamente a esse chamamento e seguiram-n’O; depois, durante a caminhada que
fizeram com Jesus, eles escutaram os ensinamentos de Jesus e testemunharam os
seus gestos e sinais. Formados por Jesus na “escola do Reino”, os discípulos
podem agora ser enviados ao mundo, a fim de anunciar a todos os homens a
chegada desse mundo novo que Jesus chamava o “Reino de Deus”.
MENSAGEM
O nosso texto é uma autêntica catequese sobre a
missão dos discípulos de Jesus no meio do mundo. As instruções postas aqui na
boca de Jesus conservam o seu sentido e valor para os discípulos de todo o
tempo e lugar.
Marcos começa por deixar claro que a iniciativa do
chamamento dos discípulos é de Jesus: Ele “chamou-os” (v. 7). Não há qualquer
explicação sobre os critérios que levaram a essa escolha: falar de vocação e de
eleição é falar de um mistério insondável, que depende de Deus e que o homem
nem sempre consegue compreender e explicar.
Depois, Marcos aponta o número dos discípulos que
são enviados (“doze”). Porquê exatamente “doze”? Trata-se de um número
simbólico, que lembra as doze tribos que formavam o antigo Povo de Deus. Estes
“doze” discípulos representam simbolicamente a totalidade do Povo de Deus, do
novo Povo de Deus. É a totalidade do Povo de Deus que é enviada em missão.
Os “doze” são enviados “dois a dois”. É provável
que o envio “dois a dois” tenha a ver com o costume judaico de viajar
acompanhado, para ter ajuda e apoio em caso de necessidade; pode também
pensar-se que esta exigência de partir em missão “dois a dois” tenha a ver com
as exigências da lei judaica, de acordo com a qual eram necessárias duas
testemunhas para dar credibilidade a um qualquer anúncio (cf. Dt. 19,15; Mt.
18,16). Em qualquer caso, a exigência de partir em missão “dois a dois” sugere
também que a evangelização tem sempre uma dimensão comunitária. Os discípulos
nunca devem trabalhar sós, à margem do resto da comunidade; não devem anunciar
as suas ideias, mas a fé da Igreja. Quem anuncia o Evangelho, anuncia-o em nome
da comunidade; e o seu anúncio deve estar em sintonia com a fé da comunidade.
Em seguida, Marcos define a missão que Jesus lhes
confiou (“deu-lhes poder sobre os espíritos impuros). Os espíritos impuros
representam aqui tudo aquilo que escraviza o homem e que o impede de chegar à
vida em plenitude. A missão dos discípulos é, pois, lutar contra tudo aquilo –
seja de caráter físico, seja de caráter espiritual – que destrói a vida e a
felicidade do homem (podemos dizer que a missão dos discípulos é lutar contra o
“pecado”). É da ação libertadora dos discípulos (que atuam por mandato de
Jesus) que nasce um mundo novo, de homens livres – o mundo do “Reino”.
Em seguida, vêm as instruções para a missão (vs.
8-9). Na perspectiva de Jesus, os discípulos devem partir para a missão, num
despojamento total de todos os bens e seguranças humanas… Podem levar um cajado
(na versão de Mateus e de Lucas, os discípulos não deviam levar cajado – cf.
Mt. 10,10; Lc. 9,3); mas não devem levar nem pão, nem alforje, nem moedas (essas
pequenas moedas de cobre que o viajante levava sempre consigo para as suas
pequenas necessidades), nem duas túnicas. Os discípulos devem ser totalmente
livres e não estar amarrados a bens materiais; caso contrário, a preocupação
com os bens materiais pode roubar-lhes a liberdade e a disponibilidade para a
missão. Por outro lado, essa atitude de pobreza e de despojamento ajudará
também os discípulos a perceber que a eficácia da missão não depende da
abundância dos bens materiais, mas sim da ação de Deus. Finalmente, a
sobriedade e o desapego são sinais de que o discípulo confia em Deus e
contribuem para dar credibilidade ao testemunho.
Um outro gênero de instruções refere-se ao
comportamento dos discípulos diante da hospitalidade que lhes for oferecida (vs.
10-11). Quando forem acolhidos numa casa, devem aí permanecer algum tempo
(seguramente para formar uma comunidade) e não devem saltar de um lugar para o
outro, ao sabor das amizades, dos interesses próprios ou alheios ou das suas
próprias conveniências pessoais. Quando não forem recebidos num lugar, devem
“sacudir o pó dos pés” ao abandonar esse lugar: trata-se de um gesto que os
judeus praticavam quando regressavam do território pagão e que simboliza a
renúncia à impureza. Aqui, deve significar o repúdio pelo fechamento às
propostas libertadoras de Deus.
Finalmente, Marcos descreve a realização da missão
dos discípulos (vs. 12-13): pregavam a conversão (“metanoia” – isto é, uma
mudança radical de mentalidade, de valores, de atitudes, um voltar-se para Jesus
Cristo e um acolher o seu projeto), expulsavam demônios, curavam os doentes.
Trata-se de continuar a missão de Jesus: libertar o homem de tudo aquilo que o
oprime e lhe rouba a vida, para fazer aparecer um mundo de homens livres e
salvos (“Reino de Deus”).
O anúncio que é confiado aos discípulos é o anúncio
que Jesus fazia (o “Reino”); os gestos que os discípulos são convidados a fazer
para anunciar o “Reino” são os mesmos que Jesus fez. Ao apresentar a missão dos
discípulos em paralelo e em absoluta continuidade com a missão de Jesus, Jesus
convida a Igreja (os discípulos) a continuar na história a obra libertadora que
Ele começou em favor do homem.
ATUALIZAÇÃO
• Como é que Deus age, hoje, no mundo? A resposta
que o Evangelho deste domingo dá é: através desses discípulos que aceitaram
responder positivamente ao chamamento de Jesus e embarcaram na aventura do
“Reino”. Eles continuam hoje no mundo a obra de Jesus e anunciam – com palavras
e com gestos – esse mundo novo de felicidade sem fim que Deus quer oferecer aos
homens.
• Atenção: Jesus não chama apenas um grupo de
“especialistas” para o seguir e para dar testemunho do “Reino”. Os “doze”
representam a totalidade do Povo de Deus. É a totalidade do Povo de Deus (os
“doze”) que é enviada, a fim de continuar a obra de Jesus no meio dos homens e
anunciar-lhes o “Reino”. Tenho consciência de que isto me diz respeito e que eu
pertenço à comunidade que Jesus envia em missão?
• Qual é a missão dos discípulos de Jesus? É
lutar objetivamente contra tudo aquilo que escraviza o homem e que o impede de
ser feliz. Hoje há estruturas que geram guerra, violência, terror, morte: a
missão dos discípulos de Jesus é contestá-las e desmontá-las; hoje há “valores”
(apresentados como o “último grito” da moda, do avanço cultural ou científico)
que geram escravidão, opressão, sofrimento: a missão dos discípulos de Jesus é
recusá-los e denunciá-los; hoje há esquemas de exploração (disfarçados de
sistemas econômicos geradores de bem estar) que geram miséria, marginalização,
debilidade, exclusão: a missão dos discípulos de Jesus é combatê-los. A
proposta libertadora de Jesus tem de estar presente (através dos discípulos) em
qualquer lado onde houver um irmão vítima da escravidão e da injustiça. É isso
que eu procuro fazer?
• As advertências de Jesus para que os discípulos
se apresentem sempre numa atitude de sobriedade e de despojamento significam,
em primeiro lugar, que o discípulo nunca deve fazer dos bens materiais a sua
prioridade fundamental. Se o discípulo estiver obcecado pelo “ter”, tornar-se-á
escravo dos bens, acomodar-se-á e não terá espaço nem disponibilidade para se
lançar na aventura do anúncio do Reino. Por outro lado, o discípulo que erige
os bens materiais como a prioridade da sua vida sentirá sempre a tentação de se
calar, de não incomodar os poderosos, a fim de preservar os seus interesses
econômicos e os seus benefícios particulares.
• As advertências de Jesus para que os
discípulos se apresentem sempre numa atitude de sobriedade e de despojamento
significam também o desapego das ideias e preconceitos, dos hábitos e costumes,
das paixões e afetos que podem constituir um obstáculo para a missão de
anunciar o Reino.
• As palavras de Jesus recomendam ainda aos
discípulos que atuam por um tempo prolongado num determinado lugar, a moderação
e o agradecimento para com aqueles que os acolhem. Quem é recebido numa casa ou
num lugar como hóspede, deve converter-se numa bênção para essa casa e
comportar-se com sobriedade, equilíbrio e maturidade.
• Com frequência os discípulos de Jesus têm de
lidar com a oposição e a recusa da proposta que eles testemunham. É um fato que
deve ser visto com normalidade e compreensão. No entanto, quando isto suceder,
é missão dos discípulos alertar os implicados para a gravidade da recusa. Quem recusa
as propostas de Deus, deve estar plenamente consciente de que está a perder
oportunidades únicas e a afastar-se da sua realização plena, da vida
verdadeira.
P. Joaquim Garrido,
P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
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