sábado, 12 de fevereiro de 2011

O EVANGELHO DO SOFRIMENTO.


Uma das características da crise religiosa de nossa época e, ao mesmo tempo, também seu reflexo, é a teologia horizontalista. Atendo-se ao estudo pretensamente científico da realidade, limita seu campo de raciocínio ao humano, privilegia o social e político, esquecida de que é chamada a ser ciência das coisas divinas, para compreensão e experiência de Deus.

Em meio a esses problemas, eis que surge um fato auspicioso. No dia 11 de fevereiro, de 1984, festa de Nossa Senhora de Lourdes, o então Papa João Paulo II presenteou a Igreja Católica com mais um documento de seu fecundo ministério: era a Carta Apostólica "Salvifici Doloris" - "O Valor Salvífico do Sofrimento". A começar pela própria forma: menos solene que uma Encíclica ou mesmo uma Exortação Apostólica, é mais íntima, mais pessoal. Irradia uma profunda espiritualidade, acompanhada de rigor teológico, numa reflexão que se debruça sobre o ministério do sofrimento.

O Sumo Pontífice parte da constatação de que a dor, em suas variadas formas - desde a física até às mais sutis angústias de ordem moral e espiritual - está de tal modo inserida em nossa vida que parece até ser atributo da nossa natureza. O desconhecimento de uma significado para essa situação aflitiva leva alguns a questionar o próprio Deus. Entre as causas do ateísmo está justamente a ignorância diante da enfermidade do inocente, dos terríveis acontecimentos que atingem, tantas vezes, exatamente as pessoas mais indefesas.
O cristianismo não pretende dar explicação cabal, compreensível a todos. E até rejeita como inautênticas certas tentativas que, por serem demasiado fáceis, nem sempre levam em conta - tais como a reencarnação, por exemplo - , que "o homem, no seu sofrimento permanece um mistério intangível" ("Salvifici Doloris", nº 4). Em seu texto, o Vigário de Cristo une o padecimento à própria realidade do mal que age no mundo e na História. Uma de suas fontes está na liberdade, capaz de optar pelo afastamento de Senhor, a origem de todo o bem. Contudo, "não é verdade que todo sofrimento seja consequência da culpa e tenha caráter de castigo" (Idem,nº11). Somente a Fé em Cristo nos torna aptos a compreender esse drama. E aqui, na meditação do Papa adquire contornos admiráveis de uma atitude contemplativa e de adoração extasiada de Jesus, o Verbo encarnado, com um corpo semelhante ao nosso, tal como os Evangelhos no-lo apresentam. Sem dar uma justificativa intelectual, o Redentor assumiu em si os sofrimentos do homem e os superou, transformando-os em fonte de salvação e de graça para a Humanidade. Na Cruz, iluminada pela luz da manhã de Páscoa, vislumbramos uma realidade confortadora. No Horto do Getsêmani, o Senhor percebe por antecipação tudo aquilo que O espera, sente horror e repulsa: "Pai, afasta esse cálice" (Mt 26,39). E voluntária e conscientemente aceita o castigo ignominioso e a morte iníqua, num confiante ato de Fé e de abandono: "Pai, em tuas mãos entrego meu espírito" (Lc 23,46). E o Sumo Pontífice conclui: "O sofrimento humano atingiu o seu vértice na Paixão de Cristo; e, ao mesmo tempo, revestiu-se de uma dimensão completamente nova e entrou numa ordem nova: ele foi associado ao amor" (Ibidem, nº 18).

Sem dar uma resposta completa, exaustiva - aquela que talvez queríamos ter - a mensagem cristã nos apresenta uma nova perspectiva sobre o padecimento que acompanha nossa existência do berço ao túmulo.
Na história da salvação, na Bíblia mas também na vida de cada um de nós, ele tem sido às vezes um momento de provação da nossa Fé e também em meios de que o Senhor se serve para nos educar e nos corrigir.

O Papa aduz mais outros aspectos: expressão do amor de Deus desde que Cristo assumiu a dor, companheira inseparável de todos nós, e a transformou em fonte de graças. Diz o documento (nº 30): "No programa messiânico de Cristo (...) o sofrimento está presente no mundo para desencadear o amor (...) Estas palavras (...) permitem-nos descobrir, uma vez mais, por detrás de todos os sofrimentos humanos, o próprio sofrimento redentor de Cristo".
O outro é ser fonte que gera a fraternidade, pois nos leva a ser solidários com os irmãos atingidos por infortúnios: "Cristo ensinou o homem a fazer o bem com o sofrimento e, ao mesmo tempo, a fazem a quem sofre. Sob esse duplo aspecto, revelou cabalmente o sentido do sofrimento" ("Salvifici Doloris", nº 30).

A Carta Apostólica pode, pois, falar de um "Evangelho do Sofrimento", silenciosa e eloquente lição escrita não em páginas de papel, mas na História, por pessoas que, desde o pé da Cruz até nossos dias, têm sabido amar apesar do sofrimento, sem recuar e sem se deixar dominar pelo desespero. Isto é possível a todo que acredita na bondade de Deus e está sempre disponível aos irmãos: Maria Santíssima, os Mártires dos primeiros séculos, os cristãos que até hoje, em tantas latitudes do globo são perseguidos por motivo de sua crença. Nessa multidão anônima devem ser incluídos todos os indivíduos de boa vontade, vítimas de sua adesão e ideais legítimos e meritórios, mesmo segundo uma perspectiva temporal.
Em uma época árida, ressequida por teologias sem Deus, esta reflexão do Papa partilhada com sua Igreja é uma lufada de ar puro, que renova a confiança em um futuro melhor. Um convite a quantos sofrem, no corpo ou na alma, mesmo aos que não praticam a Fé cristã, a que não desanimem, não se revoltem contra o Senhor. Assim descobrirão sentido à existência, ao se tornarem corredentores com o Crucificado. Assumindo com amor as suas dores, serão mensageiros de esperança, em um mundo dilacerado. Eis o apelo do Santo Padre: "E pedimos a todos vós que sofreis, que nos ajudeis. Precisamente a vós, que sois fracos, pedimos que nos torneis uma fonte de força para a Igreja e a Humanidade" ("Salvifici Doloris", nº 31).


Dom Eugenio de Araujo Sales
Cardeal Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro

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