A
liturgia do 17º domingo comum dá-nos conta da preocupação de Deus em saciar a
“fome” de vida dos homens. De forma especial, as leituras deste domingo
dizem-nos que Deus conta conosco para repartir o seu “pão” com todos aqueles que
têm “fome” de amor, de liberdade, de justiça, de paz, de
esperança.
Na
primeira leitura, o profeta Eliseu, ao partilhar o pão que lhe foi oferecido com
as pessoas que o rodeiam, testemunha a vontade de Deus em saciar a “fome” do
mundo; e sugere que Deus vem ao encontro dos necessitados através dos gestos de
partilha e de generosidade para com os irmãos que os “profetas” são convidados a
realizar.
O
Evangelho repete o mesmo tema. Jesus, o Deus que veio ao encontro dos homens, dá
conta da “fome” da multidão que O segue e propõe-Se libertá-la da sua situação
de miséria e necessidade. Aos discípulos (aqueles que vão continuar até ao fim
dos tempos a mesma missão que o Pai lhe confiou), Jesus convida a despirem a
lógica do egoísmo e a assumirem uma lógica de partilha, concretizada no serviço
simples e humilde em benefício dos irmãos. É esta lógica que permite passar da
escravidão à liberdade; é esta lógica que fará nascer um mundo
novo.
Na
segunda leitura, Paulo lembra aos crentes algumas exigências da vida cristã.
Recomenda-lhes, especialmente, a humildade, a mansidão e a paciência: são
atitudes que não se coadunam com esquemas de egoísmo, de orgulho, de
auto-suficiência, de preconceito em relação aos
irmãos.
1
leitura: 2Re. 4,42-44 - AMBIENTE
As
tradições proféticas sobre Elias e Eliseu (os “ciclos” de Elias e Eliseu) ocupam
um espaço significativo no Livro dos Reis (cf. 1Re. 17,1-21,29; 2Re. 1,1-13,21).
Referem-se a um período bastante conturbado – quer em termos políticos, quer em
termos religiosos – da vida do Reino do Norte (Israel). Elias exerce a sua
missão profética durante os reinados de Acab (874-853 a.C.) e de Acazias
(853-852 a.C.); Eliseu dá o seu testemunho profético durante os reinados de
Jorão (853-842 a.C.), de Jeú (842-813 a.C.) e de Joacaz (813-797
a.C.).
Os
reis de Israel procuraram sempre estabelecer relações comerciais, econômicas,
políticas e militares com os povos circunvizinhos. Essa abertura de fronteiras
teve, no entanto, os seus custos em termos de fidelidade a Jahwé e à Aliança,
uma vez que os cultos aos deuses estrangeiros entravam no país e ocupavam um
lugar significativo na vida e no coração dos israelitas. É uma época de
sincretismo religioso, em que a religião jahwista é, com a complacência até com
o apoio declarado dos reis de Israel, preterida em favor dos cultos de Baal e de
Astarte. Em termos sociais, é uma época em que se multiplicam as injustiças
contra os pobres e as arbitrariedades contra os fracos. Tudo isto consubstancia
um quadro de graves infidelidades contra Deus e contra a
Aliança.
É
contra este quadro que se levantam Elias e Eliseu. Elias aparece como o
representante desses israelitas fiéis aos valores religiosos tradicionais, que
recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da fé de Israel; e a
luta de Elias será continuada por um dos seus discípulos –
Eliseu.
Parece
que Eliseu – o ator principal da primeira leitura deste domingo – fazia parte de
uma comunidade de “filhos de profetas” (os “benê nebi'im” – 2Re. 2,3; 4,1).
Trata-se de uma comunidade de homens que viviam pobremente (2Re. 4,1-7) e que
eram os seguidores incondicionais de Jahwéh. O Povo consultava-os regularmente e
buscava neles apoio face aos abusos dos poderosos. Eliseu é apresentado muitas
vezes, nas histórias narradas no “ciclo de Eliseu” (cf. 2Re. 2; 3,4-27;
4,1-8,15; 9,1-10; 13,14-21), como um profeta “dos milagres”, cujas ações mostram
a presença da força e da vida de Deus no meio do seu Povo. Outras vezes, Eliseu
é o profeta da intervenção política; a sua ação neste campo ultrapassa mesmo as
fronteiras físicas de Israel e chega a Damasco (cf. 2Re.
8,7-15).
MENSAGEM
O
texto que nos é proposto como primeira leitura conta que um homem de
Baal-Shalisha trouxe a Eliseu o “pão das primícias”: vinte pães de cevada e
trigo novo num saco. De acordo com Lv. 23,20, o pão das primícias devia ser
apresentado diante do Senhor e consagrado ao Jahwéh, embora depois revertesse em
benefício do sacerdote… Deve ser este costume que está subjacente ao episódio da
entrega dos pães a Eliseu.
Eliseu,
no entanto, não conservou os dons para si, mas mandou reparti-los pelas pessoas
que rodeavam o profeta. O “servo” do profeta não acreditava que os alimentos
oferecidos chegassem para cem pessoas; no entanto, chegaram e ainda
sobraram.
Estamos,
aqui, diante de uma sucessão de gestos que revelam generosidade e vontade de
partilhar: do homem que leva os dons ao profeta e do profeta que não os guarda
para si, mas os manda partilhar com as pessoas que o rodeiam. A descrição de uma
milagrosa multiplicação de pães de cevada e de grãos de trigo sugere que, quando
o homem é capaz de sair do seu egoísmo e tem disponibilidade para partilhar os
dons recebidos de Deus, esses dons chegam para todos e ainda sobram. A
generosidade, a partilha, a solidariedade, não empobrecem, mas são geradoras de
vida e de vida em abundância.
Este
relato fornecerá aos autores neo-testamentários o modelo literário em que se
inspirarão para apresentar os relatos evangélicos das multiplicações dos pães
(cf. Mc. 6,34-44; 8,1-10; Mt. 14,13-21; 15,32-38; Lc.
9,10-17).
ATUALIZAÇÃO
•
O “profeta” é um homem chamado por Deus e enviado a ser o rosto de Deus no meio
do mundo. Nas palavras e nos gestos do “profeta”, é Deus que Se manifesta aos
homens e que lhes indica a sua vontade e as suas propostas. No gesto de repartir
o pão para saciar a fome das pessoas, o “profeta” manifesta a eterna preocupação
de Deus com a “fome” do mundo (fome de pão, fome de liberdade, fome de
dignidade, fome de realização plena, fome de amor, fome de paz…) e a sua vontade
de dar aos homens vida em abundância… Não tenhamos dúvidas: Deus preocupa-Se,
todos os dias, em oferecer aos seus filhos vida em abundância. É Deus que nos
dá, dia a dia, o pão que mata a nossa fome de vida.
•
Como é que Deus atua para saciar a fome de vida dos homens? É fazendo chover do
céu, milagrosamente, o “pão” de que o homem necessita? A nossa primeira leitura
sugere que Deus atua de forma mais simples e mais normal… É através da
generosidade e da partilha dos homens (primeiro do homem que decide oferecer o
fruto do seu trabalho; depois, do profeta que manda distribuir o alimento) que o
“pão” chega aos necessitados. Normalmente, Deus serve-Se dos homens para
intervir no mundo e para fazer chegar ao mundo os seus dons. Muitas vezes
sonhamos com gestos espetaculares de Deus e vivemos de olhos fixos no céu à
espera que Deus Se digne intervir no mundo; e acabamos por não perceber que Deus
já veio ao nosso encontro e que Ele Se manifesta na ação generosa de tantos
homens e mulheres que praticam, sem publicidade, gestos de partilha, de
solidariedade, de doação, de entrega. É preciso aprendermos a detectar a
presença e o amor de Deus nesses gestos simples que todos os dias testemunhamos
e que ajudam a construir um mundo mais justo, mais fraterno e mais
solidário.
• Ao
mostrar que é através das ações dos homens que Deus sacia a fome do mundo, o
nosso texto convida-nos ao compromisso. Deus precisa de nós, da nossa
generosidade e bondade, para ir ao encontro dos nossos irmãos necessitados e
para lhes oferecer vida em abundância. Nós, os crentes, somos chamados a ser –
como o profeta Eliseu – testemunhas desse Deus que quer partilhar com os homens
o seu “pão”; e esse “pão” de Deus deve derramar-se sobre os nossos irmãos nos
nossos gestos de partilha, de generosidade, de solidariedade, de amor sem
limites.
2
leitura: Ef. 4,1-6 - AMBIENTE
A
carta aos Efésios (que temos vindo a refletir e cujo texto vai continuar a
acompanhar-nos nos próximos domingos) parece ser uma “carta circular”, enviada a
várias comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia Menor, inclusive aos
cristãos de Éfeso. É considerada uma “carta de cativeiro”, escrita por Paulo da
prisão (os que aceitam a autoria paulina desta carta discutem qual o lugar onde
Paulo está preso, nesta altura, embora a maioria ligue a carta ao cativeiro de
Paulo em Roma entre 61/63).
De
qualquer forma, é um texto bem trabalhado, que apresenta uma catequese sólida e
bem elaborada. Poderia ser um texto da fase “madura” de Paulo. Alguns autores
consideram a Carta aos Efésios uma espécie de síntese do pensamento
paulino.
O
texto que hoje nos é proposto como segunda leitura é o início da parte moral e
parenética da carta (cf. Ef. 4,1-6,20). Temos, aí, uma espécie de “exortação aos
batizados”, na qual Paulo reflete longamente sobre a edificação e o crescimento
do “Corpo de Cristo”. Em termos sempre bastante concretos, Paulo dá pistas aos
cristãos acerca da forma como eles devem viver os seus compromissos com Cristo,
de forma a chegarem a ser Homens Novos.
MENSAGEM
O
nosso texto começa com uma referência ao fato de Paulo estar preso… A condição
de prisioneiro por causa de Jesus e do Evangelho dá um peso especial às
recomendações do apóstolo: são as palavras de alguém que leva tão a sério a
proposta de Jesus, que é capaz de sofrer e de arriscar a vida por
ela.
Na
perspectiva de Paulo, a vida nova exige, em primeiro lugar, que os crentes vivam
unidos em Cristo. Ora, há comportamentos e atitudes que são condição necessária
para que essa unidade se torne efetiva (vs. 2-3)… Antes de mais, Paulo refere a
humildade, pois só ela permite superar o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência
que afastam os irmãos e que erguem entre eles barreiras de separação; depois,
Paulo refere a mansidão, irmã da humildade, e qualidade que derruba barreiras na
comunhão; Paulo refere também a paciência, que permite ser tolerante e
compreensivo para com as falhas dos irmãos e que permite entender e aceitar as
diferentes maneiras de ser e de agir… Em resumo, trata-se, fundamentalmente, de
fazer com que a caridade presida às relações que estabelecemos uns com os
outros; o amor deve ser sempre o suporte das nossas relações humanas. A unidade
é um dom de Deus; mas a sua efetivação depende do contributo e do esforço de
cada irmão.
Na
segunda parte do nosso texto, Paulo apresenta um conjunto de elementos que
fundamentam a obrigatoriedade da unidade dos crentes: “há um só Corpo e um só
Espírito, como existe uma só esperança” na vida a que todos os crentes foram
chamados; “há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de
todos, que está acima de todos, atua em todos e em todos se encontra” (vs. 4-6).
A menção do Pai, do Filho e do Espírito, neste contexto, sugere que a Trindade é
a fonte última e o modelo da unidade que os cristãos devem viver, na sua
experiência de caminhada comunitária.
ATUALIZAÇÃO
• A
Igreja é um “corpo” – o “Corpo de Cristo”. Naturalmente, esse “corpo” é formado
por muitos membros, todos eles diversos; mas todos eles dependem de Cristo (a
“cabeça” desse “corpo”) e recebem d’Ele a mesma vida. Formam, portanto, uma
unidade… Têm o mesmo Pai (Deus), têm um projeto comum (o projeto de Jesus), têm
o mesmo objetivo (fazer parte da família de Deus e encontrar a vida em
plenitude), caminham na mesma direção animados pelo mesmo Espírito, têm a mesma
missão (dar testemunho no mundo do projeto de amor que Deus tem para os homens).
Neste esquema, não fazem qualquer sentido as divisões, os ciúmes, as
rivalidades, as invejas, os ódios, as divergências que tantas vezes dividem os
irmãos da mesma comunidade. Quando os irmãos não se esforçam por caminhar
unidos, provavelmente ainda não descobriram os fundamentos da sua fé. A minha
comunidade (cristã ou religiosa) é uma comunidade que caminha unida e solidária,
partilhando a vida e o amor, apesar das diferenças legítimas dos seus membros?
Em termos pessoais, sinto-me um construtor de unidade, ou um fator de
divisão?
• Para
que a unidade seja possível, Paulo recomenda aos destinatários da Carta aos
Efésios a humildade, a mansidão e a paciência. São atitudes que não se coadunam
com esquemas de egoísmo, de orgulho, de auto-suficiência, de preconceito em
relação aos irmãos. Como é que eu me situo face aos outros? A minha relação com
os irmãos é marcada pelo egoísmo ou pela disponibilidade para servir e
partilhar? Procuro estar atento às necessidades dos outros e ir ao seu encontro,
ou levanto muros de orgulho e de auto-suficiência que impedem a relação, a
comunhão, a comunicação? Estou aberto às diferenças e disposto a dialogar, ou
vivo entrincheirado nos meus preconceitos, catalogando e marginalizando aqueles
que não concordam comigo?
• A
Igreja é uma unidade; mas é também uma comunidade de pessoas muito diferentes,
em termos de raça, de cultura, de língua, de condição social ou econômica, de
maneiras de ser... As diferenças legítimas nunca devem ser vistas como algo
negativo, mas como uma riqueza para a vida da comunidade; não devem levar ao
conflito e à divisão, mas a uma unidade cada vez mais estreita, construída no
respeito e na tolerância. A diversidade é um valor, que não pode nem deve anular
a unidade e o amor dos irmãos.
Evangelho:
Jo 6,1-5 - AMBIENTE
A
liturgia propõe-nos hoje (e durante mais alguns domingos) a leitura do capítulo
6 do Evangelho segundo João – a catequese sobre Jesus, o Pão da
vida.
Na
primeira parte do Evangelho (cf. Jo 4,1-19,42), João apresenta a atividade de
Jesus no sentido de criar e dar vida ao homem, de forma a que surja um Homem
Novo, liberto do egoísmo e do pecado, animado pelo Espírito, capaz de seguir
Jesus e de viver na mesma dinâmica de Jesus – isto é, no amor ao Pai e aos
irmãos. Esta primeira parte divide-se em dois “livros” – o “Livro dos Sinais”
(cf. Jo 4,1-11,56) e o “Livro da Hora” (cf. Jo
12,1-19,42).
No
“livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56), o autor do Quarto Evangelho expõe,
recorrendo a símbolos significativos (a “água” – cf. Jo 4,1-5,47; o “pão” – cf.
Jo 6,1-7,53; a “luz” – cf. Jo 8,12-9,41; o “pastor” – cf. Jo 10,1-42; a
“ressurreição” – cf. Jo 11,1-56), a sua catequese sobre a ação de Jesus em favor
do homem. Jesus é aí apresentado como a proposta de vida verdadeira que o homem
é convidado a acolher e a assimilar.
No
capítulo 6 – que hoje começamos a ler – João apresenta Jesus como o Pão que
sacia a sede de vida que o homem sente. O episódio hoje narrado é
geograficamente situado “na outra margem” do Lago de Tiberíades (no capítulo
anterior, Jesus estava em Jerusalém, no centro da instituição judaica; agora,
sem transição, aparece na Galileia, a atravessar o “mar” para o outro lado). Em
termos cronológicos, João nota que estava perto a Páscoa, a festa mais
importante do calendário religioso judaico, que celebrava a libertação do Povo
de Deus da opressão do Egito.
MENSAGEM
Uma
leitura, ainda que superficial, do texto que nos é proposto mostra alguns
interessantes paralelos entre a cena da multiplicação dos pães e a libertação do
Povo de Deus da escravidão do Egito, com Jesus no papel de Moisés, o libertador.
O fato dá-nos, logo à partida, uma chave de leitura para entender esta
catequese: João quer apresentar a ação de Jesus como uma ação libertadora que
visa fazer passar o Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade… A
catequese que João nos apresenta vai desenvolver-se em vários
passos:
1.
Começa com uma referência à “passagem do mar” (que, na realidade, é um lago);
essa referência pode aludir à passagem do Mar Vermelho por Moisés com o Povo
libertado do Egito (cf. Ex. 14,15-31). O objetivo final de Jesus é, portanto,
fazer o Povo que o acompanha passar da terra da escravidão para a terra da
liberdade.
2.
Como aconteceu com Moisés, com Jesus vai uma grande multidão. A multidão que
acompanha Jesus pretende “ver os milagres que Ele realizava nos doentes” (v. 2).
O termo grego aqui utilizado (“asthenês” – “enfermos”) designa, em geral, alguém
que está numa situação de grande debilidade. A multidão segue Jesus, pois quer
ver os sinais que Ele faz e que representam a libertação do homem da sua
debilidade e fragilidade. É um Povo marcado pela opressão, que quer experimentar
a libertação. Já perceberam que só Jesus, o libertador, conseguirá ajudá-los a
superar a sua condição de miséria e de escravidão.
3.
Jesus – diz o nosso texto – subiu a “um monte” (v. 3). A referência ao “monte”
leva-nos ao contexto da Aliança do Sinai e ao monte onde Deus ofereceu ao Povo,
através de Moisés, os mandamentos. Dizer que Jesus subiu ao “monte” significa
dizer que é através de Jesus que se vai realizar a nova Aliança entre Deus e
esse Povo de gente livre que, com Jesus, “atravessou o mar” em direção à terra
da liberdade.
4.
A referência à Páscoa que estava próxima (v. 4) seria uma referência inútil, se
não estivéssemos no contexto da libertação do Povo da escravidão. Na época de
Jesus, a Páscoa era a festa da libertação e da constituição do Povo de Deus; mas
era também a festa que anunciava esse tempo futuro em que o Messias ia libertar
definitivamente o Povo de Deus. Nesta altura, o Povo devia subir a Jerusalém
para, no “monte” do Templo, celebrar a libertação; em contrapartida, a multidão
segue Jesus para um outro “monte”, do outro lado do mar… O Povo começa a
libertar-se do jugo das instituições judaicas e a perceber que é em Jesus que se
vão inaugurar os tempos novos da liberdade e da paz.
5.
A multidão que segue Jesus tem fome e não tem que comer (vs. 5-6). A referência
leva-nos, outra vez, ao Êxodo, ao deserto, quando o Povo que caminhava para a
terra da liberdade sentiu fome. Então, foi Deus que respondeu à necessidade do
Povo e lhe deu comida em abundância; aqui, é Jesus que Se apercebe das
necessidades da multidão e tenta remediá-las. Ele mostra, assim, o rosto do Deus
do amor e da bondade, sempre atento às necessidades do seu
Povo.
6.
Qual a solução que Jesus vai dar à “fome” da multidão? Na procura da solução,
Jesus envolve a comunidade dos discípulos (“onde havemos de comprar pão para
lhes dar de comer?” – v. 5). A comunidade de Jesus (onde naturalmente Jesus Se
inclui) tem de sentir-se responsável pela “fome” dos homens e tem de sentir que
é sua responsabilidade e missão saciar essa “fome”.
João
nota que Jesus põe a questão aos discípulos (representados por Filipe) para os
“experimentar” (v. 6). O problema pode ser posto da seguinte forma: como é que a
comunidade dos discípulos – formados na escola e nos valores de Jesus – pretende
responder à fome do mundo? É recorrendo ao sistema econômico vigente, que se
baseia no egoísmo e no poder do dinheiro e coloca os bens nas mãos de poucos,
gerando uma lógica de opressão, de dependência e de necessidade? Será este o
sistema desse mundo novo e livre que Jesus deseja instituir? Os discípulos de
Jesus alinham com esse sistema opressor, baseado na compra, na venda e no lucro,
ou já perceberam que Jesus tem uma proposta nova a fazer, geradora de libertação
e de vida em abundância para todos?
7.
Filipe constata a impossibilidade de resolver o problema, dentro do quadro
econômico vigente… “Duzentos denários não bastariam para dar um pedaço a cada
um” (v. 7). Um denário equivalia ao salário base de um dia de trabalho; assim,
nem o dinheiro de mais de meio ano de trabalho daria para resolver o problema.
Por outras palavras: confiando no sistema instituído (o da compra e venda, que
supõe o sistema econômico regido pelo lucro egoísta), é impossível resolver o
problema da necessidade dos esfomeados. A comunidade de Jesus é convidada,
portanto, a abandonar este sistema e a encontrar
outros…
8.
André, porém, vislumbra uma solução diferente (v. 8-9). Este apóstolo
representa, na comunidade de Jesus, essa categoria dos que aderiram a Jesus de
forma convicta, que têm uma grande intimidade com Jesus e que, portanto, estão
mais conscientes das propostas de Jesus. No entanto, André não está muito
convicto dos resultados (“o que é isso para tanta gente?”). Seria bom –
considera André – encontrar outro sistema diferente do sistema explorador; mas
isso não resulta… Jesus vai, precisamente, provar que é possível encontrar outro
sistema que reparta vida e que elimine a lógica da
exploração.
9.
A figura do “menino” que apenas aparece na cena da multiplicação dos pães na
versão de João é uma figura desnecessária do ponto de vista da narração: para o
resultado final, tanto dava que o possuidor dos pães e dos peixes fosse uma
criança ou um adulto. Sendo assim, porque é que João insiste em falar de uma
criança? Porque a figura do “menino” é muito significativa: quer pela idade,
quer pela condição, é um “débil”, física e socialmente. Representa a debilidade
da comunidade de Jesus face às enormes carências do mundo. A palavra grega
utilizada por João para falar da criança indica simultaneamente um “menino” e um
“servo”: a comunidade, representada nesse “menino”, apresenta-se diante do mundo
como um grupo socialmente humilde, sem pretensão alguma de poder e de domínio,
dedicada ao serviço dos homens. É essa comunidade simples e humilde, vocacionada
para o serviço, que é chamada a resolver a questão da necessidade dos pobres e a
instaurar um novo sistema libertador. Qual é esse
sistema?
10.
Os números “cinco” (“pães”) e “dois” (“peixes”), também não aparecem por acaso:
a sua soma dá “sete” – o número que significa totalidade… Ou seja: é na partilha
da totalidade do que a comunidade possui que se responde à carência dos homens.
É uma totalidade fracionada e diversificada; mas que, posta ao serviço dos
irmãos, sacia a fome do mundo.
11.
Sobre os alimentos disponibilizados pela comunidade, Jesus pronuncia uma “ação
de graças” (v. 11). O “dar graças” significa reconhecer que os bens são dons que
vêm de Deus. Ora, reconhecer que os bens vêm de Deus significa desvinculá-los do
seu possessor humano, para reconhecer que eles são um dom gratuito que Deus
oferece aos homens; e Deus não oferece a uns e não a outros… “Dar graças” é
reconhecer que os bens recebidos pertencem a todos e que quem os possui é apenas
um administrador encarregado de os pôr à disposição de todos os irmãos, com a
mesma gratuidade com que os recebeu. Os bens são, assim, libertos da posse
exclusiva de alguns, para serem dom de Deus para todos os homens. É este o
sistema que Deus quer instaurar no mundo; e a comunidade cristã é chamada a
testemunhar esta lógica.
12.
Uma vez saciada a fome do mundo, através desses bens que a comunidade recebeu de
Deus e que pôs ao serviço de todos os homens, os discípulos são chamados a
outras tarefas. Há sobras que não se podem perder, mas que devem ser o princípio
de outras abundâncias. É preciso multiplicar incessantemente o amor e o pão… E a
comunidade, uma vez percebido o projeto de Jesus, deve usar o que tem para
continuar a oferecer a vida aos homens. A referência aos doze cestos recolhidos
pelos discípulos pode ser uma alusão a Israel (as doze tribos): se a comunidade
dos discípulos souber partilhar aquilo que recebeu de Deus, pode satisfazer a
fome de todo o Povo (vs. 12-13).
13.
Alguns dos que testemunharam a multiplicação dos pães e dos peixes têm
consciência de que Jesus é o Messias que devia vir para dar ao seu Povo vida em
abundância e querem fazê-lo rei (vs. 14-15). Jesus não aceita… Ele não veio
resolver os problemas do mundo instaurando um sistema de autoridade e de poder;
mas veio convidar os homens a viverem numa lógica de partilha e de
solidariedade, que se faz dom e serviço humilde aos irmãos. É dessa forma que
Ele se propõe – com a colaboração dos discípulos – eliminar o sistema opressor,
responsável pela fome e pela miséria. O mundo novo que Jesus veio propor não
assenta numa lógica de poder e autoridade, mas no serviço simples e humilde que
leva a partilhar a vida com os irmãos.
A
perícope que nos é hoje proposta pretende, pois, apresentar o projeto de Deus
realizado em Jesus como um projeto de libertação, que há-de eliminar a opressão
e instaurar um mundo de homens livres, salvos do egoísmo e capazes de amar e de
partilhar. Frente ao sistema que se baseia no lucro e na exploração, Jesus
propõe uma nova atitude. É necessário – diz Jesus – substituir o egoísmo pelo
amor e pela partilha. A comunidade de Jesus tem a função de descobrir esta
lógica, de a acolher e de propô-la ao mundo. Ela tem de aprender que os bens são
um dom de Deus, destinados a todos. Procedendo dessa forma, ela está a instaurar
um novo sistema e a libertar os homens desses condicionamentos egoístas que
geram injustiça, necessidade, carência, debilidade, sofrimento. Quem quiser
acompanhar Jesus neste caminho, passará seguramente da escravidão do lucro para
a liberdade da partilha, do serviço, do amor aos
irmãos.
ATUALIZAÇÃO
•
Jesus é o Deus que Se revestiu da nossa humanidade e veio ao nosso encontro para
nos revelar o seu amor. O seu projeto – projeto que Ele concretizou em cada
palavra e em cada gesto enquanto percorreu, com os seus discípulos, as vilas e
aldeias da Palestina – consiste em libertar os homens de tudo aquilo que os
oprime e lhes rouba a vida. O nosso texto mostra Jesus atento às necessidades da
multidão, empenhado em saciar a fome de vida dos homens, preocupado em
apontar-lhes o caminho que conduz da escravidão à liberdade. A atitude de Jesus
é, para nós, uma expressão clara do amor e da bondade de um Deus sempre atento
às necessidades do seu Povo. Garante-nos que, ao longo do caminho da vida, Deus
vai ao nosso lado, atento aos nossos dramas e misérias, empenhado em satisfazer
as nossas necessidades, preocupado em dar-nos o “pão” que sacia a nossa fome de
vida. A nós, compete-nos abrir o coração ao seu amor e acolher as propostas
libertadoras que Ele nos faz.
• A
“fome” de pão que a multidão sente e que Jesus quer saciar é um símbolo da fome
de vida que faz sofrer tantos dos nossos irmãos… Os que têm “fome” são aqueles
que são explorados e injustiçados e que não conseguem libertar-se; são os que
vivem na solidão, sem família, sem amigos e sem amor; são os que têm que deixar
a sua terra e enfrentar uma cultura, uma língua, um ambiente estranho para
poderem oferecer condições de subsistência à sua família; são os marginalizados,
abandonados, segregados por causa da cor da sua pele, por causa do seu estatuto
social ou econômico, ou por não terem acesso à educação e aos bens culturais de
que a maioria desfruta; são as crianças vítimas da violência e da exploração;
são as vítimas da economia global, cuja vida dança ao sabor dos interesses das
multinacionais; são as vítimas do imperialismo e dos interesses dos grandes do
mundo… É a esses e a todos os outros que têm “fome” de vida e de felicidade, que
a proposta de Jesus se dirige.
• No
nosso Evangelho, Jesus dirige-Se aos seus discípulos e diz-lhes: “dai-lhes vós
mesmos de comer”. Os discípulos de Jesus são convidados a continuar a missão de
Jesus e a distribuírem o “pão” que mata a fome de vida, de justiça, de
liberdade, de esperança, de felicidade de que os homens sofrem. Depois disto,
nenhum discípulo de Jesus pode olhar tranquilamente os seus irmãos com “fome” e
dizer que não tem nada com isso… Os discípulos de Jesus são convidados a
responsabilizarem-se pela “fome” dos homens e a fazerem tudo o que está ao seu
alcance para devolver a vida e a esperança a todos aqueles que vivem na miséria,
no sofrimento, no desespero.
• No
nosso Evangelho, os discípulos constatam que, recorrendo ao sistema econômico
vigente, é impossível responder à “fome” dos necessitados. O sistema capitalista
vigente – que, quando muito, distribui a conta gotas migalhas da riqueza para
adormecer a revolta dos explorados – será sempre um sistema que se apóia na
lógica egoísta do lucro e que só cria mais opressão, mais dependência, mais
necessidade. Não chega criar melhores programas de assistência social ou
programas de rendimento mínimo garantido, ou outros sistemas que apenas
perpetuam a injustiça… Os discípulos de Jesus têm de encontrar outros caminhos e
de propor ao mundo que adote outros valores. Quais?
• Jesus
propõe algo de realmente novo: propõe uma lógica de partilha. Os discípulos de
Jesus são convidados a reconhecer que os bens são um dom de Deus para todos os
homens e que pertencem a todos; são convidados a quebrar a lógica do
açambarcamento egoísta dos bens e a pôr os dons de Deus ao serviço de todos.
Como resultado, não se obtém apenas a saciedade dos que têm fome, mas um novo
relacionamento fraterno entre quem dá e quem recebe, feito de reconhecimento e
harmonia que enriquece ambos e é o pressuposto de uma nova ordem, de um novo
relacionamento entre os homens. É esta a proposta de Deus; e é disto que os
discípulos são chamados a dar testemunho.
• Os
discípulos de Jesus não podem, contudo, dirigir-se aos irmãos necessitados
olhando-os “do alto”, instalados nos seus esquemas de poder e autoridade, usando
a caridade como instrumento de apoio aos seus projetos pessoais, ou exigindo
algo em troca… Os discípulos de Jesus devem ser um grupo humilde (a “criança” do
Evangelho), sem pretensão alguma de poder e de domínio, e que apenas está
preocupado em servir os irmãos com “fome”.
• O
que resulta da proposta de Jesus é uma humanidade totalmente livre da escravidão
dos bens. Os necessitados tornam-se livres porque têm o necessário para viverem
uma vida digna e humana; os que repartem os bens libertam-se da lógica egoísta
dos bens e da escravidão do dinheiro e descobrem a liberdade do amor e do
serviço.
• No
final, os discípulos são convidados a recolher os restos, que devem servir para
outras “multiplicações”. A tarefa dos discípulos de Jesus é uma tarefa nunca
acabada, que deverá recomeçar em qualquer tempo e em qualquer lugar onde haja um
irmão “com fome”.
P.
Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas
Carvalho
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