O
leitor permita-me hoje algumas confidências. Mesmo considerando que o site Voto
Católico está destinado a fornecer orientações práticas aos católicos que
procuram informar-se, a fim de que possam influir bem nas eleições ou na vida
política do país, ocorreu-me que seria oportuno tratar de um tema que, embora
mais diretamente ligado à fé, não deixa também de ser prático.
Certa
feita, aproveitando um conselho prático de São Francisco de Sales – de tirar
lições espirituais dos acontecimentos cotidianos –, passeando por Tiradentes,
vendo ali os sinais exteriores evidentes de uma presença pulsante do catolicismo
em tempos não tão distantes, veio-me à mente a seguinte intuição: em dias
passados provavelmente a maior parte da população daquela cidade vivia em estado
de graça, isto é, na graça santificante, em comunhão com Deus. E, o que é muito
salutar, esses homens e mulheres sabiam o que é a graça santificante.
Não
me lembro se na mesma ou em outra viagem, estava eu ali lendo a esplêndida e
original biografia de Santo Tomás de Aquino saída da pena de Chesterton. De
súbito, a ideia que eu mantinha a respeito dos munícipes de Tiradentes e – por
que não dizer? – de várias cidades brasileiras, há uns cinquenta anos atrás,
transpôs-se para a Idade (preconceituosamente chamada de) Média: é bem possível
que a maior parte dos homens e mulheres que viviam na Europa, durante o Medievo,
se achassem em estado de graça e soubessem de que isso se tratava.
Quem
compreende o que significa encontrar-se ou não em estado de graça tem
consciência de que esse assunto é de extrema gravidade e de crucial importância.
Aliás, eu diria até, é o único assunto relevante. Como a graça santificante é
indispensável à salvação de uma alma, é também indispensável à salvação do
mundo. Sem a graça santificante, que é o próprio Deus habitando na alma, o homem
tende irremediavelmente à destruição, ao egoísmo, ao afastamento da verdade
sobre si mesmo.
Quem
já não se deu conta de que, há uns cinquenta anos – curiosamente os jornais
estampam hoje, dia do Papa, dia de São Pedro, que há cinquenta anos os católicos
eram 93,1% da população –, o edifício mais importante dos municípios brasileiros
era a Igreja Matriz situada na praça principal? Quais acontecimentos eram os
mais relevantes da vida em sociedade? Não seriam as festividades religiosas?
Ora, em muitos lugares, as estações da via sacra ainda estão encravadas nas ruas
e adornadas de imagens esplendorosamente esculpidas. Tudo isso é sinal de que
não somente a Igreja Matriz estava no coração da cidade, mas de que Deus estava
no âmago dos cidadãos. Hoje, porém, os edifícios principais das cidades são os
shopping centers, e os exercícios nas academias substituíram a prática da ascese
cristã. Outrora, a Igreja e os sermões eram formadores de opinião; hoje, a mídia
– que está a serviço do lucro, obviamente – e as novelas é que são os nossos
conselheiros.
Santa
Teresa de Ávila e São Francisco de Sales, além de muitos outros, já descreveram
a situação calamitosa em que se encontra um homem em pecado mortal. A alma em
situação de pecado grave é incapaz de qualquer obra boa; tudo nela procede do
egoísmo. Nada mais nela provém daquela fonte límpida e verdadeira que é Deus.
Não há amor nem verdade numa alma em inimizade com Deus. Alguns gestos, alguns
atos podem até ter a aparência de amor e de verdade, mas são meros cacoetes; não
são autênticos. São como a moeda falsa posta em circulação por quem não é a
autoridade competente para fazê-lo. Quantos enganos não geram esses falsos
valores! Não há amor e verdade bastantes em um mundo cuja maioria esmagadora das
pessoas não se encontra mais em estado de graça, aliás, o que é mais grave, nem
sabe o que é isso. Sem a graça de Deus, não há limites para o mal. Sem Deus, não
há limite para a queda, para o erro e para a mentira.
O
alijamento de Deus da vida pública é apenas um sintoma, é consequência. Não
constitui a verdadeira doença. Se as coisas que dizem respeito a Deus não ocupam
mais a centralidade que possuíam na vida pública, é porque Ele não habita mais
os corações. Ele foi alijado também das nossas almas. Delicado, retirou-Se antes
de ser expulso. Ao notar que Sua presença constituía um estorvo, partiu. Nossas
ações exteriores apenas refletem o que se passa no nosso interior. Se o mundo
está doente é porque não há pessoas em estado de graça em número ou em santidade
suficiente para neutralizar a ação dos que vivem sob o império do egoísmo.
Na
vida espiritual, não existe neutralidade; não existe meio termo. Santo
Agostinho, na Cidade de Deus, escreve: dois amores fundaram, pois, duas cidades.
O amor a Deus, até o desprezo de si, a cidade celeste; e o amor a si, até o
desprezo de Deus, a cidade terrestre. O amor a si até o desprezo de Deus tem
prevalecido nos tempos que correm.
Há
dois reinos, duas cidades, misturados neste mundo. Embora estejam todos neste
mundo, uns cidadãos pertencem a um reino, e outros, a outro reino. Estes dois
reinos, estas duas cidades, o trigo e o joio, encontram-se em permanente
oposição. Uns agem sob o influxo da graça de Deus; outros, de acordo com os
sussurros do egoísmo, do amor próprio. Uns, sob a ação alegre e diligente do
Espírito Santo, promovem a sacralidade de cada homem, sem distinções, advogando
direitos de terceiros. Outros, escravos do orgulho, do egoísmo e do pessimismo,
do prazer temporal entediante, vassalos do pai da mentira, introduzem, com
falsos argumentos, políticas públicas que atendam aos seus gostos e caprichos
cada vez mais sórdidos e requintados, violadores da sacralidade do homem. Com
efeito, a alma morta pelo pecado grave não tem gosto pelas coisas de Deus e,
cega pelo breu do egoísmo, não enxerga mais a sua dignidade nem a dignidade dos
outros.
Há
dois reinos, dois mundos em combate. Um oferece resistência ao outro. Como
outrora Cristo travou diálogos duríssimos com os homens do seu tempo, também
hoje a Igreja, que é o próprio Cristo, trava diálogos duríssimos com os homens
resistentes à graça divina. Mesmo que desenvolva os melhores argumentos, as mais
coerentes explicações, a parcela da humanidade resistente à graça divina a eles
se oporão.
Que
fazer diante disso? Como está claro, o combate não é puramente intelectual; é,
antes de tudo, espiritual. Para um combate espiritual é preciso valermo-nos de
armas espirituais. Assim, em primeiro lugar, para que a humanidade volte a viver
em comunhão com Deus, devemos nós mesmos procurar esta comunhão, confessando-nos
assiduamente e afastando-nos do pecado mortal como o único mal, a única desgraça
a evitar. Decerto, não somente a confissão, mas a recepção frequente dos
sacramentos. Uma alma que se eleva, eleva o mundo.
Além disso, a oração, a vida ascética, o
cumprimento dos nossos deveres para com Deus. De um modo particular, além da
meditação (ou oração mental) diária, a recitação do terço e, tanto quanto
possível, de mais de um terço e, quem sabe, do rosário completo, servindo-nos do
exemplo de São Domingos de Gusmão. O santo rosário, este meio excelente, este
remédio eficaz indicado pela Virgem Santíssima, continua sendo um dos
instrumentos mais potentes para amolecer os corações e torná-los dóceis à ação
do Espírito Santo. Nossa Senhora do Rosário apareceu a São Domingos no século
XIII. Não por mera coincidência, Nossa Senhora do Rosário apareceu a Lúcia,
Jacinta e Francisco, no mês de maio, em 1917, no dia 13. O temível exército de
Maria possui uma arma letal contra as hostes inimigas. Tal arma a manejam
pobres, velhos, doentes, crianças e aleijados, e, quanto mais débil for o
soldado, mais eficazes e certeiros serão os disparos.
Fonte: Voto
Católico: http://www.votocatolico.com.br/2012/07/o-homem-e-graca.html
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