segunda-feira, 11 de junho de 2012

OS ATEUS VIVEM MAL COM SEU "NADA" E POR ISSO AGRIDEM A FÉ?



Na apresentação do seu último livro, José Saramago declarou que a Bíblia era um “manual de maus costumes” e um “catálogo de crueldades”, e que Deus não era “de fiar”, por ser “vingativo, rancoroso e má pessoa”.
Nos dias seguintes, católicos e não só acusaram-no de provocação gratuita e de ignorância, por estar a fazer uma leitura literal do texto bíblico.

De facto, a Sagrada Escritura não pode ser lida como uma narrativa textual e objectiva, e muito menos o pode ser, sob pena de anacronismo, com os nossos olhos de hoje. A Bíblia está repleta de alegorias, metáforas, simbolismos, mitos, lendas e profecias, requerendo uma exegese que saiba extrair, de cada história ali contida, o seu significado moral. No episódio de Caim e Abel, o excerto do «Génesis» que inspirou o livro de Saramago, o texto expõe o leitor a uma morte, idêntica a outras, sacrificiais, presentes no Antigo Testamento; mas a interpretação supra-literal deve remeter-nos para a escolha humana entre o Bem e o Mal e, portanto, para a condenação da violência.

A meu ver, contudo, o cerne da polémica não é este. Saramago sabe perfeitamente, porque é escritor e criador de imagens, que não faz sentido, do ponto de vista discursivo, depreciar a Bíblia como ele o fez – ou então estaríamos condenados a censurar grande parte da literatura profana ocidental. Sabe também (e tem dificuldade em admiti-lo) que, além das histórias de violência e opressão, a Bíblia fala sobretudo das vítimas, dos pobres e marginalizados, para lhes oferecer consolo e esperança – muito antes de Karl Marx ter reparado neles. Sabe, finalmente, que o que disse, em si mesmo, é de um simplismo confrangedor: achar que porque Caim matou Abel toda a Bíblia está cheia de crueldades é tão superficial e redutor como afirmar que porque Stalin matou milhões todos os comunistas são potenciais assassinos!

O problema de Saramago não é com a Bíblia – é com a simples existência da religião. Desde que Robespierre decidiu descristianizar o mundo, os “iluminados” da modernidade e os órfãos dos “deuses” menores, terrenos e bem violentos, não convivem bem com a crença alheia. O racionalismo cientista e materialista não concebe que haja seres humanos que acreditam no que a ciência não comprova existir.
José Saramago revelou, no fundo, incomodo, sectarismo e intolerância em relação ao fenómeno religioso.

Ninguém lhe contesta o direito de escrever e muito menos o de ser ateu; nem se lhe pede que aceite ou compreenda a Fé dos outros. Pede-se, apenas, com a autoridade e a responsabilidade públicas de ser Prémio Nobel como ele é, que a respeite, porque é essa a medida da tolerância e da civilização.

A atitude de Saramago é um sinal dos tempos: os cristãos vivem bem com a sua crença; são os ateus é que parecem (con) viver mal com a religião. Deve ser por isso que, não acreditando em Deus, Saramago não cessa de falar d’ Ele. Ora, havendo espaço para a crença e para o ateísmo, cada um deve escolher o seu caminho, sem revelar a alma intranquila de quem, invocando o direito à diferença, afinal insulta o diferente como bárbaro e vicioso.





José Miguel Sardica
Professor da Universidade Católica Portuguesa

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