Meio desorientado, um tanto quanto assustado, abre os olhos levemente, enxergando ainda de forma turva. Estranhara o toque diferente do despertador do celular: não lembrava de ter mudado. Ainda “zonzo”, acha a claridade do quarto diferente, pois sempre fechava tudo antes de deitar, mas deixou isso por menos.
De cabeça baixa, com a visão turva de olhos semiabertos, segue o decorado trajeto ao banheiro. Olhando para os pés que, como se tivessem olhos, o conduzem, no automático, para a higiene da manhã, de repente, dá com a cabeça na parede, em que supostamente deveria estar a porta, e, tateando, encontra a entrada do banheiro. A pasta de dente não estava no lugar de costume, então se pergunta quem poderia ter tirado dali, “que sonho sem noção!”. Irritado, esfrega os olhos, tenta concentrar-se e nada. “O que está acontecendo aqui?”, com as mãos puxando o rosto para baixo a fim de espertar. Volta o foco, olha para o espelho e para o fundo floral do banheiro, olha para si mesmo e sem olhar mais para nada, com a mão na cabeça, diz: “Meu Deus! É real, estou em missão”.
Essa cena não é tão inusitada quanto você possa pensar, guardando os excessos, claro. Hoje, cada vez mais pessoas, jovens, na maioria, têm partido em missão¹. Isso acontece, porque, talvez, muitos de nós, estejamos crescendo no desejo de dar uma resposta mais concreta ao chamado de Deus em nossas vidas, e também por compreendermos melhor, através do testemunho dos que foram, a riqueza enorme que é a oferta desse tempo a Deus.
Fernando Pessoa, poeta português, em uma de suas célebres frases dizia: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Usando da Semiótica², no campo das inúmeras possibilidades para os dois “precisos” dessa frase, iremos atribuir dois significados simples: para o primeiro, “preciso” = “necessário”; para o segundo, “preciso” = “exato” ou “claro”. Assim, sábia foi a frase do “Fernandin”, pois, pelo viver não ser preciso, exato e claro, é necessário navegar, descobrir, explorar, arriscar, lançar-se. O mar do viver pede que a ele nos lancemos!
Desta forma, é precisamente − desculpa o trocadilho − isso que significa partir em missão: navegar. Deus nos chama à aventura da missão. Deus nos chama à aventura das inúmeras descobertas que só a missão nos dará, que só terras distantes, culturas diferentes, olhares novos, ditos com sotaques − ou inteligíveis − ou gestos alheios podem nos revelar.
Amyr Klink³, grande navegador brasileiro, no belíssimo documentário “Mar sem Fim”, dizia que, depois de suas viagens, passou a compreender o que seu pai falava: que era preciso sentir frio para saber o que é calor, sair de casa pra saber o que se deixou, uma nova terra pra saber o que é o lar. E da mesma forma, é necessário sair em missão para saber quem eu sou, pois o que é diferente de mim revela o que há em mim. Em missão, percebemos fortemente a vontade de Deus em conduzir o barco. Ela é o timoneiro, não mais nossas mãos, que por acomodação, muitas vezes, conduzem-nos por caminhos já navegados: os nossos pequenos vícios e costumes, tão minúsculos, mas tão fortes dentro de nós, as velhas vontades, os desafios já vencidos, que só alimentam nosso ego e não nos desafiam, não trazem cor, vigor à vida.
Por graça especial, e isso é muito interessante, ao partir em missão, sentimos também mais vivo o Evangelho em nós, sentimo-lo pulsar, latejar no coração. Percebemo-lo saltando aos nossos olhos, quase colocando a perna para a gente tropeçar. Como?! É nítido; veja as situações
1: Estou com sede. Vejo um freezer com refrigerantes bem gelados numa tarde ensolarada − em Natal, pode ser em Teresina também ou em Quixadá, brincadeira. O que fazer?! Simples: coloco a mão no bolso e compro. Funciona? Não. Estamos em missão como Comunidade de Vida, não temos dinheiro, vivemos da providência de Deus. Sobe aquela fúria, tenta se controlar, você se pergunta o porquê, e lembra: “Olhai os lírios do campo... acaso o vosso Pai que está nos céus não sabe o que precisais?” (Mt 6). Então, você relaxa e resolve abraçar a Palavra − se você for dócil, né ?!
2: Você está saturado, querendo dar uma volta pra curtir a noite, porque bateu aquela vontade, e a “galera” chamou para “dar um rolé”. O que fazer?! Simples: peço ao meu coordenador para ir. Funciona?! Depende! Talvez, ele diga que você está precisando conviver com seus irmãos de comunidade e se deixar conhecer. Você enlouquece, pensando que ele tem marcação com você, tudo no mundo, e lembra: “Amai os vossos inimigos...” (Mt 5). Então, você vai acolhendo e lutando para amar e viver o Evangelho.
3: Você está hoje de folga! Quanto tempo,né?! Afinal, você merece! Deu duro no trabalho. Um irmão seu fica sozinho na equipe de cozinha com uma pilha de louça para lavar. O que fazer? Muito simples: ontem, foi meu dia na equipe de cozinha e acabei ficando só também, se eu fiquei só, ele também pode, vou para casa tranquilo. Funciona? Não tem nem perigo! Porque vem “Aquele que diz que ama a Deus e não ama seu irmão, é mentiroso, pois como pode amar a Deus que não vê, se não ama seu irmão que vê?” (Jo 4). Então,você volta para dar uma força na cozinha.
Essas situações são maravilhosas, porque nos fazem ir além, sermos livres, aprendermos a amar. É Deus que nos ensina. Quantas alegrias Deus nos concede. As incontáveis descobertas abrem nossos olhos para toda uma vida de alegria, de amor e de liberdade: a inexplicável alegria das coisas suficientes, a imensa liberdade do amor desinteressado, a paz profunda do abandono em Deus.
“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar.” Não! Não sou eu quem me navega nem o mar, mas a vontade de Deus, que sabe aonde nos levar.
Partamos em missão! Com a vontade de Deus como timoneiro, iremos a mares desconhecidos de nós mesmos, lugares que não escolheríamos passar, situações em que não imaginaríamos estar, e que guardam em si um mundo novo, fascinante em nós mesmos. Isso é ir em missão! É lançar-se em alto mar, em que as novas condições, as intempéries e os “novos” tripulantes serão o espelho que nos revelará de que brio fomos feitos, que marinheiros somos, qualidades e virtudes a aflorar, defeitos e limitações a serem superadas, mas que abrirá a grande verdade sobre nós: de fato, somos marinheiros e a vontade de Deus é o timoneiro, que nos conduz nesse viver impreciso que é o imenso mar, com exatidão, ao cais da eternidade.
¹ Jovem em Missão: Qualquer jovem da Obra Shalom ou da Comunidade de Aliança Shalom pode, se assim o quiser, e se for algo do coração de Deus, escolher dar um ano – Brasil – ou dois – Exterior – da sua vida para Deus, em missão, vivendo como Comunidade de Vida Shalom.
² Semiótica: Área das Ciências Humanas que estuda os signos − elementos pelos quais se manifesta a linguagem − e nos ajuda a explorar as possibilidades de significados de qualquer coisa que exista. No texto a utilizamos como uma espécie de “licença poética” − pode ser no sentido de “exato”, ou de “necessário”, ou de “claro”, fora a grafia da palavra, etimologia ou o seu formato.
³ Amyr Klink: Famoso navegador brasileiro que realizou ousados projetos de viagem. Um dos primeiros foi a travessia do Oceano Atlântico a remo, em um barco projetado para capotar quantas vezes fosse “preciso”. Realizou também a mais curta volta ao mundo, dando a volta no eixo da terra, pelas perigosas geleiras da Antártida. Depois de cada viagem dizia que nunca mais faria algo parecido novamente, mas para ele, literalmente, “navegar é preciso”.
Eduardo Martins
Missionário da Comunidade Católica Shalom em Natal/RN
por
Comunidade Shalom
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