O deserto nos ajuda a compreender nossa missão
É
preciso que se estude, um dia, o papel do deserto na vida do ser humano
ou, ao menos, na vida de certas pessoas. Para uma legião de monges, ele
se tornou um ideal, quase uma obsessão. Achavam impossível viver longe
dele e, por isso, deixaram tudo e partiram para um mosteiro. Ali, na
oração e no trabalho, não tinham em mente fugir do mundo, mas
compreendê-lo melhor e colocá-lo em sua oração. Charles de Foucauld (†
1916), nascido numa família aristocrática francesa, fez do deserto, no
norte da África, o seu lar. Saint-Exupéry compreendeu melhor a terra dos
homens depois que seu avião teve uma pane, vendo-se obrigado a passar
dias e dias no deserto do Saara, completamente isolado de tudo.
A
lembrança desse silêncio o fez, um dia, escrever: “Eu sempre amei o
deserto. A gente se senta numa duna de areia. Não se vê nada. Não se
escuta nada. E, no entanto, no silêncio, alguma coisa irradia”. Claro
que ninguém ama o deserto por ele mesmo, pois “o que o torna belo é que
ele esconde um poço em algum lugar”. Quem nunca teve um avião não sabe o
que é se sentir, de repente, num deserto, como Saint-Exupéry. Mas isso
não nos impede de fazer essa experiência tão importante e renovadora,
que foi escolhida pelo Senhor para preparar o coração de Seu povo antes
da entrada na Terra Prometida: “Guiou o seu povo no deserto: pois eterno
é seu amor” (Sl 136,16).
Cada
pessoa tem condições de criar um deserto em torno de si mesma e,
principalmente, em seu coração. Ali, na rica solidão de seu interior,
saberá dar à sua vida, às pessoas que a cercam e a ela própria o devido
valor. Aliás, nunca uma pessoa poderá compreender tais realidades se não
se encerrar em si mesma.
O
deserto é feito de silêncio. Não de um silêncio estéril, marcado apenas
pela falta de barulho, mas de um silêncio que nasce dentro da própria
pessoa, feito de reflexão e paz. Um silêncio feito de amor.
É
necessário, de quando em vez, fazermos uma parada na vida. Parada
semelhante à daqueles que, andando pelo deserto, ficam algum tempo no
oásis que encontram. Saem dali refeitos, enriquecidos e animados. Também
nós sairemos enriquecidos dos momentos de deserto que criarmos. Depois
disso, teremos melhores condições de enfrentar a vida de cada dia, com
seus problemas, desafios e solicitações. Sairemos de nossos desertos
convictos de que, nesses tempos que periodicamente nos concedemos, longe
de nos isolarmos num egoísmo estéril, criaremos melhores condições para
estabelecer um encontro leal, profundo e sincero com nós mesmos, com os
outros e com Deus.
Na vida de
Cristo há vários momentos que testemunham o quanto Ele amava o deserto:
“Logo em seguida, Jesus mandou que os discípulos entrassem no barco e
fossem adiante dele para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as
multidões. Depois de despedi-las, subiu à montanha, a sós, para orar.
Anoiteceu, e Jesus continuava lá, sozinho” (Mt 14,22-23). Sua vida não
era tranquila: as multidões O procuravam a toda a hora e em todos os
lugares; pediam curas, exigiam Sua presença e Sua palavra. Ele atendia a
todos com uma paciência que a outros conquistava. À noite, cansado,
deixava os apóstolos descansando e retirava-se para longe. Suas noites
de oração eram o Seu “deserto”.
Numa
época e num mundo marcados pela agitação (ou pela dispersão), é urgente
seguirmos o exemplo de nosso Mestre, procurando criar espaços de
deserto. Justamente, porque as atividades nos absorvem, porque todos
solicitam nossa presença e nossas responsabilidades se multiplicam; por
isso precisamos de “desertos” em nossa vida, o qual nos dará maior
unidade, nos tornará mais amigos de nós mesmos, e fará com que cumpramos
melhor nosso papel no plano que o Pai tem para nós. Tempos de deserto
não são de fugas, mas multiplicadores de nossas forças, tornando-nos
mais eficazes.
Só quem já fez a
experiência de deserto é capaz de valorizá-lo devidamente e de lhe
dedicar um tempo que a eternidade recompensará.
Dom Murilo Krieger - scj
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